Trump, Bolsonaro ou Ventura são mais consequência do que causa. Em Portugal, é um cartão vermelho ao PS e PSD, partidos de governo desde 1976, quase sempre em alternância, algumas vezes em coligação. Com mais baixos do que altos, sobretudo nos últimos anos.

Ao logo destes 50 anos, as chamadas elites foram-se distanciando cada vez mais "do resto das criaturas". A "rejeição da realidade desagradável é sempre uma opção, mas é perigosa para todos", considera o historiador Jaime Nogueira Pinto. Os regimes chegam ao fim de cansaço, de descrédito. Foi assim com a Primeira República, acabou por ser assim com o Estado Novo, em 1974. Quando caem, já não há ninguém para os defender.

Como olha para os resultados eleitorais deste domingo?

Tem interesse ligar os resultados de Portugal às eleições internacionais, porque isto é uma vaga de fundo. O caso português — acabamos por andar sempre, mais tarde ou mais cedo, atrás da Euro-América — tem causas locais; podemos dizer que, com outra direção, talvez o PS não tivesse tido resultados tão catastróficos, ou que o crescimento do Chega não era tão esperado, mas é também um voto de protesto...

Mas acho que, essencialmente, o que se está a dar é uma grande reviravolta, um movimento muito profundo em que estas personalidades — Trump, Bolsonaro, Milei, André Ventura, Marine Le Pen — são mais consequência do que causa.

Em todos os países se deu mais ou menos a mesma coisa, que foi um desligar profundo dos políticos dominantes — a que na Europa chamo o centrão, uns mais para o centro-direita, outros mais para o centro-esquerda — da realidade das coisas, da realidade principal que se deu sobretudo a partir do fim da Guerra Fria e de todos estes fenómenos de desindustrialização e de deslocalização das indústrias da Europa dos Estados Unidos para as periferias. Para a Ásia, para o México, depois da abolição de fronteiras económicas. Com consequente empobrecimento do que resta das classes trabalhadoras e uma proletarização progressiva das classes médias.

Portanto, há uma profunda revolta desses eleitores que pegaram ou seguiram os políticos de ruptura. É isso que se está a dar.

É um cartão vermelho a quem tem governado o país?

Sim, aqui em Portugal, é. PS e PSD são quem tem governado sempre desde a Primavera de 1976, ora um, ora outro, ora às vezes, até (e naturalmente voltam a estar), associados. O PS mais centro-esquerda, o PSD mais centro-direita, mas têm sido quem tem governado, com altos e baixos. Os últimos anos foram, de facto, bastante baixos.

Mas há outra coisa aqui que é muito importante, é que a esquerda, ao desposar todas estas novas causas a que, por comodidade, podemos chamar o wokismo, numa generalização, esqueceu completamente aquela que tinha sido a sua causa tradicional, e até lhe deu uma certa nobreza, da reivindicação das condições de justiça para as classes trabalhadoras.

Em França, falo sempre disso, porque é, talvez, o fenómeno mais significativo, deu-se a passagem em massa dos eleitores do Partido Comunista para o Front National ainda no tempo do pai Le Pen, há mais de vinte anos. Portanto, é um fenómeno muito antigo.

E nos Estados Unidos a surpreendente vitória de Trump em novembro de 2016 é um fenómeno semelhante. Ele ganha nos Estados do rust belt [antiga região industrial] por diferenças relativamente pequenas, mas ganhou onde a indústria automóvel, que floresceu há 50 anos, acabou (Detroit), a siderurgia acabou (Pittsburgh) e por aí fora.

Em Portugal tem causas e consequências que também conhecemos e que, de um modo geral, integram-se neste fenómeno geral.

Quando olhamos para os países onde esta direita radical chegou ao poder o que vemos, estão melhor?

Melhor ou, pelo menos, na mesma. O facto é que, na Itália, os Fratelli de Meloni, em poucos anos, passaram para cerca de 30% de expectativas de voto. Olho para os Estados Unidos e vejo que Trump tem um estilo próprio de fazer as coisas, que é ataca à bruta e depois negoceia. Aquilo que ele quer, não sei se no fim vai conseguir, por exemplo, a reindustrialização de algumas áreas dos Estados Unidos. Isso vai demorar alguns anos, não sei se vai ou não conseguir, mas é o que ele quer e foi o que ele prometeu. E ele está, nesse aspeto como noutros, a procurar cumprir o que disse que ia fazer. Não sei se vai resultar ou não, porque são coisas muito complexas, processos complexos esses de reindustrializar.

Acredita que André Ventura vai conseguir chegar ao governo?

Não sei, mas sei que nos próximos tempos vai ser difícil governar sem André Ventura e quase impossível contra André Ventura.

Isso significa que o "não é não" de Luís Montenegro foi e é um erro?

Acho que o políticos não deviam dizer essas coisas. Uma coisa é dizer, como disse Trump, que vai reindustrializar os Estados Unidos — se diz, tem de fazer esforços para isso. Agora, estas coisas que são táticas, como com quem se fazem alianças ou não... O Dr. Augusto de Castro, que foi muitos anos diretor do "Diário de Notícias" e que era um homem velho e sabedor, dizia uma frase: "Nunca digas tão mal que não possas vir a dizer bem e nunca digas tão bem que não possas vir a dizer mal".

Acho que os políticos novos deviam ler às vezes as memórias desses políticos mais antigos; mas, no fundo, dá-me impressão que têm um certo desprezo pela História, acham quase todos que o mundo começou com eles, quando eles chegaram à idade da razão ou quando se meteram na política. É como a ideia de que os antigos eram estúpidos porque não tinham democracia nem televisão. São coisas que têm de ser revistas, senão não entendemos nada do mundo.

Quando se demitiu, ainda na noite das eleições, Pedro Nuno Santos disse que o papel de suporte do governo não deve caber ao Partido Socialista. Isto é um "não é não" do PS à AD?

Os resultados destas coisas é que podem ser mais ou menos inteligentes, sobretudo quando são contraditórios com aquilo que se queria dizer. Aqui, não há dúvida que no momento em que o PS largar completamente o governo, o governo fica refém do Chega.

Mas o que está a acontecer na maior parte dos países europeus, talvez dando dois exemplos importantes, a Polónia e a Alemanha, exactamente onde a vaga de fundo nacional-populista ou nacionalista popular, ou o que se lhe quiser chamar, é muito forte, é que é contra ela que se estão a fazer as grandes coligações, que vão da extrema-esquerda radical ao centro-direita, e aí sem linhas
vermelhas.

Na Alemanha, Merz, o homem da ala direita da CDU/CSU [aliança política formada por dois partidos democratas cristãos, União Democrata-Cristã e União Social-Cristã], foi fazer um pacto com os sociais-democratas e teve de pôr em causa uma quantidade de coisas que tinha prometido aos seus eleitores. Ele entende que neste momento o inimigo principal é a AfD [Alternativa para a Alemanha].

O mesmo se repete na Polónia, onde a geringonça Tusk está a fazer uma aliança que vai desde o centro-direita à esquerda contra o PiS [Lei e Justiça].

Pedro Nuno Santos não devia ter dito isso, se formos por esta lógica mais ou menos europeia, a partir de um dado momento vai ser tudo contra o Chega.

E é isso que vai acontecer?

Bom, se forem os comentadores e grande parte dos jornalistas a mandar, é isso que vai acontecer. Ando muito com uma imagem, a comparação entre estas elites económico-políticas e tecno-burocráticas que temos no Ocidente, sobretudo na Europa, e os Alfas do "Admirável Mundo Novo", de Huxley; estão um bocadinho na mesma dimensão, estão muito separados do resto das criaturas, e há coisas que se estão a dar e às quais não estão atentos. Ou pode acontecer aquela coisa que é uma rejeição da realidade desagradável, que é sempre uma opção, mas que é perigosa para todos, para eles e para o mundo.

O Chega congrega pessoas do CDS, PSD e, agora, também do PS, os tais que têm governado mal, e ainda eleitores do PCP, juntando esquerda e direita. Primeiro, se vêm de partidos que já foram governo, o que podem, realmente, fazer diferente?

Vêm – nem todos – desses partidos, mas agora estão com outros valores e ideias políticas. E isso faz toda a diferença!

Esta amálgama esquerda/direita é compatível ou haverá um tempo em que as políticas são inconciliáveis? O que acontece ao Chega sem André Ventura?

Pois, é uma questão importante. Como em todos os partidos nascentes. Vou fazer uma comparação, que não tem nada a ver em termos de ideologias de partido ou época: o Partido Nacional Socialista ganhou as eleições em 1932 e depois em 1933, já com alguma manipulação a partir do poder, ficou com a maioria absoluta. Mas toda a gente importante na Alemanha aderiu depois. Numa primeira fase, era considerado uma coisa da arraia-miúda. Depois, a aristocracia, os empresários, os professores, as profissões liberais respeitáveis, aderiu tudo.

Não há dúvida que hoje em dia a soberania é popular e por enquanto vai ser disputada em eleições tanto quanto possível livres e justas e, portanto, os partidos que vão ganhando o apoio popular, e já se nota mesmo nestes últimos comentários — não vejo muita televisão, mas chegam-me coisas e tenho amigos que me mandam essas coisas das redes sociais e grupos de WhatsApp —, que muitos comentadores também já começam a descobrir alguma virtude no Trump, a dizer que talvez seja preciso olhar para o Chega de outra maneira. Gradualmente vão fazendo, não direi a sua inscrição, mas a seguir um pouco esse caminho. Não sei se é o caminho das pedras, mas é um caminho.

Ou seja, é preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma, como dizia Lampedusa?

Neste caso – desta mudança que vem com Trump e os líderes populares anti-globalistas – não vai ficar tudo na mesma. Ou seja, as classes médias e as classes trabalhadoras que restam na EuroAmérica estão a chegar à conclusão de que não querem os valores culturais e políticos do globalismo “iluminado” que lhes vendem há trinta anos. Nem, sobretudo, as suas consequências. E precisamente porque estes caudilhos da mudança são consequência, se não mudarem, o “povo da direita” arranja outros.

Luís Montenegro tem razões para estar feliz ou nem por isso?

Não sei. Feliz, vamos lá a ver... Na política portuguesa, o sucesso vem mais do não mérito do outro do que o nosso mérito. Se olharmos para as competições político-partidárias e eleitorais, tem sido mais o demérito de uns do que o mérito de outros que tem levado a estas mudanças.

Outro político experiente e conhecedor da realidade portuguesa, João Franco, dizia que em Portugal nunca são as oposições que ganham, são os governos que perdem. Acho que tinha razão nisso. Os regimes chegam ao fim de cansaço, de descrédito. Foi assim com a Primeira República, acabou por ser assim com o Estado Novo, em 1974. Quando caem, já não há ninguém para os defender. É muito curioso isso, também. As reações às vezes vêm depois, mas naquela altura da queda os regimes esgotaram-se normalmente.

E este modelo do centrão, desta alternativa, uma espécie de PS e PSD em união rotativa, de facto, dura já lá vão 50 anos. Há uma grande frustração na sociedade e os dois partidos que têm partilhado o poder, como é normal, são vítimas disso.

Acredita mais num modelo em que todos se unem contra o Chega ou num modelo em que uma vez a aliança será com uns, noutra com outros?

Esse é um modelo de geometria variável que, até para haver alguma estabilidade e não haver rupturas, seria o mais aconselhado. Que é uma coisa que hoje estamos a ver na realidade internacional, partimos para este mundo multipolar. A multipolaridade dá essa geometria variável.

No parlamento, por exemplo, há uma coisa que estes três partidos, a coligação AD, mais o Chega, mais a Iniciativa Liberal, agora podiam fazer, que é mudar o preâmbulo da Constituição, que ainda lá tem o socialismo. Podiam tirar isso.

O ter lá o socialismo — "abrir caminho para uma sociedade socialista" —, não impede Portugal de seguir o seu caminho, de se desenvolver...

Não se desenvolveu assim muito nos últimos 50 anos… mas sabe, estas coisas simbólicas são importantes. Aquilo foi uma coisa imposta na época.

Mas, na prática, impediu-nos de quê?

Impediu muito e demorou muito a desimpedir. Todo aquele projecto cavaquista das privatizações foi enfermadíssimo por causa dos textos constitucionais. Essas coisas, depois, não são tão fáceis, é como estas legislações tipo wokismos e conversa LGBT, que a esquerda foi fazendo aprovar e que não se dá por ela mas ficam lá no papel — e que o governo socialista de António Costa, que não ligava nenhuma a essas coisas, deixou passar, porque foi o preço a pagar para ter o apoio do BE, do PCP e da generalidade das esquerdas festivas.

Esses partidos, agora, foram todos à vida, praticamente desapareceram. Agora, era importante — concordo consigo, não é impeditivo —, mas mesmo simbolicamente era importante fazer essa mudança. Será que o primeiro-ministro, Luís Montenegro vai ter coragem para isso? Não sei.

Não houve coragem para mudar o sistema eleitoral, ainda. O nosso sistema eleitoral precisava de ser mudado?

Vou dizer-lhe uma coisa, é muito mais difícil mudar um sistema eleitoral do que mudar princípios constitucionais. Veja a Inglaterra, que tem um sistema eleitoral que dá absurdos do ponto de vista da proporcionalidade, de partidos minoritários governarem muito tempo, já houve vários casos.

Daqui a cinco meses temos eleições autárquicas, depois virão as presidenciais. Mas daqui a um ano podemos estar outra vez em eleições?

A Itália viveu muitos anos, nos anos 60 e 70, até à grande reviravolta dos anos 80, com governos sempre a cair e eleições quase permanentes. Mas tinha uma administração pública estável e competente que aguentou as coisas. Ora, neste momento, a nossa administração pública está de rastos, como quase todo a gente que tem de lidar com a Justiça, com a Saúde se queixa, parece que com razão. Tudo isto está bastante caótico, portanto, não sei se esta instabilidade política pode conviver bem com isso.

É claro que os portugueses têm imensa paciência. Muita paciência. Quando eu era miúdo havia uma coisa que se dizia aos pobres, mesmo quando se lhes dava esmola, que era "não pode ser, tenha paciência", uma frase que caiu em desuso. As pessoas habituaram-se a ter paciência.

E este teatro político, teatro comentatorial, tudo isto é um mundo que vai entretendo, e acho que as pessoas, em vez de se revoltar, passaram também a divertir-se a vê-los e a insultá-los, por um lado, e, por outro, a votar de outra maneira e não de acordo com o que eles lhes dizem.

O PS pode vir a ser um partido do táxi, como foi o CDS?

Não sei. Lá está, é como os partidos velhos dos sistemas, na Primeira República, o Partido Democrático foi dominando e governando até ao fim, caiu de velho e de podre, porque estava tudo contra ele. Aqui, o PS partilha com o PSD as responsabilidades, as pessoas que se queixam do poder não se queixam só do PS, queixam-se também do PSD.

O PS também pode arrepiar caminho, estou convencido que tem pessoas para isso, esta foi também uma linha muito esquerdosa ou esquerdista, não sei muito bem dizer. Mas o PS tem lá pessoas com mais capacidade.

Quem, José Luís Carneiro?

Sim, o José Luís Carneiro. Que conheço há muitos anos e que é uma pessoa e que é uma pessoa muito decente – católico, honesto, competente. Diferente do costume, numa palavra. E fico por aqui, não lhe quero fazer mal dizendo bem dele, tenho de me acautelar.

Já lhe fiz esta pergunta antes: queremos uma Assembleia da República cheia de "miguéis arrudas"?

O Miguel Arruda foi um caso e, faça-se justiça, André Ventura correu logo com ele. Mas os outros partidos também têm Arrudas, que continuam.

A comparação deve animar-nos? É engraçado ver que defendemos umas coisas, mas parece que fazemos o contrário. Tudo fala contra a corrupção, mas depois não penalizamos os partidos onde ela está instalada. Faz sentido?

Sim, e continua tudo a olhar para o lado. O problema da corrupção em Portugal não é tanto a corrupção activa, é a cumplicidade passiva ou por ausência. Quer dizer, quando as pessoas veem que está para acontecer qualquer coisa desagradável ou que os pode comprometer e que não querem contrariar ou combater frontalmente, vão à janela fumar um cigarro. Isto quando fumar tabaco não era um escândalo… Vemos o historial de vários tesoureiros do PSD com problemas com a justiça, por exemplo, e quem estava acima deles, penso que não estava envolvido, mas tinha de saber e alguma coisa. Portanto, ia à janela fumar um cigarro. É estranho.

Há uma democracia boa e uma democracia má? Quais devem ser os limites de uma "mudança de regime" ou o que não é admissível numa democracia?

Aquilo que a esquerda e o centrão querem impor – conteúdos ideológicos obrigatórios a umas forças políticas e interditos a outras – definindo eles, a seu prazer, a permissibilidade desses conteúdos, não me parece nem possível nem desejável. Como a pretensão, vinda de algumas personalidades e vozes da esquerda local, por exemplo, de proibir o Chega.

Os partidos da tal direita “má” na Europa, onde tiveram o poder e onde estão no poder, continuou a haver eleições, oposição e media da oposição. É o caso da Hungria de Orbán e da Itália de Meloni. E na Polónia, quando o PiS perdeu as eleições para a geringonça Tusk, também entregou governo. Já a geringonça Tusk tem abusado desse poder.

O único critério, partindo do princípio que no Ocidente já não se reconhece a realeza de direito divino, é, de facto, considerar o jogo eleitoral em competições o mais "livres e justas" possíveis, como o legitimador do poder. A esquerda, quando começou a perder, é que pensou e tem tentado reverter isso.