
Os Estados Unidos são o terceiro país com mais universidades: 3.200. O primeiro é a Índia, com 5.350, e o segundo a Indonésia com 3.300. Mas, considerando o número de habitantes, é de facto o país dominante no ensino superior. Além disso, é o que tem mais estrangeiros a frequentar universidades: 1,13 milhões. Em Harvard, o exemplo que nos interessa, 7.876 dos seus 30.386 estudantes, ou seja, 26%, são estrangeiros.
Obviamente, nem todas as universidades são iguais. Algumas, como Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Princeton, Pensilvânia, Yale e Harvard, que formam a chamada Ivy League e ainda o MIT (Massachussets Institute of Technology) são consideradas de excelência. Harvard, fundada em 1636, é provavelmente a que tem maior estatuto e certamente a mais rica, graças às propinas (entre 60 e 90.000 dólares anuais) e, sobretudo, inúmeros subsídios governamentais e doações de ex-alunos milionários. Graças a isso pode ter os melhores académicos de todos os continentes e alunos de mais de cem nações. Na abertura do ano lectivo de 2025, o Presidente, Alan Garber, afirmou que a instituição recebe estudantes que vêm das proximidades, de todo o país e do mundo inteiro”. Isto também é possível pelas bolsas de estudo para aqueles que não poderiam pagar as despesas de viver nos dormitórios e “repúblicas” do campus.
(Não vamos falar aqui das universidades igualmente icónicas da Europa, para não nos desviarmos da história: Oxford, Cambridge, Sorbonne, INSEAD, etc. etc.)
Como tem sido abundantemente reportado, o Presidente Trump tem uma agenda para transformar a democracia norte-americana numa autocracia ou, mais exactamente, numa monarquia absoluta. Foi escrita antes das eleições e até tem um nome: “Projecto 2025”, com uma página na net onde dá conta dos progressos feitos.
Uma das componentes do projecto é precisamente o controlo da educação no país, que envolve vários aspectos, como a extinção do Ministério da Educação, a distribuição de incentivos a escolas privadas com “valores cristãos” e a sujeição de todos os estabelecimentos de ensino a valores conservadores, demitindo professores e rejeitando alunos que não seguem esses valores. As desculpas usadas para puxar os cordéis das universidades, tradicionalmente independentes em tudo (religião, política, classe, género, cor, etc.) variam bastante, mas a mais usada tem sido a questão Israel/Gaza? Uma pessoa mais incauta pode perguntar porque é que essa questão aparece nas universidades norte-americanas; mas o que aconteceu, e ainda acontece, é que tem havido manifestações, ocupações e atritos fortes entre os estudantes judeus, ou pró-Israel, e os muçulmanos, ou pró-Palestina. Os tumultos já levaram à expulsão de muitos professores e alunos e à demissão de presidentes e corpos directivos. Há uma cultura denominada DEI (Diversidade, Igualdade, Inclusão) que nos últimos anos foi defendida por todas as universidades e grandes empresas, e que foi oficialmente proibida por Trump.
Assim, a Administração (que é como chamam ao Executivo) tem promulgado uma série de leis e directivas para impedir que qualquer organização siga o sistema DEI, que consiste basicamente em equilibrar as diferenças de cor, gênero, preferência sexual e etnia nas contratações. Muitas grandes empresas, como a Meta (Facebook, etc) ou a General Motors, aceitaram as novas directivas. Outras não aceitaram mas não fizeram alarde disso; e outras ainda se opuseram publicamente. Entre elas, muitas universidades, nomeadamente Harvard. Como Harvard é a mais rica e famosa, Trump resolveu atacar a sua independência, dando como desculpa o que ele acha que foi brandura quanto ao anti-semitismo como a manutenção das normas DEI.
As más línguas dizem que o Presidente está a fazer esta guerra não só por razões ideológicas mas também pessoais - não gosta de intelectuais, nem das elites a que nunca teve acesso, apesar de ser rico, e, finalmente, porque frequentou duas universidades sem o mesmo prestígio, Fordham e Wharton. As boas línguas não conseguem contrapor nenhum motivo válido para esta tentativa de destruir um dos pilares da superioridade norte-americana, uma vez que as universidades não só desenvolvem tecnologias de ponta como, ao incluir estrangeiros, mandam para o mundo inteiro “propagandistas” do sistema. Fazem parte da superioridade académica do país e exercem “soft power” pelo mundo.
Quanto à questão do anti-semitismo, que já levou a várias demissões na direção da escola, Harvard tem agora como director aquele senhor de que falamos acima, Alan Garber, que é judeu. Quanto às DEI, Harvard recusa-se a aceitar imposições. Trump começou por cortar três mil milhões de dólares para investigação e congelou outros sete mil milhões destinados aos hospitais ligados a Harvard na área de Boston. O impacto na investigação médica, não só em Harvard como em todo o país, é brutal, com o encerramento de laboratórios e cientistas a ir para o estrangeiro. Ainda esta semana, Trump ameaçou que vai cortar outro subsídio governamental de 100 milhões de dólares.
Kristi Noem, a Secretária (Ministra) da Segurança Nacional, decretou, com efeitos imediatos, que Harvard não pode ter estudantes estrangeiros, ou seja, mandar embora os que já lá estão e não aceitar mais nenhum. Segundo a própria, “a Direcção de Harvard tem criado um ambiente perigoso no campus, ao permitir que agitadores anti-americanos e pró-terrorismo incomodem e agridam fisicamente os estudantes, e esses agitadores são sempre estrangeiros.” Assim sendo, determinou novas regras para os estudantes estrangeiros que querem frequentar qualquer universidade norte-americana: têm de ser avaliados pelos consulados do seu país, avaliação que inclui a análise do que postam nas redes sociais! Seguindo a linha surrealista da Administração Trump, Noem afirmou que Harvard tem ligações com a decisão do Partido Comunista Chinês de destruir a comunidade Uigur na China, especificando que a universidade tem recebido e treinado membros de um grupo para-militar do Partido encarregado do “genocídio” dos Uigur.
Harvard tem contestado judicialmente todas estas agressões à sua sustentabilidade e, por ora, a juíza Allison D. Burroghs, do Tribunal Estatal de Boston, bloqueou a regra de não ter ou contratar estrangeiros. Quanto à eliminação de subsídios, é uma decisão executiva cuja contestação é inútil. A Administração pode dá-los e tirá-los quando quiser.
O jornalista veterano Marvin Kalb, professor em várias instituições, incluindo Harvard, afirma no seu Substack que os processos podem suceder-se, mas que em última instância a universidade acabará por perder a maior parte. “Harvard nunca mais será o que sempre foi.”
E os Estados Unidos também não, acrescentamos nós.
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