
Eleita em abril, nas primeiras eleições livres realizadas em Portugal, a Assembleia Constituinte tinha como missão elaborar uma Constituição que se pretendia revolucionária e progressista.
Os trabalhos começaram com o presidente da Assembleia, Henrique de Barros, a lamentar o facto de o hemiciclo não estar suficientemente dotado de microfones para que cada deputado pudesse, “sem dificuldade”, usar da palavra do seu lugar.
Apelou, por isso, para a compreensão dos parlamentares no sentido de ajudarem a deslocar os microfones existentes para junto dos que pretendessem usar da palavra, uma vez que também não havia “funcionários bastantes para auxiliar” nessa tarefa.
Entre os 247 deputados que responderam à chamada, encontravam-se Diogo Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa, Basílio Horta (CDS), António Arnaut, Manuel Alegre, Etelvina Lopes de Almeida, Sophia de Mello Breyner, José Luís Nunes (PS), Francisco Pinto Balsemão, Marcelo Rebelo de Sousa, Jorge Miranda, Helena Roseta (PPD), Otávio Pato, Carlos Brito e Jerónimo de Sousa (PCP).
Américo Duarte, deputado da UDP, foi o primeiro a pedir a palavra para lembrar que a missão da Constituinte era elaborar uma nova Constituição que deitasse fora a que vigorava “no tempo do terror fascista”.
Apresentou-se ao plenário como “um explorado” e um operário de Portugal, para justificar determinadas posições, exortando a câmara a usar uma linguagem simples e clara e a referir-se sempre aos problemas do povo.
“A maioria dos deputados presentes nesta Assembleia são advogados, engenheiros, professores, médicos, etc…que frequentaram universidades e os liceus, que são inacessíveis à grande maioria dos trabalhadores portugueses e mesmo uma grande percentagem nem na escola pôde andar”, disse.
Propôs ainda, numa das primeiras sessões, que o ordenado de deputado fosse equivalente ao salário médio de um operário da indústria (5.500 escudos à época) e que os únicos subsídios possíveis fossem os de transporte e hospedagem para deputados com residência fora de Lisboa ou de despesas “devidamente comprovadas” para contacto “com as massas populares, os seus anseios e as suas lutas”.
A Constituinte era a Assembleia de um povo que estava “simultaneamente a fazer uma revolução”, conforme declarou, naquele plenário, o deputado Luís Catarino, do MDP/CDE.
Nas ruas, vivia-se o prelúdio do verão quente de 75. Rebentavam bombas em Lisboa.
Ao gabinete do presidente da Assembleia chegava numerosa “correspondência anónima”, mas também mensagens de apoio, como as recebidas da Assembleia Nacional da Jugoslávia, desejando “plenos sucessos nas atividades da Constituinte, no interesse do povo português”, da Câmara dos Deputados da Venezuela, formulando votos para “auspicioso processo político-social” ou da Assembleia Nacional da Tunísia, desejando sucesso e prosperidade.
O Diário da Assembleia Constituinte, consultado pela Lusa na Biblioteca Passos Manuel, na Assembleia da República, tem transcritas, ao pormenor, as intervenções dos deputados e as reações das galerias, de onde, não raras vezes, soavam vozes de apoio ou de contestação ao decurso dos trabalhos.
As primeiras intervenções, ainda muito marcadas por reminiscências do antigo regime, as perseguições políticas, a política colonial e a reação à presença de deputados que integraram a Assembleia Nacional do Estado Novo, levaram a algumas advertências do presidente, em nome da ordem nas galerias, mas também dirigidas aos deputados, a quem Henrique de Barros pedia para não deixarem que os debates se tornassem “apaixonados demais”.
“Façam o possível para conter as vossas paixões”, pedia o presidente da Assembleia aos constituintes.
Durante a discussão do projeto de regimento para definir os moldes de funcionamento da Assembleia, travou-se o primeiro grande debate ideológico; deveria ou não um órgão eleito para elaborar a Constituição dedicar-se apenas a essa tarefa ou ir mais além e levar para o parlamento outras questões, através de um Período Antes da Ordem do Dia (PAOD)?
Esgrimidos argumentos, o PAOD acabou por ficar instituído, dando expressão aos mais variados temas.
Depois de vários contratempos, reflexo da convulsão social no país e que levou à suspensão dos trabalhos, na sequência do cerco de 12 de novembro (por uma manifestação de trabalhadores), a Constituição da República foi finalmente aprovada por todos os partidos, à exceção do CDS, no dia 02 de abril de 1976 para entrar em vigor a 25 de abril, exatamente dois anos após o golpe militar que derrubou o regime de Salazar e Caetano.
Costa Gomes alertou os constituintes para julgamento impiedoso da História
O Presidente da República Costa Gomes abriu a sessão inaugural da Assembleia Constituinte, em 02 de junho de 1975, advertindo os deputados de que o país, o futuro e a história lhes julgariam impiedosamente a capacidade de construírem uma Constituição revolucionária.
“É tarefa para génios gizar uma Constituição revolucionária, tão avançada que não seja ultrapassada, tão adequada que não seja flanqueada, tão inspirada que não seja redentora, tão justa que seja digna dos trabalhadores de Portugal”, declarou o Chefe de Estado, ao dirigir-se aos 250 deputados eleitos nas primeiras eleições livres, há 50 anos.
Num discurso fortemente marcado pela revolução, através de referências em quase todos os parágrafos a expressões como “dinâmicas revolucionárias”, “clima revolucionário”, “períodos revolucionários”, “fenómeno revolucionário”, “processo revolucionário” ou “legislador revolucionário”, o Presidente da República abriu a sessão às 16:12 do dia 02 de junho de 1975, de acordo com o registo lavrado do Diário da Assembleia Constituinte.
O legislador revolucionário, disse, só garante a eficácia histórica da sua ação “criando legislação avançada, bem adequada ao curso futuro do processo revolucionário, com conteúdo qualitativo que contribua para a felicidade e dignidade humana da sociedade a que se destina”.
Um diploma, prosseguiu o Presidente, pode atuar “como passageiro analgésico, como excitante explosivo, como medicamento equilibrador ou como tóxico reacionário”.
“Esta hipersensibilidade social tem efeito multiplicador nas responsabilidades de quem legisla em período revolucionário, por mais simples que seja a matéria em causa”, acrescentou.
Sobre a redação da Constituição, em particular, Costa Gomes afirmou tratar-se da mais importante obra que pode realizar-se para um povo: “Nenhuma outra é suscetível de tanta influência nos destinos de uma sociedade”.
O Chefe de Estado manifestou o desejo de ver a revolução progredir para um socialismo pluripartidário, “em simbiose fecunda” entre as vias revolucionária e eleitoral.
Referiu-se ainda ao pacto MFA [Movimento das Forças Armadas] -partidos como um contributo revolucionário e garante do avanço contínuo para o socialismo. “Assim se obteve o efeito tranquilizador que permitiu que fossem às urnas muitos votantes, que de outra forma considerariam prematuras as eleições”, sustentou.
“Senhores deputados, em nome dos mais humildes, das classes mais desfavorecidas, que desejam, na luta do trabalho diário, o avanço da nossa revolução, vos peço que minimizeis os vossos interesses partidários, subordinando-os à consciência afinada pelos interesses maiores da Pátria e do Povo de Portugal”, declarou.
Costa Gomes terminou a intervenção perante a Constituinte exortando os deputados a encontrarem rapidamente “fórmulas superiores” que garantissem a unidade e a reconstrução nacional: “A partir de hoje, milhões de portugueses seguirão ansiosos, mas cheios de esperança, o labor desta Assembleia”, concluiu, sob forte aplauso da assistência em pé, conforme documentam as imagens de arquivo da RTP e o Diário da Assembleia Constituinte, consultado pela agência Lusa na Biblioteca da Assembleia da República.
Campanha para a Constituinte teve mais de 300 eventos políticos e muita violência em 20 dias
Durante os 20 dias da campanha eleitoral para a Assembleia Constituinte houve mais de 300 eventos políticos e frequentes atos de violência, destacou, em entrevista à agência Lusa o politólogo Pedro Magalhães, curador da exposição “Haverá Eleições. 1975”.
“Nunca mais tivemos uma campanha parecida com esta, em termos de frenesim de atividade política e isso ajuda a perceber também, ou está muito ligado, a uma enorme taxa de participação” [92%], afirmou Pedro Magalhães.
Este foi um dos aspetos que mais impressionou o politólogo durante a preparação da exposição, patente na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, até 31 de outubro.
Outro aspeto, confessou, foi a “enorme violência” da campanha. “Teve muitos episódios de conflito físico e tiroteio, cercos e destruição de sedes partidárias, algo que, de alguma maneira, prenuncia o que vem a acontecer depois no verão quente. Uns meses a seguir, agudiza-se o conflito político e ideológico”.
A Constituição acabou por ser aprovada ainda num clima de conflitualidade, em 02 de abril de 1976. O jornal A Capital, que esgotou uma edição especial, ilustrava a capa no dia seguinte com uma fotografia do momento, sob a manchete “Liberdade e Progresso”. Mas há outro destaque na primeira página do jornal – “Bomba mata padre candidato da U.D.P. e Estudante”.
“É o lado mais negro deste frenesim e é também a intensidade, a polarização e a conflitualidade que estava a instalar-se. E, tal como sucede em muitos outros momentos da nossa longa transição política, às vezes fica-se a pensar como é possível que isto não tivesse descarrilado para qualquer coisa muito mais dramática!”, observou Pedro Magalhães quando confrontado com o acontecimento.
Sentado frente à exposição, apontou o caso de um comício do CDS, em Guimarães, durante o qual houve tiroteio: “As pessoas estão a disparar umas contra as outras e não morre ninguém. Não percebo muito bem como [risos]. Mas ainda bem!”.
Ao longo da preparação da mostra, Pedro Magalhães surpreendeu-se também com a magnitude do desafio que foi montar as primeiras eleições livres em Portugal.
“Quando o Movimento das Forças Armadas (MFA) prometeu que fazia eleições no espaço de um ano, não sei se eles tinham bem presente…aliás, não tinham, porque o I Governo Provisório nem sequer tinha orçamento para as eleições, para o recenseamento”, acrescentou.
“Foi um desafio muito grande, por muitas razões, talvez o maior fosse o próprio recenseamento eleitoral, porque obviamente as regras antes do 25 de Abril tinham inúmeras limitações e entorses e além disso não havia sufrágio universal”, recordou Pedro Magalhães, exemplificando que quem não sabia ler nem escrever, não tinha direito a voto.
Assim se passou de dois milhões de eleitores para 6,2 milhões.
Mas houve também que garantir mesas de voto, urnas e boletins, além de mudanças administrativas: “O poder local era obviamente controlado ou muito influenciado pelo anterior regime. Foi preciso substituir presidentes de câmara e de junta, tudo isto foi um processo”.
Para Pedro Magalhães, as eleições de 25 de abril de 1975 poderiam não ter acontecido na data prometida se não fosse a intervenção de Costa Braz, militar de Abril que define como uma personagem central, a quem “nunca se reconheceu inteiramente a importância”, nomeadamente na organização do sufrágio universal.
Cinquenta anos depois, ainda há temas para estudar e “segredos para descobrir”, garantiu.
“O fundamental está estudado e está conhecido, mas até sobre processos políticos importantes como o 11 de março [tentativa de golpe de Spínola] e aquele boato da matança da Páscoa, de onde é que vem? Ninguém sabe. Ainda há muitas coisas para descobrir”, assumiu o politólogo.
Um dos episódios que considera “um bocadinho esquecidos” e tem pena de não estar incluído na exposição é o que se passa de 24 para 25 de abril de 1975, na sequência de um apelo da RTP e do Rádio Clube Português para a população se juntar na rua e cantar “Grândola, Vila Morena”, uma das senhas do golpe militar de 1974 que pôs fim à ditadura.
“Há milhares de pessoas nas ruas de madrugada, carros a apitar por todo o lado e converge tudo para Belém, onde está reunido o Conselho da Revolução, cuja reunião termina às 05:00. Eles vêm à janela agradecer ou saudar a população”, contou, lembrando as palavras de Costa Gomes – “Vamos ter, daqui a horas, o momento mais solene da nossa revolução”.
Desse momento solene, saiu a eleição de uma assembleia jovem, para um novo regime.
“As antigas elites políticas ficaram completamente deslegitimadas e foram afastadas. Os novos políticos eram, na maioria, jovens”, concluiu.
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