Deixem-me começar a suplente. Inicio como o jogador que está no banco mas, ainda assim, festeja efusivamente as intervenções do titular no seu lugar. Permitam-me então que, antes de entrar e fazer qualquer jogada, eu rejubile com este pontapé de saída, este chuto de letra, que o meu caro Pedro Adão e Silva (titular indiscutível) deu ontem no jornal Record:
«Talvez o essencial de um Mundial não esteja nem nos resultados, nem nos derrotados, nem sequer nos vencedores. Quando olhamos retrospetivamente para Mundiais passados, a memória agiganta-se com instantes fixos. Faz sentido, desde Santo Agostinho que estamos avisados de que "um instante é a eternidade". O Santo que era filósofo sublinhava que era no tempo fixo que podíamos encontrar o esplendor da eternidade, um presente como que absoluto. O futebol não é exceção.»
Cheira bem, cheira a Mundial. Há um perfume a armistício no ar. O Pedro Adão e Silva trouxe o Santo Agostinho numa citação que eu já usei várias vezes para aludir ao amor, mas nem esse valor maior me distrai do quão ajustada foi a referência do Pedro. Cada Mundial de Futebol é um pedaço de tempo que vale mais que a soma das suas partes, que o conjunto dos seus vários 90 minutos. É um cometa que passa de 4 em 4 anos, mas ao invés de sugerir a destruição do planeta aos fatalistas do cataclismo, sugere antes uma espécie de regeneração. Na parada de bandeiras (e no perfume a armistício) há um curtíssimo momento eterno em que acreditamos que este tempo, e este mundo, são lugares bons para habitar.
Talvez o optimismo em torno do Mundial, a alegria latente, sejam coisas de aficionados. Talvez não. Eu próprio fui acometido por este contentamento ainda numa altura em que pouco ligava à bola. Cresci mais adepto de memórias que de futebóis, mas a “Copa do Mundo” sempre foi um instrumento cronológico precioso. Na minha cabeça nostálgica, é muito fácil preservar recordações antigas quando ordeno tudo num dossier mental - neste arquivo, os separadores que saltam à vista e me auxiliam a organização dizem: Espanha 82, México 86, Itália 90, Estados Unidos 94, por aí fora.
O desfile colorido de camisolas, os homens com génio nos pés, a festa nas bancadas, as mascotes, tudo isto conferiu aos mundiais de futebol uma festividade que se celebra e se aguarda. No meu caso, suspeito que esta efusividade seja uma versão banal, heterossexual e quadrienal da histeria pela Eurovisão. É por isso que, de 4 em 4 anos, vou alimentando a vontade de que cada Mundial seja o melhor de sempre, e o mais marcante. Não tem que ver com as vitórias da nossa selecção, até porque passei os meus “anos formativos” sem ver as quinas na fase final da competição.
Entre 1979 e agora, existiram 9 campeonatos do Mundo e existi eu. É, portanto, com conhecimento de causa que afirmo: houve sempre motivos para que cada Mundial fosse o melhor de sempre:
De 1982 lembro-me de pouco mais que a mascote: o inolvidável Naranjito cujo autocolante figurou no guarda-fatos da minha irmã por muitos anos. Felizmente, a memória colectiva desse campeonato tornou-se matéria de lenda, e atestou-o como o melhor de sempre. Falo sobretudo sobre o “escrete”, o “time” brasileiro - a mais grandiosa equipa que não foi campeã. Futebol deslumbrante e um conjunto de nomes que não se esquecem, como Sócrates, Falcão, Cerezo ou Zico. Pese o facto de Zico ser filho de tondelenses como eu, é em Sócrates que o meu fascínio se detém. Enorme jogador da cabeça aos pés, inteligente nos pés e na cabeça. Foi também poeta, músico, político, jornalista, actor. Trata-se do melhor Sócrates lusófono que já existiu e que, por acaso, também tinha “de Sousa” no nome, como outros Sócrates lusófonos. Na verdade era “de Souza”, mas não evitei ser desonesto para que o Sócrates português também se sentisse homenageado.
Em 1986 no México aconteceu o melhor Mundial de sempre. Por todas as razões e mais alguma. Ou, aliás, por nenhuma razão que não esta: Diego Armando Maradona. Quando me lembro do desaire português, ou de Saltillo, parece-me outra realidade, outro campeonato – porque embora esta seja uma página fundamental na história das nossas selecções, não consegue ofuscar o facto de que 86 foi de Maradona. O argentino marcou golos antológicos, daqueles que dificultam a vida a quem discorda de que ele é o maior jogador de todos os tempos; até o golo com a mão foi o melhor de sempre. Outro dado que consagra o México 86: inventou-se a hola mexicana, a coreografia em forma de onda humana que se tornou numa instituição das bancadas. Ainda hoje nos levantamos em honra do Mundial de há 32 anos.
Itália 90: o melhor de sempre. Tinha sido exactamente a selecção italiana quem, em 82 (e em oposição ao futebol poético dos brasileiros), fizera valer a táctica da contenção. Esse paradigma que privilegia a defesa pode ter alastrado de tal forma que, em 1990, assistimos ao mundial com mais cautelas e menos golos da História. Como explicar então que tenha sido melhor de sempre? Assim: o futebol é feito de jogadores mais do que de estatísticas. 1990 traz nomes que perduram, muitos deles figuras à partida com estatutos e expectativas secundários. Caniggia, Higuita, Gascoigne ou Savicevic estão na ponta da língua, mas o trono da memória deste campeonato só tem um pretendente: Roger Milla.
Em 1990, Milla tinha quase 40 anos, embora o debate seja se este “quase” aparece por excesso ou por defeito. Era o líder da surpreendente e indomável selecção camaronesa, que é bem provável que tenha marcado mais o Itália 90 do que a campeã Alemanha Ocidental. Os Camarões trouxeram alegria e desmazelo a um Mundial aprumadinho e, embora não revolucionassem qualquer aspecto técnico-táctico do futebol, revolucionaram uma parte fundamental do jogo: os festejos. A ginga celebrativa de Milla fez mais história na modalidade do que o 4-4-2 em losango. Noutras músicas, Itália 90 também ficará para sempre marcado pelo Pavarotti a cantar a “Nessun Dorma”; há 28 anos que é legal comovermo-nos num estádio.
(continua na próxima semana)
SÍTIOS CERTOS (para ver a bola)
O supracitado citador Pedro Adão e Silva
Portugal já tem um campeão do mundo deste Rússia 2018. Seu nome, Bruno Vieira Amaral. Um 10 à antiga.
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