Vimos um presidente que dedicou todo o mais importante discurso da vida dele a enfatizar a busca da unidade e a apelar ao respeito democrático pelas diferenças. Nem precisou de introduzir temas novos. Reforçou, com coerência, o que sempre disse: tem uma agenda política assente no ideal humanista de socorro aos que estão mais frágeis (prioridade imediata para a emergência da pandemia e consequências económicas e sociais) e no estancar do ódio, ao mesmo tempo que reanimar o mercado de trabalho e relançar as parcerias com o mundo democrático. Com respeito pelas instituições, decência, normalidade.
Vai conseguir? Apetece reformular a pergunta: vão conseguir? Porque, mais do que um presidente, vai estar em ação uma presidência, com a vice a conduzir boa parte da agenda. Não se esperem milagres. Biden e Kamala herdam a presidência de um país gangrenado pelo racismo sistémico e martirizado pela pandemia que já levou nos EUA mais de 400 mil vidas.
A dupla presidencial vai ter de saber lidar com as muitas linhas políticas dentro do Partido Democrata (Biden é a ala centrista de um partido onde a esquerda ganha peso e reivindica) e com os 74 milhões de americanos que votaram Trump, muitos dos quais continuam na realidade alternativa e convencidos de que Biden e Kamala não ganharam.
A nova presidência vai ter de agir muito depressa e conseguir resultados, para começar a restaurar a alma democrática da América.
Biden tem o trunfo da enorme experiência política – que era de nível mínimo no antecessor. Há bons sinais, com a mobilização de novos recursos para a vacinação contra a Covid-19, a regularização imediata de famílias separadas de migrantes indocumentados em território dos EUA, reintegrar o Acordo d Paris sobre o clima, regressar à OMS. A nova Casa Branca dá a volta aos quatro anos de diplomacia unilateral de Trump – é um posicionamento que vai ajudar António Guterres na ONU. Biden vai cooperar com os aliados, em vez de os denegrir.
Não faltarão obstáculos. Fazer desaparecer a sombra de Trump é um esforço para os próximos meses. O processo de impeachment, sendo clarificador, pode perturbar a normalidade na agenda. Saber lidar com o trumpismo instalado é outra tarefa política.
Esta América viveu no dia de reis um quase golpe de estado. O país está partido, mortificado.
A vida de Biden está marcada pela coragem – diz-se resiliência – perante as tragédias. Aprendeu a construir confiança e otimismo. Tem experiência de sobra para se impor como presidente da reconciliação no país que nos últimos anos foi empurrado para o rancor.
O dia da posse presidencial nos EUA, com celebração da democracia, da convivência e da decência bem poderia ser um espelho para os portugueses que votamos no domingo. Que bonito que uma poeta, Amanda Gorman, aos 22 anos, tenha assumido as mais poderosas e estimulantes palavras da cerimónia de posse retratada por estas quinze primeiras páginas: The News Journal, The Buffalo News, The Daily Herald, The Express-Times, The Washington Post, The New York Times, Frankfurter Rundschau, Le Soir, Le Temps, Estado de S.Paulo, La Opinión, Novedades, Le Journal de Montréal, The Globe and Mail.
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