
CAPÍTULO UM
A GUERRA DE ESPIONAGEM DE CEM ANOS
O passado nunca está morto. Nem sequer é passado.
— William Faulkner, Requiem por Uma Freira
O relatório confidencial sobre a Ucrânia chegou aos serviços secretos britânicos num dia frio de fevereiro. Provinha de um oficial que tivera um encontro com um agente de confiança, um nacionalista ucraniano exilado na vizinha Polónia. Segundo o agente, os russos reconheciam que só conseguiriam segurar a Ucrânia pela força e que os ucranianos lhes eram «geralmente hostis e hostis às suas ideias». Por isso, continuava ele, os russos eram incapazes de retirar vantagens económicas da Ucrânia, que deveria abastecer a Rússia de alimentos. Em vez disso, a Rússia não estava a obter nada além do que tomara à força numa zona estreita junto às principais linhas ferroviárias. O relatório prosseguia: «O meu informador aspira naturalmente à reconstrução de um Estado ucraniano independente e estava ansioso por saber como seria recebido no estrangeiro um tal Estado e se este poderia esperar obter algum apoio financeiro ou outro. Fiz-lhe notar que agora nenhuma potência interviria contra a Rússia e que os russos, em massa, nunca permitiriam que a Ucrânia se separasse inteiramente da Rússia.»
Este relatório foi escrito não em fevereiro de 2022, mas em fevereiro de 1922, exatamente cem anos antes. No que diz respeito aos serviços secretos ocidentais, à Ucrânia e à Rússia, o que é velho volta a ser novo.
O que nem o oficial dos serviços secretos britânicos nem o agente ucraniano sabiam era que o serviço secreto soviético, a Tcheka — abreviatura de Comissão Extraordinária para o Combate à Contrarrevolução e à Sabotagem, concebida por Vladimir Lenine —, estava a criar falsos grupos nacionalistas ucranianos, a fim de atrair exilados que, no regresso, eram presos, torturados e executados. Durante anos, os serviços secretos soviéticos continuariam a utilizar grupos ucranianos falsos para atingir os serviços secretos ocidentais, fornecendo-lhes desinformação e prendendo os seus agentes. Os serviços secretos ocidentais ripostaram, apoiando ucranianos exilados e providenciando o regresso de alguns deles. Os nacionalistas ucranianos que trabalhavam para os serviços secretos ocidentais passavam a ter os seus nomes no topo das listas de homicídios de Moscovo.
Espiões — A Épica Guerra de Espionagem entre o Leste e o Ocidente é a história do conflito de espionagem travado entre a Rússia e os países ocidentais, de forma mais ou menos contínua, durante o século passado. Esta guerra foi movida pela fraqueza e insegurança políticas, económicas e militares da Rússia, e não pela sua força. Embora a Rússia professe a sua condição de «grande potência», os seus líderes sempre tiveram plena consciência das suas insuficiências, na comparação com os seus rivais ocidentais. Ao abraçar a espionagem, a sabotagem, a subversão e a guerra de informação, o Kremlin tentou, antes, durante e depois da Guerra Fria, corrigir o desequilíbrio de recursos entre o Leste e o Ocidente.
Esta é também a história de como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos da América (EUA) montaram a sua própria guerra de sombras contra a Rússia. É uma história do melhor e do pior da humanidade: bravura e honra, perfídia e traição. A nossa narrativa e as personagens que encontramos ao longo do caminho merecem o epíteto de «épicas». A história percorre continentes e décadas, das ruas gélidas de Petrogrado (São Petersburgo), em 1917, às praias sangrentas da Normandia na Segunda Guerra Mundial; de golpes de Estado em terras distantes à utilização atual da guerra sintética, pela Rússia e pela China, com bots da Internet a serem lançados durante a pandemia «infodémica» do coronavírus. A história é a da intersecção de forças estruturais com a ação humana e da sua repercussão nas questões globais; é a da ascensão e queda das superpotências, do passado, presente e futuro da Rússia e do crescente poderio da China.
Este livro foi escrito tendo como pano de fundo a invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022. A Rússia desencadeou uma guerra na Europa — palavras aterradoras, que eu, tal como a maioria das pessoas, pensava terem sido relegadas para o caixote do lixo da história. E, porém, cá estamos nós, como que a viver uma regressão histórica, a acompanhar diariamente a guerra da Rússia através de um ciclo noticioso de 24 horas. As cenas chegam ao Ocidente na televisão e nas redes sociais — a guerra da Ucrânia é a primeira guerra do TikTok, com vídeos em direto das suas linhas da frente. Eles teletransportam-nos para horrores que parecem do século passado: bombardeamentos, destruição, tanques e veículos em chamas, pilhagens, saques, deportações, corpos nas ruas e valas comuns. Como historiador, é impossível ver as imagens de guerra que chegam de Kiev, Kharkiv e Odessa e não pensar em como estes mesmos lugares conheceram um destino semelhante à mercê dos soviéticos, na década de 1930, dos nazis, dez anos depois, e dos soviéticos novamente, após 1945 e durante décadas.
Vemos a agonia nos rostos de mães e crianças em fuga, quando se despedem daqueles que corajosamente ficam para trás, na Ucrânia, para lutar. Lemos e ouvimos falar de soldados que violam mulheres, de centenas de milhares de civis que são deportados à força, da propaganda estatal orwelliana que descreve a «operação militar especial» da Rússia e de atrocidades contra civis ucranianos, talvez até de genocídio. É sabido que as forças russas operam crematórios móveis para se desfazerem dos seus próprios soldados, mortos em combate, e potencialmente para erradicarem provas dos seus crimes de guerra. Os facínoras políticos de Vladimir Putin desceram ao patamar do estalinismo, não por uma questão de retórica, mas de precedente. A invasão da Ucrânia por Putin é um desastre estratégico para a Rússia, decorrente de uma falha na recolha e na análise de informações, semelhante ao mau uso das informações por Estaline antes da invasão nazi da União Soviética em 1941. O espetáculo oferecido por Putin, a repreender e a humilhar publicamente o diretor do Serviço de Informações Estrangeiras da Rússia (SVR), Serguei Narichkin*, na bizarra reunião do Conselho de Segurança Nacional, televisionada (e pré-gravada) nas vésperas da invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, foi um vislumbre da adulação incapacitante que o líder da Rússia exige, como exigiam os seus antecessores no Kremlin. No palácio de Putin, não há espaço para dizer a verdade ao poder, tal como não havia durante o regime de Estaline.
A guerra da Rússia na Ucrânia tornou-se pessoal para mim quando soube do destino de dois dos meus investigadores neste projeto. Um deles fugiu para o Ocidente, através da fronteira ucraniana. O outro ficou em Kiev e pegou em armas; enquanto escrevo, está vivo e a combater — um homem que, ainda há poucas semanas, não tinha experiência militar. Outros dois investigadores da minha equipa estavam em Moscovo: um fugiu com a família para a Arménia, quando o governo de Putin resvalou da autocracia para a ditadura; o outro ficou, tentando resistir a partir do interior, de todas as maneiras possíveis. Entretanto, enquanto este livro avança para a impressão, Putin ameaça com o uso de uma arma nuclear tática na Ucrânia. Agravar a situação para depois recuar é uma estratégia militar russa de longa data. As potências ocidentais, lideradas pelos EUA, estão a empreender uma diplomacia nuclear arriscada com Putin, não muito diferente da que foi utilizada na crise dos mísseis cubanos, no auge da Guerra Fria. Segundo o chefe da CIA, William Burns, a guerra da Ucrânia é uma guerra que Putin não pode perder. Quanto mais vitórias tiver a Ucrânia no campo de batalha, mais provável será que Putin venha a utilizar uma arma nuclear tática.
Quando o leitor estiver a ler esta frase, já deveremos saber se esse horror se tornou realidade. Talvez, nessa altura, Putin já não esteja no poder na Rússia. Só podemos ter esperança.
A Revolução Bolchevique na Rússia, em 1917, a intervenção ocidental na mesma e a subsequente Guerra Civil Russa lançaram as bases para um século de conspirações clandestinas entre a Rússia, a Grã-Bretanha e os EUA. Durante a maior parte desse período, os serviços das potências ocidentais estiveram à defesa, reagindo à guerra secreta que a Rússia travava contra elas. O leitor teve, provavelmente, vislumbres dessa guerra nas manchetes dos jornais nos últimos anos — espionagem, desinformação, troca de espiões, interferência eleitoral, homicídios —, mas falta-lhes frequentemente contexto. Este livro fornece esse contexto. Aborda as atividades dissimuladas que todos os governos realizam, da mesma forma que os ladrões roubam bancos e os soldados andam armados. A diferença é o modo como essas armas são usadas — os seus fins.
Nas democracias ocidentais, como a Grã-Bretanha e os EUA, as agências de espionagem têm operado geralmente no quadro de um sistema de controlos e contrapesos baseado em regras, com uma imprensa livre que investiga as suas atividades — e que o fazia mesmo quando as próprias agências eram secretas e não assumidas, como aconteceu na Grã-Bretanha durante a maior parte do século XX. Nas democracias liberais, as agências de espionagem existem para proteger os seus cidadãos; nos Estados autoritários, operam para escorar e apoiar o regime no poder. É claro que houve falhas e abusos épicos dos serviços secretos nas democracias ocidentais; operações desmioladas em terras distantes que pouco contribuíram para as grandes estratégias de qualquer um dos lados e que, provavelmente, até as prejudicaram. A diferença entre os países ocidentais e a Rússia, no passado e no presente, reside no facto de, nos primeiros, na maioria dos casos, acabarmos por lidar com esses erros e abusos. Os serviços secretos na Rússia têm funcionado sem controlos e contrapesos, sem o primado da lei, sem supervisão política, sem responsabilização; sem uma imprensa livre, independente, que investigue as suas atividades. Como me disse um desertor russo, o único limite para o Serviço de Segurança russo (FSB) é a eficácia operacional — e não considerações legais, éticas ou morais.
Embora este livro descreva um conflito entre «o Leste e o Ocidente», esta é, na verdade, uma história acerca de duas superpotências, a União Soviética e os EUA, e outra potência global, a Grã-Bretanha, que continuou preeminente no mundo da espionagem, mesmo tendo o seu domínio militar diminuído. A razão pela qual escolhi estudar estes países foi, primeiramente, a disponibilidade de registos e, em segundo lugar, o facto de terem sido as principais potências da espionagem durante a Guerra Fria. Os serviços secretos soviéticos desempenhavam uma função de comando na relação com os seus aliados na Europa de Leste. «Nem sonhávamos fazer nada de significativo sem instruções de Moscovo», contou-me Ladislav Bittman, um desertor dos serviços secretos checoslovacos (StB). No que respeita aos serviços estrangeiros, os chefes de espionagem soviéticos viam o MI6 britânico, e depois a CIA, como os seus principais adversários. Por si só, essa já é razão suficiente para estudar as operações na sombra do KGB, do MI6 e da CIA. Igualmente significativo é, no Ocidente, as próprias agências britânicas e norte-americanas terem relações de espionagem excecionalmente próximas. Elas foram as duas primeiras integrantes da aliança «Cinco Olhos», que impulsionaram — os outros três olhos vieram a ser a Austrália, o Canadá e a Nova Zelândia. Os Cinco Olhos foram o mais importante esforço de espionagem ocidental durante a Guerra Fria, tendo perdurado até aos dias de hoje. Tal não quer dizer que outras agências no Ocidente e no Leste, e diferentes participantes, não tenham sido relevantes, mas qualquer estudo tem de ter os seus limites. Alguns intervenientes importantes, como os serviços secretos franceses, têm apenas papéis secundários no espaço aqui disponível.
Utilizo amiúde a expressão «o Ocidente». O Ocidente a que me refiro não é uma área geográfica, mas um conjunto de ideias e alianças e uma forma de governo centrada na democracia liberal, que inclui liberdades de expressão e de associação política e o primado do direito. A sua existência contrasta com o primeiro e principal Estado de partido único do mundo, a União Soviética, atualmente a Rússia, onde não existe um poder judiciário independente, nem uma imprensa livre, e onde o funcionamento dos serviços secretos serve o regime e oprime o seu povo. Utilizo «o Leste» como uma simplificação, para me referir à forma de governo da União Soviética, tomando cuidado, claro, para não o confundir com «Leste» no sentido orientalista — generalizando sobre as línguas e as culturas da Ásia.** Os serviços secretos, no sistema soviético, como em todos os Estados autoritários, tinham disfunções intrínsecas; os seus chefes apenas forneciam, muitas vezes sob ameaça de morte, informações que os líderes estavam dispostos a ouvir. Os serviços secretos de Moscovo funcionarem, em grande parte, sem controlos e as sociedades ocidentais serem abertas implicava uma fundamental assimetria de armas entre os dois lados durante a Guerra Fria. A CIA tinha de gastar milhões de dólares para roubar segredos sobre os mísseis soviéticos. Os espiões soviéticos podiam comprar um exemplar da Aviation Week & Space Technology.
O meu objetivo é também, então, perceber o que se passa afinal com a Rússia e os seus serviços secretos. Falo de uma «guerra de espionagem»: os bolcheviques consideravam estar em «guerra» com as democracias ocidentais muito antes do início da Guerra Fria. A sua guerra era tão ideológica como prática, com os serviços secretos no papel de soldados de infantaria. Lenine, líder dos bolcheviques e primeiro chefe da União Soviética, arrogava-se a aplicação científica da história. Ele servia-se da obra de Karl Marx, escrita no século XIX, para criar um regime que iria derrotar os poderes «burgueses» capitalistas e ocidentais, substituindo-os por uma utopia socialista universalista. Era uma luta pela futura ordem mundial. Os principais alvos dos serviços secretos soviéticos, a vanguarda da revolução comunista soviética, foram a Grã-Bretanha, a maior potência imperial (e, portanto, capitalista) do mundo, e depois os EUA. Estes entraram na Primeira Guerra Mundial e imiscuíram-se nas questões globais, no mesmo ano em que os bolcheviques tomaram o poder na Rússia. A democracia americana e os seus enormes recursos económicos vieram colocar o país em rota de colisão ideológica e geopolítica com o regime soviético, por mais que Washington tentasse manter-se fora da política mundial.
Quatro temas correm como fios de um novelo sombrio ao longo da história que iremos contar. Os três primeiros são os elementos de ação das agências secretas: a espionagem (roubo de segredos), a subversão e a sabotagem. As duas últimas constituem ações encobertas, como são conhecidas no Ocidente, ou — na Rússia — medidas ativas. A estas atividades «cinéticas» dos serviços secretos no Leste e no Ocidente acrescenta-se um quarto tema e elemento do mundo secreto, o papel da análise: compreender os objetivos e as capacidades de um adversário. Estes quatro empreendimentos são tão antigos como a história, mas atingiram novos níveis durante a Guerra Fria, graças às superpotências. Hoje, os elementos de ação também têm lugar no domínio cibernético, que oferece um novo meio para uma metodologia muito mais antiga. Como veremos, estas três componentes — espionagem, subversão e sabotagem — continuam em jogo, mesmo quando as relações melhoraram ostensivamente entre o Leste e o Ocidente.
Ao longo do caminho, compreendemos o que motivou as pessoas a espiarem para outro país — por outras palavras, o drama humano. Afinal, o traidor de um lado é o herói do outro. Este relato, contudo, em última análise, envolve mais do que a Rússia e o Ocidente. As suas conclusões dizem respeito à China. A história da Guerra Fria do século XX difunde um alerta urgente sobre o conflito de informação que o mundo ocidental, particularmente os EUA, já enfrenta em relação à China, a nova superpotência mundial. No que diz respeito à informação e à segurança nacional, os EUA já se encontram numa Guerra Fria com a China. Mais uma vez, tal como no conflito anterior, os serviços secretos estão na linha da frente da luta pela futura ordem mundial, desta vez entre a democracia e o autoritarismo, como corretamente resumiu o presidente Joe Biden. A guerra de Putin na Ucrânia é um alerta para o conflito ideológico entre a democracia e a autocracia. Desde as vésperas da guerra, a Rússia e a China forjaram uma aliança «sem limites». Esta constitui um eixo que expressamente se opõe às democracias ocidentais. Aparentemente, a China está prestes a fornecer à Rússia ajuda mortífera contra a Ucrânia. Se tal acontecer, quaisquer dúvidas sobre uma nova Guerra Fria entre o Leste e o Ocidente irão certamente dissipar-se.
A Guerra Fria do século passado não é, com certeza, uma analogia perfeita para o conflito global que se desenrola entre os EUA e a China, que é mais complexo. O peso económico da China e as implicações da sua integração nos mercados mundiais tornam o país um adversário mais desafiante — e possivelmente mais perigoso — do que a União Soviética alguma vez foi. A China e os seus espiões são como a União Soviética com esteroides. Em 2021, o FBI abriu uma investigação relacionada com a China a cada 12 horas.
Sei que cada um de nós, todos os dias, é bombardeado por um ciclo impiedoso de notícias. Pela minha experiência, a tentativa de nos mantermos informados sobre os acontecimentos costuma degenerar numa navegação apocalíptica, pela noite fora, num interminável Twitterverso. Se o leitor for como eu, sem fôlego para um tal dilúvio de informação, ler uma antecipação das principais conclusões de Espiões será útil. Encaro-as não como argumentos, que, na minha opinião (de antigo advogado), podem sugerir algo pouco natural, mas antes como a minha avaliação da situação, baseada em sete anos de investigação em quatro continentes e na leitura de dezenas de milhares de páginas de registos secretos desclassificados em arquivos dos serviços secretos britânicos, norte-americanos, russos e de alguns países do antigo bloco soviético. O que se segue é a minha interpretação dos acontecimentos e do seu significado.
* No texto original, «Sergey Naryshkin», transliteração inglesa do russo. A tradução seguirá normas de transliteração portuguesa do alfabeto cirílico russo, bastante mais úteis, para o leitor português, na pronúncia dos numerosos nomes russos (de pessoas e organizações) e expressões russas presentes no texto. Assim, por exemplo, «Iejov» e não «Yezhov», «Guzenko» e não «Gouzenko», «Tcheka» e não «Cheka». A transliteração original inglesa mantém-se nas referências bibliográficas. [N. do T.]
** O uso do termo «Leste», em português (e outras línguas), para referir um dos polos da Guerra Fria, subentende a geografia e a política europeias (englobando o extenso território asiático da federação russa). Ao longo do livro utilizamo-lo, em vez de «Oriente» (que só no contexto do último capítulo faria sentido), como contraponto a «Ocidente». [N. do T.]
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