
1
Algures ao largo da costa do oceano Pacífico, na plácida água azul do golfo do Panamá, Francisco Aquino encontrava-se sozinho no barco que ele próprio construíra a partir do tronco de um cedro, que descascara e escavara com uma simples enxó e uma faca torta. Tinha-o desbastado e alisado, passado a mão sobre cada superfície e curva, e desbastado e alisado de novo, até conferir àquela peça única de madeira a forma do que ele acreditava ser o barco mais magnífico à tona do mar.
Francisco estava sentado e segurava o remo pousado no colo. Tinha os joelhos fletidos e os pés bem assentes no fundo do casco, ao lado do carreto e de um balde de madeira que ele usava para tirar água do barco, quando esta entrava em demasia. A rede pendia de um dos lados da embarcação.
Todos os dias, menos ao domingo, Francisco levantava-se antes de amanhecer, ia até à beira-mar e desamarrava o barco do poste. Remava para lá da rebentação e, quando estava já suficientemente longe, apertava com força os nós da rede e deixava-a cair. A seguir, remava outra vez, lentamente, escutando o soluço da água sempre que ele tirava o remo do mar e o imergia de novo. Tinha de avançar à velocidade certa para arrastar a rede: demasiado devagar e os peixes não se deixariam enganar; demasiado depressa e fugiriam. Era um equilíbrio delicado, mas Francisco pescara naquelas águas durante a maior parte da sua vida e sabia o que tinha a fazer.
Levantou-se uma brisa vinda de leste que lhe agitou a aba do chapéu. O barco balouçou ligeiramente. Ele esperou pelo melhor momento para dar início à faina. A água dir-lhe-ia. Francisco empurrou o balde com o pé e a seguir puxou-o de volta. Por cima dele, as aves faziam voos picados. Francisco abriu as mãos e estudou a pele áspera, calejada. Uma vez, há muito tempo, numa tarde chuvosa com nesgas de sol, Esme tinha-lhe pegado nas mãos e virado as palmas para cima.
– Há um mapa nas linhas das tuas mãos – dissera-lhe ela.
– Um mapa de quê? – tinha ele perguntado.
E o que respondera ela? Tentava sempre lembrar-se, mas não conseguia.
Francisco dobrou os dedos, cerrando as mãos em punhos, e suspirou. O mar estendia-se a toda a sua volta a perder de vista, cintilante à luz da aurora. Na calmaria, o barco adernava e balouçava.
Infelizmente, a visão de Francisco já não era o que fora em tempos. Semicerrou os olhos, fixando no horizonte o local onde, diziam, um dia se alinhariam navios cem vezes maiores do que o seu barquinho, à espera de vez para atravessar o Panamá. Não conteve uma gargalhada. Era uma ideia ridícula, impossível de contemplar. Todos os marinheiros e exploradores que alguma vez haviam pisado aquela terra desejaram que um dia os navios pudessem passar de um oceano para o outro atravessando o Panamá, mas ninguém saberia dizer ao certo de que forma pretendiam fazê-lo. Afinal, a crista das grandes montanhas da Cordillera, que rasgavam o istmo, erguia-se no caminho, e embora Francisco já tivesse ouvido muitas coisas miraculosas ao longo da vida, um navio atravessar montanhas não constava dessa lista. Sendo assim, diziam eles, iriam fender as montanhas, baixar-lhes a crista, e, quando isso estivesse feito, a água dos dois mares jorraria de cada extremidade e encontrar-se-ia para criar uma passagem. Um sonho delirante. Pôr não um mas dois oceanos num sítio onde durante milhões de anos só existiu terra. Quem poderia acreditar em tal?
Francisco ergueu a aba do chapéu e esforçou ainda mais a vista, tentando lobrigar as silhuetas fantasmáticas de vapores e escunas e vasos de guerra e navios, todas as embarcações que, juravam eles, iriam fazer a travessia. Ele bem olhou, mas, em vez de navios, tudo o que conseguiu ver sobre a água foi o luminoso céu azul. Talvez o problema, pensou, fosse uma pessoa precisar de ter fé para ver coisas que não existiam, para imaginar um mundo ainda por fazer. Juntamente com muitas outras coisas, Francisco também perdera a fé há muito tempo.
2
Do lado atlântico do Panamá, sensivelmente a meio da costa recortada, um navio entrou no porto de Colón. Tratava-se de um vapor do Royal Mail, com roda de pás e altos mastros brancos, que vinha de Barbados e trazia a bordo cerca de vinte e três mil cartas no porão e uns oitocentos passageiros no convés. Os passageiros eram sobretudo homens, oriundos de St. Lucy e St. John e Christ Church e todas as paróquias intermédias. Envergavam os seus melhores fatos, alinhados lado a lado no convés, muito juntos, com baús de latão, malas e uma esperança febril.
Entre eles, sentada no convés a abraçar os joelhos, vinha Ada Bunting, uma jovem de dezasseis anos. Era a sua primeira viagem de navio e passara os seis dias da travessia encolhida atrás de dois caixotes com galinhas, que alguém pusera sobre uma grande escotilha preta, a rezar para não ser descoberta. Na manhã em que saíra de casa, tinha escrito um recado na antiga lousa da escola que deixara de pé sobre a mesa da cozinha, onde a mãe o veria seguramente ao acordar. Tudo o que o recado dizia, ou quase, era que ela ia para o Panamá. Depois, ao primeiro raiar da aurora, Ada vestira as suas roupas de trabalhar no terreno – umas calças puídas e uma blusa de botões –, levara até ao cais o saco de lona onde tinha reunido os seus parcos pertences e lograra, entre o tumulto e a multidão, esgueirar-se para bordo sem ser notada.
Sempre que estava acordada, ouvia as galinhas cacarejar, lutar e piar, e descobriu que se as mandasse calar ainda cacarejavam mais. Pensou que deviam ter fome, por isso no segundo dia esmigalhou umas bolachas que tinha trazido, deixou cair as migalhas pelos intervalos das tábuas dos caixotes e ficou a ver as galinhas debicarem-nas. Aquilo pacificou-as um pouco. No terceiro dia, Ada deu-lhes novamente bolachas e ouviu os seus gorjeios satisfeitos. No quarto dia, partilhou a maçã caramelizada que tinha trazido, tendo o cuidado de retirar primeiro as sementes. No quinto, abriu a tampa de uma lata de sardinhas e, depois de comer ela própria a maior parte e lamber o sal dos dedos quando terminou, deu o resto às galinhas. No sexto dia, a comida que tinha trazido já se acabara, e a única coisa que ela podia oferecer às galinhas para as tranquilizar era aquela que a mãe sempre lhe dava: a certeza de que Deus proveria. Ela tinha de acreditar que aquilo era verdade.
Mal o navio se deteve, todos se precipitaram para a saída. Ada aguardou até a confusão amainar, mas nem mesmo quando se levantou, graças a Deus, lhe prestaram a menor atenção. Estavam todos demasiado ocupados a reunir as suas coisas e a tentar ver, para lá dos barcos à vela e das palmeiras que se perfilavam na costa, como era o Panamá, agora que por fim tinham chegado. Para Ada, a parte da cidade que ela conseguia discernir além da extremidade do cais parecia-se muito com Bridgetown – uma fila de construções de madeira com um ou dois andares voltadas para uma rua principal, lojas com toldos e edifícios com letreiros –, e o facto de parecer tão familiar foi para ela ao mesmo tempo uma desilusão e um alívio.
Com o saco nos braços, Ada abriu caminho para bombordo, como todos os outros. Tinha o fundilho das calças húmido, mas as calças, que a própria mãe tinha confecionado, haviam servido o seu propósito de a fazer confundir-se com uma multidão constituída sobretudo por homens. Durante toda a travessia vira apenas umas poucas mulheres, e todas mais velhas do que ela. Ada também trouxera botas para a viagem – as suas botas pretas de couro, oferecidas por um homem chamado Willoughby Dalton, que andava a arrastar a asa à mãe dela desde há mais ou menos um ano. De tempos a tempos, geralmente ao domingo, quando sabia que elas esta- riam em casa, Willoughby coxeava lentamente caminho acima até à porta da casa com uma nova oferenda nas mãos: flores do campo, fruta-pão ou uma tigelinha de barro. Uns meses antes tinha aparecido com um par de botas pretas de couro. Tinham os tacões gastos e os atacadores esfiapados, mas, quando Willoughby as estendeu, a mãe de Ada aceitou-as e disse «Obrigada», como dizia sempre que Willoughby trazia um presente. E como também sempre fazia, Willoughby disse «Não tem de quê» e não arredou pé do alpendre, como se estivesse à espera de ser convidado a entrar. Era sempre a mesma dança infeliz. A mãe fazia um aceno e fechava a porta devagar, e só quando esta ficava totalmente cerrada é que Willoughby se virava e regressava a sua casa.
O cordame dos mastros chicoteava ao vento e as pessoas empurravam-se e acotovelavam-se. Quando Ada chegou à prancha de desembarque, pôs-se atrás de um homem que trouxera a sua própria cadeira dobrável, esperando que a cadeira a escondesse dos dois oficiais brancos que estavam lá em baixo no cais. Ao fundo da prancha, gritavam:
– Comboio para trabalhadores! Comboio para trabalhadores por aquele lado!
Apontavam para a cidade. O fluxo das pessoas que saíam do navio dirigiu-se para onde os oficiais apontavam e Ada pensou que se queria passar despercebida, o melhor era seguir juntamente com os outros. Até agora não se tinha saído mal, mas havia ainda a possibilidade de um dos oficiais achar suspeito que uma jovem viajasse sozinha, e se a chamassem à parte e descobrissem que viajara sem pagar, o mais provável era porem-na novamente a bordo e mandarem-na para casa. Ada apertou o saco contra o peito quando pôs o pé no cais e passou pelos oficiais. Até mesmo atrás da cadeira dobrável conseguia ouvi-los. Um disse ao outro:
– Vai dizer ao capitão que a carga chegou.
Ela tinha dezasseis anos, mas já sabia o suficiente para perceber que não era do correio que falavam.
Quando Ada entrou no comboio, que na verdade não passava de uma sucessão de vagões abertos com lados de madeira para transporte de gado, este encontrava-se já apinhado de passageiros do navio, pessoas com malas e cestos e plantas e caixotes. Ela abriu caminho até ao canto posterior do vagão e enlaçou um poste com um braço. Com o outro segurava o saco. Além das sardinhas, das bolachas e das maçãs caramelizadas, tinha trazido dois conjuntos de roupa interior, um vestido, um frasquinho com óleo de amêndoa para amaciar o cabelo, uma manta de retalhos que tirara da cama e três coroas de ouro. Desejava ter trazido mais comida, mas não o fizera. Ela punha sempre o carro à frente dos bois, como lhe dizia a mãe, e ali, no comboio, Ada sorriu ao ouvir mentalmente o ralhete da mãe, dito naquele seu tom particular. Sem dúvida que por esta altura a mãe já teria visto o recado, e Ada quase conseguia ouvir o tom dela – muito mais severo – a respeito disso também, a respeito de ir para o Panamá sozinha, como fora, embora o tivesse feito por uma boa razão.
A irmã dela, Millicent, estava doente e precisava de fazer uma operação cujo custo elas não conseguiam suportar. A mãe era costureira e não ganhava muito, e a própria Ada também teria arranjado um emprego, não fora em Barbados isso ser quase tarefa impossível, nos tempos que corriam. Mas no Panamá, segundo todos diziam, encontrar trabalho era tão fácil como apanhar maçãs das árvores. Se todos iam lá apanhá-las, pensara Ada, porque não ir ela também? Ficaria apenas o tempo suficiente para ganhar o dinheiro necessário à operação de Millicent e depois regressaria.
Quando o comboio se pôs em marcha, Ada perscrutou os rostos em torno de si. Havia muitos jovens de fato, todos eles com uma expressão tão tensa e expectante como ela própria se sentia.
O comboio passou pela cidade e chocalhou sobre uma ponte baixa e através de arvoredo frondoso até desaguar num grande campo aberto, que permitia ver as montanhas verde-escuras ao longe. A composição deteve-se com estrépito perto de uma localidade e saíram vários passageiros que se encaminharam para um conjunto de edifícios de madeira erigidos sobre estacas. Um homem, cujas mangas do fato não lhe cobriam os pulsos, olhou em volta e perguntou para ninguém em particular:
– É aqui que vamos ficar?
Outro homem, de calças caqui enlameadas e camisa azul de trabalho, riu-se.
– Do que estavas à espera? De um hotel de luxo?
O homem do fato demasiado pequeno apontou para as casas do outro lado da via-férrea, uma fila de edifícios elegantes, pinta- dos de branco e com uma faixa decorativa cinzenta, e perguntou se não podiam ficar antes ali.
O homem com roupas de trabalho riu-se de novo.
– Aquelas são as casas de ouro. – E depois acrescentou, apontando para os alojamentos precários: – Nós ficamos nas de prata.
Ao ver que o homem do fato demasiado pequeno ficara com uma expressão perplexa, o outro perguntou-lhe se ele não sabia que tudo na Zona do Canal – as lojas, os vagões dos comboios, os refeitórios, os alojamentos, os hospitais, as estações dos correios, e o salário – estava dividido em prata e ouro. Ouro queria dizer americanos; prata, eles próprios.
Em cada aldeia ou vila por onde passavam apeavam-se mais homens. O comboio esvaziou-se. Ada não fazia ideia do sítio para onde devia ir. A certa altura, um homem que ia ao pé dela inclinou-se e perguntou-lhe:
– Então e tu? Tens onde dormir? Só permitem homens brancos nos alojamentos, sabias?
Ada agarrou com força o saco contra si.
– Mas eu tenho um sítio onde podes descansar. – Dizendo aquilo, o homem deu-lhe uma palmadinha na coxa.
Ada virou-se para o encarar.
– Mais depressa descansava no inferno – ripostou.
Largou o poste, dirigiu-se para o outro extremo do vagão e na paragem seguinte, mal pôde, saiu. Num sítio chamado Empire, segundo o chefe de estação, que anunciou o nome em voz alta.
Os homens que também se tinham apeado passaram por Ada e dirigiram-se para os alojamentos. A ser verdade que não permitiam que ela ficasse ali, teria de montar o seu próprio acampa- mento, no meio das árvores. No dia seguinte procuraria trabalho, mas agora estava exausta e só queria pousar a cabeça e descansar. Em sua casa, ela, Millicent e a mãe partilhavam o mesmo quarto nas traseiras, onde cada uma tinha a sua própria enxerga sobre uma estrutura de madeira que a mãe tinha construído. Seria tão bom, não conseguia ela deixar de pensar, deitar-se agora naquela cama, estirar o corpo completamente, cruzando os braços sobre a cabeça e esticando os dedos dos pés! Mas teria de se contentar em estender a manta no chão, se encontrasse uma clareira grande o suficiente onde a estender.
Internou-se uns passos na floresta e sentiu o ar ficar mais fresco, cheirar a coisas vivas. Ada ouvia coisas a deslizar, calcar, assobiar e bater no chão. Por onde quer que fosse, o solo fofo estava coberto de gravetos e musgo, arbustos em flor e troncos. Afastou moitas e encontrou poças e lama. Tanto quanto lhe era dado ver, não havia uma única clareira seca. O céu foi escurecendo enquanto avançava, e Ada sentia-se tão cansada que começava a pensar deixar-se simplesmente cair sobre o mato rasteiro quando vislumbrou o que parecia ser um vagão de transporte de carga no meio das árvores. Estava enferrujado e apodrecido, semioculto pelas trepadeiras e por um véu de vegetação densa, com as rodas pretas enterradas na lama e meio de lado. Ada ficou a observá-lo durante algum tempo, imóvel, para ver se havia mais alguém nas proximidades, mas ouviu apenas o som de animais a deslocarem-se nas árvores. Aproximou- -se então e chamou:
– Está aí alguém?
Como não recebesse resposta, avançou até à porta aberta, que ficava ao nível da sua cabeça, e repetiu o chamamento. Estendeu a mão e bateu três vezes no chão. Nada. Bem, Deus proverá, pensou ela, e içou-se lá para dentro e deitou-se.
De manhã, o zumbido e os pequenos ruídos dos insetos encheram os ouvidos de Ada. Sentou-se lentamente e olhou em volta, recordando-se de onde estava. O sol derramava-se através das fendas entre as tábuas das paredes, dando-lhe luz suficiente para ver todo o interior do vagão. Não havia muito que ver, tirando teias de aranha e montes de folhas trazidas pelo vento.
Ada tinha dormido com as roupas que usara durante a viagem e agora, naquele ar denso e húmido, estas estavam tão molhadas que se lhe colavam à pele. Tirou do saco pousado ao seu lado um vestido feito de retalhos, aos quadrados castanhos e amarelos, costurado pela mãe, e mudou de roupa. Ergueu-se, puxou as mangas até aos pulsos, alisou as pregas sobre as ancas. Calçou as botas e cuspiu nas palmas das mãos para limpar a lama que se acumulara nas biqueiras. Depois pegou no saco. Um vestido seco e umas botas limpas eram um bom começo. Agora tinha de encontrar comida e trabalho.
Na floresta, chuviscava. Havia uma bruma persistente no ar. Tem de haver comida algures, pensou Ada. À luz do dia, via coisas que não tinha conseguido ver na noite anterior: trepadeiras e lianas que pendiam de ramos, folhas com formato de espadas emaranhadas nos fetos. Tudo em todo o lado era ofuscantemente verde.
Verde-azeitona, verde-jade, verde-esmeralda, verde-lima, verde escondido nas sombras, verde iluminado pelo sol. Atravessou cortinas verdes e caminhou sobre tapetes verdes, sempre à espera de ver alguma coisa que reconhecesse – jacas, uvas-da-praia ou papaias – e soubesse que podia comer. Segundo ouvira dizer, no Panamá havia muitas bananeiras, por isso ia perscrutando as árvores, na esperança de distinguir alguma. Na sua terra teria sido mais fácil. Na sua terra, Ada sabia que árvores davam frutos e que arbustos davam bagas tão maduras que lhe rebentavam na boca. No pequeno terreno atrás da casa cultivavam milho e araruta e mandioca e ervas, e comiam o que colhiam ou então, por vezes, faziam trocas com os vizinhos, sendo a melhor de todas a que a mãe fazia quando trocava espigas de milho pelas cerejas que a senhora Callender tinha numa árvore no seu quintal – as cerejas mais doces e sumarentas de Barbados, afirmava a senhora Callender – e quando as comia, Ada ficava com a certeza de que a senhora Callender dizia a verdade. Ao pensar agora naquelas cerejas, Ada sentiu crescer água na boca. Tinha de haver coisas comestíveis na floresta, e ela ia provavelmente encontrá-las se procurasse o tempo suficiente, mas o seu estômago reclamava, e o vestido, que a fizera sentir-se tão bem quando estava seco, estava agora molhado da chuva, e as botas tinham-se sujado novamente de lama. Além disso, ela era impaciente, o que, segundo a mãe, constituía uma das suas piores características, pois fazia com que Ada nunca esperasse o tempo necessário para que as coisas viessem ter com ela.
A cidade estava movimentada. Ada atravessou numa das pon- tas a linha férrea que dividia Empire em dois e desceu as ruas pavi- mentadas do lado americano, pensando que seria mais provável ver anúncios de emprego daquele lado enquanto procurava comida. As bandeiras que pendiam das varandas e esvoaçavam ao sabor da brisa disseram-lhe de que lado estava. Nunca tinha visto a bandeira dos Estados Unidos ao vivo, embora já tivesse visto a sua imagem num atlas, na escola para raparigas que ela e Millicent tinham frequentado. Fora no mesmo atlas, uma brochura de grande formato com as páginas cosidas, que ela vira também pela primeira vez um mapa de Barbados. Enquanto o mapa dos Estados Unidos preenchia duas páginas inteiras, o de Barbados ocupava apenas a metade inferior de uma página à esquerda. Antes daquilo, nunca lhe ocorrera que Barbados fosse mais pequeno do que qualquer outro sítio do mundo. Contudo, depois de o ver, não conseguiu evitar pensar como seria ir a outro país. Segundo lhe fora dito, todos os seus familiares tinham nascido e permanecido em Barbados. Não muito depois de Ada nascer, a mãe dela abandonara a plantação de cana-de-açúcar onde sempre tinha vivido, e a história dessa partida fora contada por ela muitas vezes a Ada e Millicent – sempre com orgulho. De cada vez que Ada a ouvia, pensava o mesmo: a mãe dela podia ter ido para qualquer sítio. Quando saiu da plantação, podia ter caminhado até à outra ponta de Barbados ou ido de barco até à outra ponta do mundo. Mas no momento de todas as possibilidades, no momento em que tudo podia ter acontecido, a mãe caminhara apenas até ao limite da jurisdição oficial de Bridgetown e assentara de novo arraiais. Tinha cruzado uma linha, mas apenas por um palmo. Conservara o seu mundo pequeno e agora, todos estes anos volvidos, a mãe não tinha nada para lá desse mundo, nem sequer um sonho, que Ada soubesse.
A rua, ladeada de edifícios de um andar e lojas, estava repleta de carruagens e carroças puxadas por mulas e de pessoas que caminhavam, apressadas, sob a chuva miudinha. As mulheres seguravam sombrinhas e os homens tinham os seus chapéus. Ada não tinha nenhum dos dois, e embora tivesse o cabelo preso atrás num carrapito, como de costume, não se preocupara a arranjá-lo quando tinha acordado, e isso, conjugado com a morrinha, significava muito provavelmente que, pensou ela com um sorriso, devia meter medo ao susto. Em criança, era sempre a que tinha terra no vestido, crostas nos cotovelos e cabelo que se recusava a ser penteado a menos que fosse domingo e ela tivesse de ir à igreja, e mesmo nessa altura penteava-o não porque imaginasse que Deus se importava, mas porque sabia que a mãe fazia questão.
Quando Ada já tinha passado por uma tipografia, uma barbearia e um ferreiro, tudo de seguida, a chuva parou. O estômago dela roncava. Tinha de haver um mercado algures, talvez do outro lado da linha férrea. Com o saco nos braços, parou na rua, a pensar se deveria voltar atrás e atravessar o caminho de ferro. Nesse momento, um homem que se encontrava na entrada de uma viela assobiou-lhe. Ada ter-se-ia virado, não fora ele apontar-lhe para um carrinho de mão de madeira que tinha ao seu lado, com uma pilha de fruta.
– Papaias, mangas, ananases, sapotas! – apregoou o homem enquanto ela se encaminhava para lá. Ele pegou numa manga e estendeu-a.
Ada sentia tanta fome que poderia ter comido tudo o que estava no carrinho, e mesmo nas sombras da viela conseguia ver tanta fruta colorida e madura que começou a mastigar em seco.
– Disse sapotas? – perguntou ela. – Abricotes?
O homem trocou a manga por um fruto que estava empilhado numa das extremidades, com casca castanha irregular.
– Sapota – disse ele.
Aquilo era igual a um abricote. Em Barbados ainda não estavam maduros, mas todos os anos, em abril, Ada aguardava-os com ansiedade. A mãe mergulhava a polpa em água salgada para lhe cortar o amargor e ela e Millicent comiam-nos assim mesmo, ou então a mãe usava-os para fazer doce.
– Quanto custa um? – perguntou Ada.
– Quieres?
– Quanto dinheiro?
Mas o homem limitou-se a sorrir-lhe.
Ada pousou o saco e procurou as moedas que tinha trazido. Três moedas de uma coroa, que a mãe tinha guardadas. Ada encontrara- -as uma vez que andava a bisbilhotar, e sempre que depois fora lá ver, permaneciam intactas. A mãe talvez estivesse a poupar aquele dinheiro, mas Ada trouxera-o na certeza de que em breve o devolve- ria redobrado. Retirou uma moeda e estendeu-a para que o homem a visse. Uma coroa era demasiado por uma única peça de fruta, mas nesse momento estava-se nas tintas. Precisava de comer qualquer coisa. Quase conseguia sentir o sabor do abricote, o sumo a escorrer-lhe nas gengivas.
O homem pegou na moeda e, segurando-a entre dois dedos, virou-a uma e outra vez, examinando-a. Acenou apreciativamente, meteu a moeda no bolso e entregou o fruto a Ada.
Com uma unha, Ada afastou imediatamente a casca espessa e mordeu a polpa. Era tão macia que ficou capaz de chorar. Ainda na entrada da viela, com o saco aos pés e o homem a vê-la, extraiu o fruto com os dentes e comeu cada pedacinho da polpa até ao caroço, que depois chupou até perder o sabor. Atirou-o então para o chão e limpou a boca com as costas da mão.
O homem ao lado do carrinho de mão olhava para ela com olhos arregalados de assombro.
Ada sorriu.
– Obrigada – disse ela enquanto se inclinava para pegar no saco.
Sentia-se melhor, agora que tinha um pouco de comida no estômago. Mal conseguisse, escreveria uma carta e mandá-la-ia para casa. Se a mãe estava preocupada, como Ada imaginava que estaria, uma carta iria ajudá-la a tranquilizar-se. Se a mãe estava zangada, como imaginava que também estaria, não havia muito que ela pudesse fazer quanto a isso.
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