
“Uma Outra Forma” é um espetáculo destinado a crianças entre os 6 e os 10 anos, que combina dança e teatro, e no qual duas amigas dão a conhecer a história de Louis Braille, o criador do sistema de escrita e leitura tátil para pessoas cegas ou de baixa visão, para, a partir daí, mostrar que é possível fazer tudo mas de “uma outra forma”.
“Eu já andava há muito tempo com muita vontade de fazer alguma coisa com crianças”, contou à Lusa Joana Gomes, intérprete e cocriadora do espetáculo, bailarina cega da CiM — Companhia de Dança.
“Acredito muito que é nesta geração dos mais pequeninos que pode haver uma sociedade um bocadinho melhor, mais informada, mais esclarecida”, defendeu.
Recordou que tudo começou em 2017, quando fez um projeto em escolas públicas, em contexto de sala de aula, com crianças dos 6 aos 16 anos, que, pela primeira vez tiveram oportunidade de fazer perguntas sobre o que é a cegueira.
“Colocavam questões [como] por exemplo: ‘tu choras?’, ‘tu sonhas?’, ‘tu não vês mesmo nada?’, e grande parte delas é a base da construção deste espetáculo. Todas as perguntas que a Inês faz são perguntas que surgiram em contexto de sala de aula com crianças”, explicou.
Num momento do espetáculo, as duas amigas estão deitadas, cada uma num colchão, a ler. Uma lê num ‘tablet’, outra em papel, passando os dedos pelos vários conjuntos de pontos que constituem a linguagem braille.
É nessa altura que Inês pergunta a Joana: “Mas tu não vês mesmo nada?” ao que Joana responde: “Se estiveres a falar de ver cores, sombras, luzes, não, isso não consigo ver nada. Se estiveres a falar da história deste livro, sim, isso eu consigo ver tudo porque está em braille”.
Depois, Joana explica como Louis Braille criou o sistema de leitura a partir do código morse, com seis pontos e 66 combinações diferentes, com apenas 15 anos.
As duas amigas mostram como é possível escrever braille com o corpo e num tapete com seis circunferências posicionam mãos e pés consoante a posição dos pontos de cada letra e vão também escrevendo palavras que, no dia do espetáculo, serão as crianças entre o público a sugerir.
Joana diz que sonha, mas que os seus sonhos são estranhos porque não consegue ver as pessoas, mas consegue senti-las e Inês fica surpreendida com as capacidades da amiga: “Então tu vês tudo, mesmo tudo!”.
“Eu faço tudo como tu, mas de outra forma”, respondeu Joana.
À Lusa, Joana Gomes referiu que o seu maior objetivo era conseguir falar “de uma forma leve sobre a deficiência visual”, que ao mesmo tempo esclarecesse o que é a deficiência, o que é o braille e que ajudasse a “descomplicar as cabeças” dos mais pequenos.
“Para quem não tem deficiência visual, também ajuda muito a perceber que tipo de perguntas é que podemos fazer, ou como é que podemos ajudar ou não, ou até simplesmente como é que o braile funciona, porque nunca ninguém nos explicou”, acrescentou Maria Inês Costa, intérprete e cocriadora.
Joana acredita que depois de verem este espetáculo, as crianças vão perceber que “a cegueira não é complicada e que há uma vida para além da cegueira”.
“Se calhar para muitas daquelas crianças, ver uma pessoa cega a dançar é uma coisa que nunca lhes tinha passado pela cabeça. Ou seja, [a mensagem] é que independentemente da deficiência, há uma série de potencialidades à volta e há vida”, apontou.
No final do espetáculo é feito um workshop com as crianças que estiverem a assistir, no qual podem perguntar tudo o que quiserem, tendo havido quem tivesse querido saber se as pessoas cegas cozinham, como é que escolhem a fruta ou outras coisas que “podem fazer muita confusão, mas que na realidade são simples”.
“Crianças esclarecidas serão adultos informados”
“Tenho a certeza que esclarecidas essas perguntas, no dia que eles se cruzarem com alguém com deficiência visual, de certeza que a abordagem é diferente”, disse Joana, que admitiu que em alguns momentos da sua vida se sentiu “um bocadinho quase como quando se compra um eletrodoméstico novo e não se olha para o manual de instruções”.
Defendeu, por isso, que se as crianças forem esclarecidas nas suas dúvidas, “vai ser muito mais simples viver em sociedade”, já que “crianças esclarecidas serão adultos informados”.
O espetáculo vai estar entre os dias 05 e 10 de maio no Espaço dos Coruchéus — Um teatro em cada bairro, sendo que entre 05 e 09 de maio as sessões são exclusivas para escolas, enquanto no dia 10 é destinada ao público em geral e tem audiodescrição.
Joana considera-se uma privilegiada “enquanto pessoa com deficiência” por trabalhar para uma companhia e poder apresentar as suas criações e defendeu que os projetos artísticos feitos por pessoas com deficiência precisam ser vistos pela sua qualidade, independentemente da deficiência de quem o cria.
Disse ainda que gostava que existissem mais escolas onde as pessoas com deficiência pudessem ter formação artística de forma livre, apontando que esse é um défice em Portugal.
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