Numa conversa despida de complexos e tabus, Vasco Baptista, José Rebelo de Andrade e António Prim, três jogadores da seleção nacional de râguebi, abriram a porta do balneário do Estádio Universitário de Lisboa (EUL).

Falaram sobre segredos ali partilhados. Abordaram a saúde mental, tema que começa, aos poucos, a ser partilhado. Porque afinal, um homem também chora e já fala do que lhe vai na alma e na mente.

“O balneário tem uma essência especial”, assume José Rebelo de Andrade, 27 anos (20 jogos feitos pela seleção nacional).

No local de onde exala o famoso e misterioso cheiro, cantinho inexpugnável, impenetrável e isolado do exterior, os jogadores equipam-se, colocam ligaduras, besuntam-se com cremes e, ombro a ombro, escutam as últimas palavras antes dos jogos, da tal ida “para a guerra”, como alguns apelidam.

“Mas, a preparação começa muito antes disso, com o estágio, a fechar o grupo, abstrairmo-nos do que se passa no mundo exterior”, adiantou Rebelo de Andrade. “Depois, com mais foco, na altura da entrega das camisolas no hotel", diz, referindo-se aos jogos da seleção. "A partir daí, já estamos todos num momento de silêncio, cada um no seu mundo”, conta ao abrir esta espécie de confessionário que juntou três lobos.

“Mais do que o balneário, o momento de maior tensão antes de entrar em campo é esta caminhada que vamos fazer (EUL), aquele barulho típico dos pitons a bater no chão” acrescentou António Prim, 22 anos. “É um barulho que adoro, porque é o sinal que vamos entrar para a guerra”, descreve o jovem lobo (12 internacionalizações).

Vasco Baptista, 27, adiciona um detalhe estético. “O jogo não começa no balneário, começa sempre no estágio. Normalmente, no dia antes, já se vê preocupação com a aparência. Gosto de cortar o cabelo, fazer a barba, gosto de ir fresco para o jogo. Há uma frase na Nova Zelândia, que é look good, feel good, play good. Levo muito isso para o jogo. Sentir-me bem para jogar bem, no fundo”, transmitiu. 

Pensamentos no papel e no pulso

Os três lobos juntaram-se por ocasião da apresentação de um estudo “O autocuidado masculino em Portugal” powered by Dove Men+Care, inserido no Rugby Youth Festival, no Estádio Universitário de Lisboa, festival internacional e râguebi juvenil que juntou mais de três jovens jogadores no EUL.

Rebelo de Andrade, jogador da Agronomia, vira o discurso para o lado mais intimista, introduz a componente mental e partilha uma nota de cunho pessoal.

“Cada um tem os seus mecanismos de se regular. Sentia, às vezes, uma ânsia grande de entrar dentro do campo e escrever ajudava-me a baixar os níveis de ansiedade”, confidenciou. “É também uma conversa comigo mesmo”, revelou sobre o hábito de derreter pensamentos num papel nascido no seio da seleção.

“Sem dúvida, ajudou-me bastante na minha performance, porque a performance não é só física, a preparação mental é tão ou mais importante do que o físico. Uma pessoa se não está bem de cabeça, não vai ter a performance desejada”, considera.

António Prim (Direito) seguiu o exemplo do colega de seleção. “Meter as coisas no papel é sempre uma boa forma de fazer com que as emoções sejam reconhecidas, que tome controlo da minha mentalidade para o jogo”.

“Escrevo muito nos pulsos, na tape”, indicou Vasco Baptista. “Tenho os meus próprios triggers e sei no que tenho de me concentrar para cada jogo, para ter a melhor performance e o que é preciso fazer para que aquele jogo corra bem”, expôs. 

Râguebi
Râguebi Vasco Baptista, José Rebelo de Andrade e António Prim créditos: DR

Controlar as emoções para não dar uma pera em alguém

As rotinas fazem parte do pré-jogo e ajudam à construção da pessoa e do jogador. O dado é reconhecido por quem entra em campo. “Nem sempre me apetece treinar, fazer banho de gelo, uma corrida ou um treino físico, mas a realidade é que, essa mesma rotina, essa mesma disciplina, esse sentimento de trabalho feito, acaba por me dar descanso no final do dia”, informou.

Um jogo dura 80 minutos. Corra bem ou mal, Vasco Baptista (CDUL) assume sem medos. “Antes dos jogos não choro facilmente. Depois, depende, se for êxtase de alegria ou uma emoção muito forte, mais de fragilidade, ou de podia ter feito melhor, que é o pior sentimento com que posso sair do jogo, aí choro com relativa facilidade”, registou o atleta que vestiu em 13 ocasiões a camisola dos lobos.

O termómetro das emoções faz de pêndulo das ações dos jogadores em campo. Combatividade, fisicalidade e agressividade são metidos na mesma balança e  Rebelo de Andrade e Vasco Baptista reconhecem a necessidade desse balanço.

“Precisamos de ser físicos, precisamos de ter essa agressividade no contacto, mas não podemos exceder limites, porque se passar essa linha, a minha equipa vai sofrer. Se levar um amarelo, a minha equipa vai ficar sem mim durante 10 minutos, ou se levar um vermelho, o resto do jogo”, assinalou Vasco Baptista.

Rebelo de Andrade vai mais longe. “Às vezes, há situações em que todos queremos dar uma pera em alguém”, sorri. “Mas, se der, vou levar uma suspensão de 12 semanas, é como se tivesse partido um braço. Para isso, não vale a pena. É ter a calma”, frisou.

Lidar com a ausência do Mundial França 2023

A paz de espírito é um estado necessário quando se fica de fora das escolhas dos treinadores, em especial, em momentos com que todos sonham.

José Rebelo de Andrade foi um dos lobos envolvidos na caminhada para o campeonato do mundo de râguebi, França 2023. Viria a falhar, contudo, o Mundial, devido a lesão.

nós ganhou primazia ao eu na gestão do dossier. “A única coisa que disse, foi: ok, Zé, não vais, mas queria transmitir alguma alegria a quem fosse. Por isso, quando foi tomada a decisão, simplesmente fiquei com um sorriso na cara. Escrevi no papelinho, houve ali um processo de digerir muita coisa”, suspirou ao recordar o momento em que liquefez o estado de alma para o papel.  

António Prim juntou-se no mesmo barco da não ida ao Mundial. “O meu primeiro pensamento foi: é muito fácil ser o maior quando as coisas estão a correr de feição, estamos a jogar bem e somos selecionados, é muito fácil estar em cima nesses momentos, ser forte e disciplinado”, soltou. “Quando estamos em baixo, somos cortados, temos uma lesão, aí é que é a verdadeira prova do nosso caráter”, salientou.

Encarou esse infortúnio com “um otimismo brutal”, característica que diz ter. A ausência serviu para testar-lhe o carácter. “Os maiores desafios que aparecem na minha vida são aqueles que vão fazer de mim uma pessoa mais forte e um melhor jogador do râguebi”, frisou.

Falar para dentro e com os amigos 

Vasco Baptista introduz a uma realidade que deve deixar de ser dura de ouvir. “Lidar com a falha faz parte do processo, é inevitável. Nos treinos, falamos muito nisto. Vai acontecer, vamos falhar. É-nos incutido isto, não nos é dado o medo de falhar, mas sim um encorajamento para que, se falharmos, conseguirmos fazer melhor na próxima”, sublinhou.

No processo de crescimento enquanto pessoas e jogadores, aos poucos, uma terceira entidade começa a serpentear pela vida dos atletas. E as conversas interiores dão lugar a diálogos com terceiros.

“Tenho bastante abertura com os meus amigos e colegas de equipa para falar sobre o meu estado emocional e psicológico. Não tenho qualquer tipo de problemas com isso e não tenho problemas em dizer que trabalho semanalmente com um psicólogo”, dispara, sem receios, Vasco Batista.

Vê o psicólogo a “funcionar como um PT da cabeça”, equiparou. “Um PT está para o meu corpo, um treinador está para o meu râguebi e um psicólogo está para a minha cabeça, um treinador da cabeça”, realçou.

Sente-se “cada vez mais à vontade para falar” do tema, reconhece que o sentimento é partilhado por cada vez mais pessoas, no entanto, salvaguarda: “não acho que estejamos num ponto onde existe uma normalidade de dizer que ando num psicólogo, estamos num bom caminho, mas ainda há muito caminho para fazer”, alertou.

Rebelo de Andrade admite o desabafo tardio. “Tenho dois amigos que são meus confidentes, mas só o faço em situações de rutura”, atirou. “Também já recorri à ajuda profissional de psicólogos e sou super apologista disso. Não há problema nenhum”, sublinhou, embora admita a existência de “reticências” no uso desta ferramenta.

“Não vale a pena estar a ignorar esta realidade, mas só o facto de estarmos a ter esta conversa é uma demonstração do longe que já chegámos. Mas ainda existem imensas reservas”, reforçou António Prim, o jogador de verbo fácil debaixo da língua.

Autointitulado de “pessoa que até gosta de falar”, confessa enrolar a voz quando chega a hora de falar assuntos mais emocionais. “Parece que há um entrave, costumo descansar as palavras. Tenho dificuldade em falar sobre esses tópicos, de alguma coisa mais emocional, porque é uma coisa que nunca me foi incutida”, identificou.

Limpar a mente através do suor

Desbravado caminho mais difícil, todos realçam o que de melhor retiram das escolhas feitas. “Uma das belezas do desporto é a capacidade de nos limpar a mente seja do que for”, afirmou Prim. “Se estiver um ou dois dias sem fazer desporto, começo a sentir-me mais ansioso, começo a pensar nas coisas de uma forma diferente, a ter uma perspetiva diferente sobre os problemas da vida”, admitiu. Em contraponto, assim que começa a suar, “liberto uma carga enorme de ansiedade e de stress”, assinalou.

José Rebelo de Andrade finaliza as confissões com um exemplo. “Muitas vezes, saio do trabalho com a cabeça cheia e mal disposto, não quero falar com ninguém, mas, a seguir ao treino, sou outra pessoa, é um alívio, porque foi uma descarga enorme de stress”, descreve aludindo que a prática desportiva provoca “equilíbrio e bem-estar”, rematou.