Prefácio
Sofia saiu de Portugal com a mochila às costas. Tinha 24 anos e não sabia falar inglês, mas foi para terras de Sua Majestade que quis ir. Lá, a vida foi acontecendo. Conheceu o "camone" — palavras dela — que viria a ser seu marido e com quem tem já dois filhos, a Gabriela e o Tiago. Tinham alguma estabilidade. Tinham emprego, uma casa. Mas, a certa altura, "por uma série de coisas que aconteceram", largaram tudo. Venderam a casa e compraram uma carrinha, à qual deram o nome de Maria do Mar: estava tudo a postos para voltar a pegar na mochila (e agora também nos miúdos). Assim regressaram a Portugal.
Com isto, nasceu a página Pais com P Grande, onde Sofia deixa fragmentos de todas as aventuras que vão vivendo, em texto e fotografia. Foi "um projeto que começou sem qualquer plano para ser um projeto". Inicialmente era um forma de os amigos e a família saberem por onde andavam e que estavam bem. Afinal, viver assim parecia um projeto de loucos — mas de loucos todos temos um pouco, diz-se.
As histórias que se seguiram foram muitas. No centro dessas aventuras uma certeza: tudo tinha de estar direcionado para o serviço aos outros, fosse como fosse.
Inicialmente, Sofia deu workshops criativos para famílias nos vários sítios onde paravam. Dos trabalhos manuais à expressão artística, tudo contava. Só era preciso um caixote de tralha na carrinha e a imaginação a funcionar. O resultado foi uma parceria com a Fundação do Gil: todo o dinheiro que conseguiam era doado a quem mais precisava.
Depois de andarem por terras lusas e de regressarem ao Reino Unido, com a Maria do Mar já estacionada, os projetos continuaram. Alguns realizados com toda a família — crianças incluídas —, outros em que era preciso ir sozinha. Sofia ajudou refugiados e caminhou até Santiago de Compostela para alertar para os casos de cancro pelos quais tanta gente passa e que viveu de perto, na doença da sua irmã.
Quando não está de mochila às costas, dá workshops, aulas e encontrou tempo para se dedicar a um livro infantil, Noronha, o ouriço com vergonha, lançado em Fevereiro deste ano.
Dos dias passados sobre quatro rodas à viagem até Fisterra, estas são algumas das histórias que Sofia contou ao SAPO24, num banco de jardim que funcionou como portal para as páginas abertas do seu "diário".
E são essas memórias que podemos ler agora, contadas na primeira pessoa:
Capítulo I
A carrinha comprada pelo OLX, o marido reticente, duas crianças e um cão
A carrinha foi comprada quando ainda estávamos em Inglaterra, sem a vermos. Fui ao OLX, o meu marido disse que era uma ideia completamente maluca, mas fiz ouvidos de mercador e disse 'olha, esta carrinha é gira'. Eu queria uma T2, uma 'pão de forma'. E o meu marido só me perguntava como é que íamos viver lá: precisávamos de um lugar para dormir e qualquer coisa para podermos cozinhar. Então decidimo-nos por uma T3, uma carrinha, de 1987, que estava na zona do Estoril. Liguei à minha mãe [que estava em Portugal], pedi-lhe para ir verificar se a carrinha existia, se não era só uma fotografia. Obviamente que ela não percebia nada de mecânica — foi ver a carrinha, tirou mais umas fotos e eu disse-lhe para negociar o preço e depois enviávamos o dinheiro.
Em 2014, quando chegámos a Portugal — o Tiago tinha um ano e tal e a Gabriela quatro —, a carrinha estava à nossa espera. Estivemos ali um mês e meio para nos prepararmos, se é que há algum tipo de preparação que pudéssemos fazer. Nunca tínhamos feito uma coisa assim, o meu marido no início estava muito reticente. Ele é uma pessoa muito mais pragmática, gosta de conforto e estava muito preocupado sobre como é que íamos ter um bebé e uma criança tão pequena num carro. Mas eu disse que íamos tentar um mês e depois, se não desse certo, voltávamos. Ele concordou, mas disse que um mês era o máximo.
Fomos buscar a carrinha e preparámos o que podíamos preparar. No dia em que a carrinha ia sair do mecânico, porque tinha tido alguns problemas, houve mais um. Uma mola a saltar do motor, nem sei explicar o que aconteceu, só sei que a carrinha ficou ali no estacionamento... Pensei logo 'Ai o caraças!'. No dia seguinte, supostamente, às 9h30 da manhã eu devia estar na Fundação do Gil, em Lisboa, para festejarmos o início da nossa viagem. Tínhamos lá os miúdos à espera, eu ia fazer uma actividade na Fundação. Até nos tinham oferecido um bolo para fazermos uma festinha com as crianças. Estava tudo organizado, não podíamos estar a dizer que não íamos porque a carrinha avariou. Quer dizer, nem que fôssemos a pé! Pensámos em apanhar o autocarro e lá íamos com os miúdos para Lisboa. O Tiago numa mochila, outra mochila com o essencial, e lá fomos nós apanhar um autocarro às quatro da manhã, em Vila Nova de Santo André, no Alentejo. E estávamos na Fundação do Gil a horas e fizemos tudo o que era suposto.
Assim que se revolveu a avaria, fomos embora. E o que era para ter sido um mês [na carrinha] virou cinco meses, muito rapidamente, e o nosso objetivo era mesmo termos continuado. Chegámos a um ponto em que a vida se tornou aquilo. Éramos nós os quatro e um cão que adoptámos também, então era um espaço muito pequeno para tanta coisa a acontecer. Mas foi sem dúvida a melhor experiência da nossa vida! E ainda hoje, quando vejo uma carrinha desse tipo passar... tenho aquela memória. Eu sempre tive o sonho de viver permanentemente assim. O meu marido tem outra perspectiva, que é muito mais sensata. Ele diz sempre 'isto é o que tu queres, é o teu sonho, não é o sonho dos nossos filhos e tu nãos sabes como é que eles se sentiriam'. Quer dizer, foi espectacular. A Gabriela lembra-se muito bem. E o Tiago, quando voltámos para o Reino Unido e ainda tínhamos a carrinha estacionada à porta — até termos decidido que tínhamos de a vender —, ainda pedia 'mãe, podes fazer o jantar na carrinha, hoje?'. Eles habituaram-se àquela vida, em que não precisávamos de nada para sermos muito felizes.
Claro que havia problemas, claro que havia tensão. O meu marido trabalhava, na altura, três dias por semana. Ele trabalha na área de informática, então às sete da manhã tinha reuniões com clientes na Austrália e, quando chovia, tínhamos de estar todos dentro da carrinha com ele a ter reuniões. Imaginem um bebé de dois anos, uma criança com cinco anos, um cão a ladrar... enfim, era o caos [risos].
Apanhámos muita chuva no início, porque começámos em fevereiro. Chovia dentro da carrinha, chegámos a acordar de manhã completamente encharcados, os colchões completamente encharcados. Mas a experiência foi sobretudo, para mim e para os meus, uma história de boa vontade. Fizemos tantos amigos! A página [Pais com P Grande] começou mesmo por isto, não foi tanto por minha causa nem por causa da minha escrita. Havia tanta gente que nos dizia que jamais conseguiria fazer isto, mas que admiravam o sermos 'malucos' o suficiente para tal. E não só. As pessoas sentiam que tinham de nos ajudar, que tinham quase um dever.
Lembro-me, por exemplo, na zona de Abrantes, de estarmos numa situação muito complicada. Chovia por todo o lado na carrinha, não podíamos ter lá os miúdos a dormir. Fiz um post no meu Facebook e nesta altura tinha mil e tal pessoas na página. Perguntei se alguém nos deixava ficar nem que fosse numa tenda no quintal e alguém, que eu não conhecia de lado nenhum, disse que tinha, na Sertã, um apartamento da irmã, que vivia no estrangeiro, e podíamos lá ficar os dias que precisássemos. Acho que esta foi a primeira situação em que vimos o que as pessoas podem fazer. Pensei 'Fogo, mas como é que é possível?'. Hoje em dia há tanta desconfiança, principalmente quando envolve bens materiais... Como povo, nós somos muito generosos, mas também criticamos muito, sobretudo quando é uma vida tão diferente daquilo que é o tradicional aqui. Mas é impressionante a quantidade de pessoas que nós conhecemos, muito diferentes de nós, mas que estavam disponíveis para ajudar, para aprender e partilhar.
Apesar destes episódios mais complicados, a verdade é que não se precisa de nada [para viver numa carrinha]. Só paciência e flexibilidade. No início, o que ocupava mais espaço na carrinha era um caixote que eu tive de levar com materiais para fazer os workshops. Cada um de nós tinha duas ou três mudas de roupa, no máximo. Todos os dias lavávamos a roupa à mão nos tanques, até os miúdos aprenderam. Quando se está a viver assim nem importa andar com umas nódoas e sapatos só se precisa de um par, o resto do tempo andamos descalçados por todo o lado. Lembro-me que, quando chegámos à Figueira da Foz, pedi à minha mãe para ir buscar coisas. Não usávamos metade. Quando está sujo, há sempre um rio, um parque de campismo, e lava-se tudo. Não havia necessidade de muitas coisas. A nossa torradeira era uma grelha para pôr em cima do fogão, tínhamos uma cafeteira pequenina para fazer o café. Era uma vida muito simples, e a simplicidade é tudo.
Capítulo II
Os miúdos ficam com o pai, os refugiados precisam de ajuda
Sempre trabalhei com organizações, de alguma forma. Trabalhei na Cáritas, no departamento de apoio aos sem-abrigo; numa instituição, no bairro da Bela Vista, em Setúbal, que tinha miúdos retirados à família. Depois, quando me tornei mãe, aproveitei o facto de trabalhar sempre com crianças e de gostar da expressão artística para angariar dinheiro para várias causas. Mas deixei de ir para sítios, porque os miúdos eram pequenos e estavam em casa comigo. Quando o Tiago fez quatro anos e a Gabriela tinha sete... porque não? Em fevereiro de 2017 fui para a Grécia. Achei que era a minha vez de voltar a fazer as coisas que me faziam ser a Sofia, além da Sofia-mãe, da Sofia-esposa, a Sofia-que-vive-na-carrinha. Não me bastava fazer só os workshops, precisava de estar no lugar.
Eu interesso-me muito pelas coisas que acontecem à minha volta, no mundo, não só na minha vizinhança. Senti que tinha de fazer alguma coisa diferente e comecei à procura de organizações, mas de projetos pequeninos, de forma a saber que o dinheiro realmente ia para o que eu queria que fosse. Conheci o primeiro projeto com que trabalhei, o Refugees Support, que estava na Grécia. Eram pequenos, mas muito bem estruturados. O trabalho deles despertou-me curiosidade e decidi ir. E, além disso, decidi aproveitar as redes sociais e o facto de as pessoas acreditarem no mesmo que eu para conseguir mais ajudas. Eu ia fisicamente, mas elas iam comigo de outras formas. Quando lá cheguei, houve um problema com uma carrinha. Ao fazer a distribuição de comida para muitas famílias que estavam noutra parte da Grécia, a polícia parou a carrinha e houve montes de problemas. Quando não se fala a língua é muito complicado; aquilo era no meio do nada, não havia turistas, não havia nada. Ficámos sem carrinha e isso significava que não podíamos dar comida, nem roupas. Não podíamos fazer nada. E eu pus um post [no Facebook] a dizer que precisava de angariar dinheiro e que não vinha embora sem conseguir pagar pelo menos um mês de aluguer para uma carrinha. Sei que num dia consegui angariar, só assim, cerca de 1.750€. Deu para pagar uma série de meses! O impacto foi gigante — não porque eu fui lá, mas porque muitas pessoas foram comigo também.
Outra coisa que me marcou foi trabalhar na loja de roupa. Era um edifício militar, completamente devastado, onde nós organizávamos todas as roupas que as pessoas doam. Quem estava no campo de refugiados podia ir ver e escolher o que queria. Mas havia muita falta de roupa interior. É estúpido, mas é verdade: havia muita falta de cuecas. Recebemos, nestes armazéns, muita coisa que não está capaz. Às vezes é mais um caixote do lixo do que outra coisa. A falta de dignidade que é acharmos que as nossas cuecas estão rotas mas que podemos mandá-las para os pobrezinhos! Sentimo-nos bem e achamos que estamos a fazer uma coisa muito boa, mas não. E eu achei que naquela semana toda a gente ia ter cuecas novas! [risos] Fiz um post sobre o assunto e disse 'Eu quero ir ao mercado comprar cuecas para esta gente toda, preciso de comprar 400 e tal pares de cuecas!'. E as pessoas doaram e lá fui eu para o mercado negociar preços e comprar o que fazia falta. Estamos a falar de um ridículo par de cuecas, mas a diferença que fez para aquelas pessoas é incrível. Nós nem pensamos duas vezes, quando precisamos de comprar uma coisa dessas, aqui deste lado do mundo. Ali foi como se fosse Natal, naquele campo de refugiados. Quando voltei a casa, continuei a tentar arranjar dinheiro para o projeto. Eles diziam-me o que era preciso e eu tentava arranjar coisas ou recrutar pessoas para irem para lá.
Depois, participei também num projeto que foi elaborado por um refugiado sírio, que hoje é um grande amigo meu. Fui para a Jordânia, ainda no mesmo ano, ajudar na área da educação. A ideia era tentar criar um programa de educação pré-escolar. Existia uma comunidade enorme no deserto, a 20 km da Síria, onde as pessoas não podem ir à escola. Nasceram ali, os pais estão lá há cinco ou seis anos mas é como se não existissem, não têm acesso a nada. Como costumo dizer: parece que são filhos de um Deus menor. E este refugiado sírio resolveu montar um acampamento e um dos membros, que tinha sido professor, começou a dar aulas aos miúdos, para aprenderem árabe, a língua deles. Mas depois percebeu-se que não era suficiente: estes miúdos já não vão voltar à Síria, por isso têm de se integrar no mundo, de alguma forma. Então criaram-se aulas de inglês e de tudo e mais alguma coisa.
Em Amã, na capital da Jordânia, existem muitos turistas, é uma zona que é mais europeia. Mas eu estava mais no meio do deserto. E normalmente as pessoas que vão como voluntárias ficam muitos meses porque são miúdos que saem da universidade ou que ainda nem foram [para a universidade] e que tiram um ano para isso [voluntariado], então quando eu cheguei lá foi estranho: uma mulher, nova mas não tanto como o habitual, sozinha, cheia de tatuagens e piercings e não sei quê... Ainda por cima as mulheres ali no deserto andam completamente tapadas. Obviamente nunca fui de manga curta nem de saias ou calções, por respeito às pessoas. Eu fui para ajudar a comunidade, não para provocar e dizer 'de onde eu venho é que está certo'. Tem de haver essa consciência, mas mesmo assim eu não tapava o meu cabelo. Achei que era demasiado; nem oito nem oitenta.
No início foi muito difícil. Eu estava a trabalhar com professores da Jordânia, havia uma partilha de conhecimentos. E as mulheres ficavam muito de pé atrás e eu tive de tentar dar a volta para me aceitarem e perceberem que eu estava ali para ajudar. Até que chegou o momento! Toda a gente acha sempre que eu sou muito mais nova do que aquilo que sou. Uma coisa boa! [risos]. Mas nestes países nota-se muito: eu trabalhei com mulheres com 29 anos que pareciam muito mais velhas do que eu, são pessoas que já passaram por muito. Nesse dia, elas estavam a falar de filhos, disto e daquilo, e eu digo algo como 'o meu filho também faz isso'. E uma delas ficou admirada por eu ter um filho... e mais ainda quando disse que tinha dois! 'Dois filhos? E onde é que eles estão?'. Admirou-se com a minha resposta: 'Com o pai'. E ainda mais por ser casada. 'Tu deixaste a tua família para vires para aqui? Porquê?'. É simples: pelos meus filhos, porque quero que um dia eles façam isto. Aquilo comoveu-me muito.
Houve dias em que chorei muito lá porque tinha saudades dos miúdos. Chorei em frente às mulheres e elas diziam 'Não sei como é que consegues. Nunca conhecemos ninguém com crianças dessas idades que largasse tudo para vir para aqui'. E normalmente, quando vou para estes projetos, marco duas semanas... mas acabo por ficar perto de um mês. É muito complicado voltar, há sempre coisas a serem feitas.
Capítulo III
800 km (a pé) para ver e mostrar o que é o mundo — e o fim dele
Foram 800 km a pé. Lisboa, Santiago, Fisterra. No dia seguinte a ter chegado a Santiago de Compostela, levantei-me e pensei que tinha de andar. As minhas pernas estavam a tremer, tinha um joelho inchado, perdi três unhas, tinha uma série de infecções nos pés. E até este caminho tem a ver com voluntariado, com o dar, com o serviço aos outros. E apesar de as pessoas dizerem que temos uma vida tão inconsistente... não! Houve sempre consistência, o que eu estou a fazer agora comecei em 1998, quando comecei a fazer voluntariado.
A história de Santiago surgiu porque já há muito tempo que queria fazer o Caminho — ou parte dele. Nunca pensei que ia fazer isto tudo. Gosto muito de andar, não tem nada a ver com motivos religiosos. Queria a experiência de estar sozinha a caminhar durante um período de tempo e, entretanto, a minha irmã mais nova ficou doente, com cancro da mama. Tinha 27 anos na altura. A situação era complicada, tinha uma bebé com um ano. Apesar de eu não ser muito próxima da minha família, porque há muitos anos que vivo no estrangeiro, fui ter com a minha irmã à Holanda, onde ela estava a viver. Nem a minha outra irmã nem a minha mãe podiam ir para lá, a falar inglês. E obviamente que era muito importante que todos percebessem o que ela estava a passar. Apesar de falar inglês, havia coisas difíceis. Na altura eu dava aulas de inglês em França e acabei o contrato mais cedo. Organizei-me com o meu marido, que ficou com os miúdos, e eu fui passar um mês com a minha irmã, quando ela foi operada.
O ano passado fui quase todos os meses à Holanda, pelo menos uma semana, para estar com ela. Ela tinha de sentir que tinha alguém ao lado dela e também ajudava a minha sobrinha, que via a mãe naquela situação. Ver a minha irmã passar por tudo isto mexeu muito comigo e senti que tinha de fazer alguma coisa para agradecer à vida, depois de ela ter ultrapassado isto tudo e estar cá para contar a história. Eu tinha de fazer alguma coisa que tocasse o serviço aos outros, para dizer 'obrigada, vida, por teres salvado a minha irmã'. A caminhada andava há muitos anos na minha cabeça, a minha irmã estava bem, a vida estava a recompor-se... Então decidi fazer o Caminho e, através dele, tentar inspirar as pessoas a doarem dinheiro para dois projetos. Um tinha de estar relacionado com o cancro e pedi à minha irmã para escolher — trabalhámos com o Fundo iMM [Instituto de Medicina Molecular], com o projeto Laço. O outro foi, novamente, a Fundação do Gil.
Consegui angariar à volta de 3.500€, que foram divididos pelas associações. Foram 27 dias a andar, 27 dias longe dos filhos. Foi uma experiência muito crua. E de todas as que já tive — tirando o nascimento dos meus filhos —, foi a que mais me marcou na minha vida. Tu sentes tudo, mas sentes tudo a trezentos mil. Tens tempo para ver as coisas com olhos de ver. Nós todos os dias acordamos e vivemos, mas não estamos [realmente] a viver. Às vezes nem reparamos [nas coisas]. Ali só se caminha, todos os dias. E eu passei muito tempo sozinha. Durante os três primeiros dias não conheci ninguém, não vi ninguém. Não é a mesma coisa do que estar sozinha em casa. Eu adoro estar na natureza, mas a certa altura já se repara nos insetos mais pequenos, nas pedras, começa-se a ver sinais em todo o lado...
Mas, ao contrário do que se pensa, a chegada a Santiago foi uma desilusão. Primeiro, é um lugar muito turístico. Eu comecei por fazer o caminho em prol dos outros, mas depois tu percebes que fazes aquilo por ti. E eu acho que precisava de curar muitas feridas cá dentro, obviamente que foi muito duro ver a minha irmã naquele sofrimento todo... E achei que ia chegar lá e sentir algum conforto, que ia entender porquê que tudo aquilo tinha de ter acontecido. Mas não. Todas aquelas pessoas à minha volta fizeram-me sentir exatamente o contrário. Passei tantos dias — que pareceram anos — sozinha, a tentar ir mais além das minhas aptidões físicas, emocionais, mentais, e depois chego ali e há um vazio, com as lojinhas cheias de porcarias e tudo parece ridículo. Lembro-me de pensar 'Que estupidez!'. As pessoas reclamavam porque o bife não estava bem passado... eu estava tão atenta a tudo... Caramba! Sintam! Vivam, percebam que estão vivos! E por isso, no dia seguinte, sem dizer nada a ninguém, continuei a andar. Eu até tinha um almoço combinado com uma das pessoas que conheci no caminho no dia seguinte. Ele ia voltar para a Alemanha mas disse que não, que ficava de propósito para almoçarmos, por termos conseguido fazer o Caminho. Dormimos num hostel, eram cinco da manhã e ele estava na outra ponta do quarto a ressonar e eu olhei e pensei 'caraças, desculpa lá mas eu não posso ficar'. Fui-me embora e por volta das 10h ligou-me a perguntar onde estava. Disse que estava a caminho de Fisterra, respondeu-me que eu era completamente doida. Senti que tinha de ir a Fisterra porque tinha de sentir que estava mesmo feito e que estava em paz. Ali é mesmo o fim do Caminho. Para mim foi o fim e o princípio de outro caminho. Todos os dias tenho vontade de repetir. Ficamos viciados. Torna-se quase uma obsessão.
Eu ia fazer este ano em setembro, novamente, mas já não vai ser possível. Mesmo assim tenho a certeza que o vou voltar a fazer. O Caminho Primitivo vai ser o próximo. E a Gabriela já tem muita vontade. Aliás, qualquer lugar a que eu vou, ela diz 'Mãe, eu vou contigo. Tu podes ensinar-me, lembras-te? Já me deste aulas em casa, eu não preciso de ir à escola!'. A Gabriela vai ser, sem dúvida nenhuma, uma companhia para muitas aventuras. Eles estão muito habituados a adaptar-se. Eu costumo dizer que nós temos de ser como a plasticina, temos de ser maleáveis com a vida e com aquilo que ela nos manda para cima. Sempre tentei incutir isso nos miúdos. Eles sabem que só os filhos é que são para sempre. Nem o pai que é o pai... nós não sabemos! Somos uma família muito aberta. Eles desde pequeninos já viveram em todos os tipos de casas, em todos os tipos de situações. Eles estão habituados a isso, é normal. O que para eles não é normal é as pessoas não terem capacidade de se adaptarem. Eles sabem que só somos felizes se nos adaptarmos ao que acontece. E isto também se aprende no Caminho.
Epílogo
Sofia chegou a Lisboa, no início do mês de junho, de mochila às costas. Mais uma vez, entre tantas. As cidades vão mudando, o que a leva aos locais também. Mas o mote, no fundo, é sempre o mesmo: em todos os sítios há alguma coisa a dar. Foi isso que fez ao viver numa carrinha, ao ajudar refugiados e a caminhar até Fisterra.
A mudança não a assusta. Conta-nos, no fim de todas as histórias, que já mudou de casa 13 vezes nos últimos dez anos. Agora vive numa "casa com piscina, no meio da floresta, em França", mas já viveu, por exemplo, "no País de Gales, numa vila, numa casa só com 60 m2". Ou na Maria do Mar.
E tudo isto está relacionado com escolhas. Para ser feliz, passe o cliché. Sofia confessa-nos que fala muito, mas que observa ainda mais. Diz que a sua cabeça é "como uma redoma", com muita coisa lá dentro. Mas transparente, para poder ver cá para fora e deixar que a vejam. Remata a conversa com um alerta. "O mais triste da sociedade é que as pessoas são felizes e não sabem. Andam sempre nesta busca pela felicidade, mas muitas vezes procuram coisas materiais e não é por aí. As pessoas estão muito agarradas às coisas, por isso é que acham que têm muitos problemas na vida. Nunca estamos satisfeitos. Comparamos muito. E vivemos muito o 'eu vou ser aquilo que tu queres que eu seja'. E com isso tudo as pessoas estão à procura da felicidade, mas na verdade só se estão a desviar cada vez mais. Estão cada vez mais longe. Perdem a perspetiva da simplicidade".
Por isso, diz, é preciso, sempre, voltar a pôr a mochila às costas. Para não nos habituarmos ao que temos. E tem uma confidência a fazer-nos em primeira mão: em breve, a família vai aventurar-se mais uma vez e acrescentar um novo capítulo às aventuras vividas. Vão todos até África, ver vidas diferentes e um outro bocadinho do mundo. E, por lá, dar o que houver para dar. Depois, é arrumar as memórias e voltar.
Para onde? Aqui nunca se sabe bem.
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