Não estamos num período particularmente feliz da história e o noticiário está reduzido às nossas eleições e às atividades de Donald Trump. O frenesim daquele homem é impressionante.

É uma coisa incrível. Eu estou preocupadíssimo com a situação, claro.

Achas que vai sobrar para nós, não é? De uma maneira ou de outra, é mesmo muito provável. Trump já cortou os subsídios às nossas universidades.

Exato, que muito bem se recusaram a ir naquele inquérito patético. Mas as nossas universidades não dependem daquilo. E, por outro lado, estão protegidas pelo Governo. Essa é que é a diferença.

Mas vamos ao nosso assunto. A primeira coisa que eu queria esclarecer é que parece que nunca se consegue definir o que foi  o PREC.

O PREC não é nenhum movimento institucionalizado. De maneira nenhuma. É um nome que se vai dar, ao processo revolucionário em curso, daí PREC, sobretudo a partir de 11 de março e até ao 25 de novembro de 1975. É nesse período que a designação de facto aparece.

Eu lembro-me na altura de ouvir falar que havia grupos de militares que iam de aldeia em aldeia a fazer sessões de esclarecimento sobre que tinha acontecido no 25 de Abril e a mudança de regime.

Sim, isso aconteceu, as chamadas campanhas de dinamização, exatamente.

O PREC não é realmente uma organização, é o nome de uma situação. Uutra coisa é a posição do Partido Comunista nestas andanças todas, desde o 25 de abril até ao 25 de novembro

Os conservadores odiavam a iniciativa e daí ficou um certo significado pejorativo para o PREC.

Essa é que era a questão. O PREC não é realmente uma organização, é o nome de uma situação. Agora, a outra coisa é a questão do Partido Comunista, a posição do Partido Comunista nestas andanças todas, desde o 25 de abril até ao 25 de novembro. Mas o que se diz, e há milhares de situações, como o 25 de Novembro, em que o Partido Comunista não interferiu.

Ou melhor, fê-lo, com alguma prudência de início e a determinada altura… Há aquele trabalho do Felipe Garcia, no Expresso, que diz isso, começaram por dar ordem aos seus militantes, nomeadamente em sindicatos e organizações populares, para avançar, para ocuparem objetivos, e a partir de determinada altura, com o receio de um banho de sangue, com o receio de que as coisas não corressem como lhes seria conveniente, meteram, de facto, marcha atrás ao fim do dia, ou da tarde de 25 de novembro. Há uma série de testemunhas citadas no trabalho do Felipe Garcia que corroboram esta ideia.

Portanto, esse é o 25 de novembro, mas anteriormente, há várias ocasiões que eu julgava que o PCP tinha sido responsável e não foi.

O PCP nunca conseguiu ter a força que queria, apesar de ser o mais forte. Também é verdade que a determinada altura o PCP vai pagar pelo que fez, mas também vai pagar pelo que não fez. O caso que me parece mais significativo é o do “República”, onde de facto as contestações que há da tipografia em relação à redação e aos proprietários do jornal, afetos ao PS como se sabe, não são elementos do PCP, mas são elementos mais à esquerda, da extrema esquerda.

No entanto, Mário Soares, quando reage à crise do jornal República, vai sempre apresentar o PCP como sendo quem está por trás daquele processo, o que é factual e historicamente falso. Não era o PCP. Fez outras coisas, nomeadamente no Diário de Notícias, sim senhor, mas ali não.

O PCP nunca conseguiu ter a força que queria, apesar de ser o mais forte. Também é verdade que a determinada altura o PCP vai pagar pelo que fez, mas também vai pagar pelo que não fez.

É interessante que eu tenho uma fotografia com o Adelino Gomes na fachada do “República” nesse dia, nós estávamos lá, e o que se achava é que era o PCP. A situação era muito caricata, porque tinha uma janela do lado direito, da parte da tipografia, onde estavam os operários, e do lado esquerdo estavam os jornalistas, à varanda, como se não se conhecessem. No fundo estavam todos a fazer História, mas na altura pensávamos que era uma greve mandada pelo PCP.

Essa questão dos choques, das desuniões entre as redações e as tipografias, de facto ocorreu em mais cidades, há apenas um local onde isso não acontece, e eu falo disso abundantemente, porque foi onde eu comecei a minha carreira como jornalista, no ano de 1977 para o início de 1978, no “Diário Popular”.

Não só as relações entre a redação e a tipografia foram sempre boas, como dentro da redação, havendo pessoas com as mais diversas orientações e desorientações, diria eu, houve ali um modo de viver que se conseguiu manter, seguindo uma palavra de ordem inventada pelo Manuel Rodrigues da Silva e pelo Adelino Cardoso, que é, “trabalhadores não saneiam trabalhadores”, e de facto não só ninguém foi saneado - é evidente que houve pessoas que perderam cargos de responsabilidade e tal - mas ninguém foi corrida da redação, lá continuaram a ter o seu lugar e, mais importante disso tudo: a redação reuniu-se.

Isto é um caso único na imprensa portuguesa. A redação do Diário Popular elege efetivamente o diretor e o diretor adjunto, e assim se mantiveram durante uma série de anos, até sensivelmente 1978, 1979.

Na mesma altura em que o PCP controla o “Diário de Notícias”?

Não, nessa altura já não.  O controlo do Diário de Notícias é quando o José Saramago é diretor adjunto, mais ou menos até ao 25 de Novembro.

Ora, isto que eu estou a dizer ocorre de facto, esta escolha do diretor e do diretor adjunto livremente eleitos pelos seus camaradas de trabalho, e vai perdurar desde 1975 até sensivelmente 1979, que é realmente um marco na imprensa portuguesa. Seria diferente, se toda a gente em todos os jornais tivesse de eleger o diretor e o diretor adjunto.

No teu livro falas no “Tempo” e no “Jornal Novo”. Eu era o fotógrafo no “Jornal Novo”, escolhido pelo Francisco Sásportes e era uma loucura. Havia uma reunião de redação às três da tarde, eu recebia várias reportagens para fotografar nesse dia, mas as coisas depois mudavam e acabava normalmente às três, quatro da manhã. Chegava quase de manhã a casa, revelava o filme, fazia uma prova de contacto, e levava ao Artur Portela Filho para escolhermos quais é que serviam para fazer a montagem da primeira página.

A ideia inicial era fazer um jornal como o “Le Monde”, sem fotografias, e depois chegaram à conclusão que sem fotografias não era vendável. Portanto tinha uma grande fotografia, que era a única, e fiz isso ainda durante uns meses, mas nunca soube quem eram os donos do Jornal Novo.

Havia ali alguns apoios da Confederação da Indústria Portuguesa, era o que se fazia na altura, e ainda durou uma série de tempo, e depois o Portela Filho vai fazer a revista ”Opção”, para a qual eu ainda escreveria uns anos mais tarde.

Livro: “Breve História do PREC”

Autor: Rui Cardoso

Editora: Oficina do Livro

Data de Lançamento: 8 de abril de 2025

Preço: € 15,90

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O Portela era uma máquina. A falar e a escrever, era de uma acuidade e ironia inultrapassáveis. Tem romances publicados, mas em ficção o texto dele fica acelerado demais. 

Então, o PCP, afinal de contas, muitas das coisas que se atribuem ao PCP, não foi o PCP.

Sim, nesse caso concreto do República, sem qualquer espécie de dúvida. Já agora, na Rádio Renascença, também não foram eles.

É um caso curioso, porque de facto agitou meio país, provocou manifestações e contra-manifestações. Começa, e durante muito tempo, é um puro conflito laboral, porque o episcopado era um péssimo patrão, não queria admitir os trabalhadores que estavam com contratos provisórios, começa com censuras logo pouco depois de 25 de Abril, nomeadamente a reportagens feitas com a chegada dos exilados políticos, Cunhal, os cantores, José Mário e Branco, etc. De facto, quiseram proibir a passagem dessas reportagens, uma coisa que não lembra ao diabo.

E é quando se rompe esta unidade dos trabalhadores - em que, inclusive, até alguns padres que faziam lá programas religiosos, alinhavam na greve e com o movimento geral - quando a redação de Lisboa,  separada do Porto, tem uma disputa entre uma facção mais radical e a maioria dos trabalhadores. O processo começa a descambar, por um lado a radicalizar-se cada vez mais do ponto de vista ideológico, mas por outro lado a perder aquilo que era o cimento, a união entre os vários setores de trabalhadores da rádio, e portanto caminhava mais ou menos a prazo da sua perdição.

Então o PCP também aí não tem um papel?

Onde há claramente intervenção de jornalistas afetos ao PCP, até choques mais violentos e tal, é de facto no Século e no Diário Notícias.

Do encerramento do Século já não me lembro como foi.

Fechou por lutas internas dentro da redação, que acabaram por paralisar e inviabilizar o jornal. Fechou depois do 25 de Novembro, ainda saiu mais um tempo, mas não durou. No Diário de Notícias foi a saída dos 21 ou 23 elementos da redação, que eram mais à direita, e a prova que assim era é que eles foram fundar “O Dia”, não é? Um ativismo de extrema-direita, ultraconservador, que ainda saiu durante uma série de anos.

Sim, e depois foi o “Diabo” a seguir, não é? Aliás, o Diabo acho que foi o único jornal que foi censurado, foi retirado de circulação durante esse período, uma ou duas vezes.

Nessa altura, sim, por supostas ofensas a elementos do Conselho da Revolução, sim, chega a estar sem sair, isso é verdade.

Embora os jornais estivessem todos sem sair, a seguir ao 25 de Novembro, naquela altura do estado de sítio. Depois só, a conta gotas, foram voltando a ser publicados, estamos a falar de três, quatro, cinco dias, mais ou menos.

Sabes se este período é ensinado nas escolas atualmente?

Em algumas escolas será. No outro dia estava a falar nisso com um companheiro de trabalho do Expresso. Ele que dá aulas no Colégio Moderno e que diz que uma das alturas do ano mais divertidas, mais participadas pela rapaziada estudante, é exatamente quando se fala na revolução e no verão quente de 75, o que não deixa de ter graça.

Os jornalistas franceses encontravam-se todas as noites no bar do último andar do Hotel Mundial, no Martim Moniz, e além de beberem os copos, aproveitavam para trocar informações, porque ninguém conseguia perceber aquela efervescência, aquela loucura que ia de manhã à noite

Os mais novos terão muita dificuldade em perceber o que aconteceu. Nós, que participámos, também temos uma certa confusão sobre o que aconteceu. Tudo variava de dia para dia, os militares mudavam de estrutura, houve o Conselho dos 400, depois houve o dos 100, a Comissão Coordenadora. Estavam sempre a tentar ajustar-se à situação.

Sim, é verdade. Havia várias fações também dentro do MFA, tudo isso é verdade, e sobretudo as coisas eram de tal maneira intensas, como se conta num dos livros que eu cito - um livro muito bom, feito pelo José Rebelo, que foi correspondente do Mundo em Portugal nessa altura, a partir de meados de 75. Publica um livro com a Maria Inácia Rezola, que só existe em francês, mas diz qualquer coisa como a revolução dos cravos vista pelas páginas do “Le Monde”.

E conta, a determinada altura, que os jornalistas franceses, que eram os do ”Le Monde” e de outros jornais mais à direita, encontravam-se todas as noites no bar do último andar do Hotel Mundial, no Martim Moniz, e além de beberem os copos, aproveitavam para trocar informações, porque ninguém, sozinho, conseguia perceber aquela efervescência, aquela loucura que ia de manhã à noite. Portanto, ali faziam uma espécie de um briefing, trocavam informações, e pronto, e a partir de ali haveriam de compor os seus artigos.

É interessante que muitos anos mais tarde, nos Estados Unidos, assisti a um debate presidencial em que o Ford - presidente na época estava a candidatar-se à eleição contra o Carter -, a certa altura afirma: “Nós travámos os comunistas em Portugal.”

E eu a pensar que tínhamos sido nós, os portugueses em geral, que tínhamos decidido o rumo do país. E já ouvi, de várias fontes, que o Ford telefonou ao Brejnev a dizer que Ialta  ainda estava em vigor,ou seja, que eles não tentassem fazer um regime comunista em Portugal. E que o Brejnev terá ligado ao Cunhal a dizer: “Não tomem o poder, porque isso vai ter consequência que não nos interessam…"

Sim, mas a questão é que também não tinham condições para o tomar, porque a grande diferença, eu tento dizer isso no livro, por exemplo em relação à situação de Allende no Chile, é que nunca houve uma frente, um bloco monolítico, nem à esquerda, nem à direita.

A esquerda estava dividida. Além da esquerda mais moderada, nomeadamente o PS de Mário Soares, havia, uma constelação de pequenas formações extremistas, à esquerda do PCP, que quebravam esse monolitismo. Combatiam-se entre si e também combatiam o PCP, e, portanto, o que acontece é que nunca houve condições de uma frente esquerda contra uma frente de direita, que são o prenúncio de uma guerra civil. Quase que há um golpe, como aconteceu no Chile, mas não havia condições.

À direita, também havia divisões, havia uma direita trauliteira, armada, caceteira, portanto, com as suas organizações armadas, clandestinas, o ELP, o MDLP e outros. E uma direita que jogava, efetivamente, o jogo democrático, que era representada pelo CDS e o próprio PPD.  Portanto, nunca se chegou a dois blocos monolíticos, e isso talvez explique a razão pela qual Portugal nunca foi o Chile da Europa, como também não foi como em Cuba; foi o que tinha que ser, seguiu o seu próprio caminho.

nunca houve condições de uma frente esquerda contra uma frente de direita, que são o prenúncio de uma guerra civil. Quase que há um golpe, como aconteceu no Chile, mas não havia condições

Repara que o Cunhal falava sempre nas “forças democráticas”. Ora, chamar “força democrática” ao PC é um bocado esticar a corda, mas a ideia era essa, que todas as forças democráticas se juntavam, formavam um governo, e depois o PC liquidava os outros.,…

Hegemonizava, mas de facto em Portugal nunca estivemos perto de facto disso acontecer. Aliás, se referirmos isso, por exemplo, pelos resultados das duas eleições, abril de 1975 para a Constituinte e depois abril de 1976 para a primeira Assembleia da República,  isso dá-nos uma ideia da distribuição de forças.

Portanto, alguma hegemonia do PS, depois o PCP mais abaixo, mas se somássemos o PCP mais as formações de extrema esquerda, das quais a única que teve alguma vez representação parlamentar foi a UDP, e somando-lhe o MDP, podia ir era para aí, aos 20%. Equivalia mais ou menos ao PPD mais CDS.

O que é interessante, em relação às eleições para a Constituinte, é que elas são de facto as eleições mais livres, mais abertas, eu diria, quase mais loucas que ocorreram de facto na Europa do pós-guerra

Mas não achas que essa primeira eleição da Constituinte clarificou quem é que tinha algum poder e quem é que não tinha? Porque lembro-me que antes da eleição os jornais publicavam comunicados de todos os partidos, o Expresso tinha tipo duas páginas, pareciam aqueles anúncios de falecimento, portanto porque não se sabia qual era a real dimensão dos partidos. Quem andasse na rua acharia que era o MRPP que fazia aqueles murais maravilhosos.

O que é interessante, em relação às eleições para a Constituinte, é que elas são de facto as eleições mais livres, mais abertas, eu diria, quase mais loucas que ocorreram de facto na Europa do pós-guerra, porque havia formações, havia grupos a defender a tomada do poder pela via armada e isso era perfeitamente legal, ninguém era preso por dizer isso, e finalmente tiveram um resultado conhecido, uma maioria relativa do PS, seguida do PPD, e depois por aí abaixo o PCP, o CDS, etc. E um deputado para a UDP, o que é curioso, é uma coisa completamente rara, se não inexistente na Europa daquele tempo.

Aliás, a votação que escolheu o deputado da UDP é curiosa, porque quem estava indigitado para ser o deputado da UDP era o médico João Pulido Valente, que era uma grande figura da esquerda, da esquerda à esquerda, por assim dizer, e depois na última hora é afastado porque tinha ido visitar o banqueiro Jorge de Brito, que era seu amigo, e tinha sido preso, a seguir ao 11 de Março, uma coisa parecida, retribuindo-lhe justamente uma visita, que o Jorge de Brito tinha feito em Caxias quando tinha estado preso pela PIDE. E isso nos sectores mais radicais da UDP...

Aliás, o Jorge de Brito foi o primeiro banqueiro a ser preso, porque aquele banco era muito recente e ainda não tinha a patine dos bancos tradicionais. Era um “nouveau riche” da banca. Os outros só caíram com o Vasco Gonçalves.

Claro, os outros depois são nacionalizados, e por arrastamento são os jornais, o Diário Popular, por exemplo, e a Capital, são nacionalizados.

Tu falas também do Marcelino da Mata ...

E o Marcelino da Mata exemplifica, de facto, onde chegaram as loucuras do MRPP, que eles fazem questão de criar ali, digamos, uma coisa que no fundo é uma provocação, não é? Hostilizar e bater, como fizeram com o Marcelino da Mata, iria provocar sempre reações, iria pôr em causa não só o governo como o próprio MFA. Aquilo era mesmo uma estratégia de rutura levada às últimas consequências.

É muito interessante ler o Marcelino da Mata a contar as sevícias que recebeu, porque fala daquilo como se estivesse a contar um jantar. Ou seja, ele era um tipo brutalmente violento, e que se notabilizou por ser violento na Guiné, e depois, quando foi ele a apanhar, levou aquilo como uma coisa normal, sem rancores.

Morreu há cerca de um ano. Era guineense. É uma coisa, enfim, surreal.

Bom, a Guiné tinha 33 tribos. Religiões diferentes e tudo, tinha que dar um mosaico complicado.

Uma espécie de Síria no meio da África.

Primeiro, os militares fazerem revoluções, é normal, são sempre feitas por militares. Mas desta vez era à esquerda em vez de ser à direita.

Isso é original. Não sei de militares de esquerda que tivessem feito revoluções contra Governos de direita. E depois, voluntariamente, saíram da política.

Entregaram o poder aos civis, é verdade.

Estudando as várias revoluções ocorridas na Europa, nos últimos cem anos, quase todas acabam mal. E depois, há dois ou três casos, entre os quais o português, em que não é assim

E muito depressa, não é? Porque, normalmente, as juntas militares que se formam, dizem sempre que vão fazer eleições, mas acabam por se eternizar.

Até alguém as deitar abaixo, claro.

Na apresentação do meu livro, o António Firmino da Costa diz uma coisa interessantíssima, que é, estudando as várias revoluções ocorridas na Europa, nos últimos cem anos, quase todas acabam mal, portanto, ou são esmagadas de forma sanguinária por uma contra-revolução, ou degeneram num regime de partido único. E depois, há dois ou três casos, entre os quais o português, em que não é assim, e a saída acaba por ser positiva.

De resto, há aqui uma coisa que eu digo no livro, que eu acho que é divertida, que é, por um lado, a determinada altura, no quadro de uma oposição radical entre legitimidade revolucionária, portanto, legitimidade da rua - das organizações populares de base -, e legitimidade democrática e eleitoral, decorrente das eleições para a Assembleia Constituinte.

A Assembleia Constituinte é criticada, chega a ser cercada durante uma greve da Constituição Civil.  Aliás, é cercada por azar, porque os operários da construção civil foram ao Ministério do Trabalho, mas, estando o Ministério do Trabalho fechado, alguém se lembrou de ir diretamente a São Bento.

Mas isso para dizer que esta Assembleia que é criticada como a encarnação da democracia burguesa, oposta à democracia e ao poder popular e tal, mas a verdade é que, em 1976, aprova, efetivamente, a Constituição mais progressista e mais avançada da Europa, contra a qual só o CDS, e fica na história por isso, votou contra.

Sim, aliás, a Constituição fala no caminho para o socialismo.

Talvez isso tenha irritado as pessoas do CDS, não faço ideia.

Não sei, porque a questão é que socialismo acaba por ser uma expressão… não define nada.

Onde cabe tudo.

Porque, por exemplo, a social-democracia, na Rússia, a primeira social-democracia, era quase tão à esquerda como os bolcheviques.

Certo, e o partido leninista começa por chamar-se social-democrata.

Nos Estados Unidos, socialismo é equivalente a marxismo. “Socialismo” é um insulto.

O Bernie Sanders, em Portugal, provavelmente podia perfeitamente ser militante à esquerda do PSD. Quer dizer, cabia lá perfeitamente com as coisas que diz.

É o único político importante norte-americano que se atreve a dizer que é socialista. Aliás, a última notícia, é que a  Alexandra Ocasio-Cortez será provavelmente a futura candidata dos democratas às eleições presidenciais.

Sendo que não tenho a certeza se vai haver eleições presidenciais…

Por vontade de Trump, talvez não, mas… Não, eu acho que não. A realidade e a dinâmica das coisas vai evidentemente impor-se a esse sonho narcisista dele.

O sistema lá é muito diferente. Neste momento o Trump está a medir forças com os tribunais. Se o Trump conseguir vencer os tribunais, derrotar os tribunais, a única coisa que resta são as forças armadas. Ora, as forças armadas americanas nunca se meteram em política.

Pois, tirando evidentemente a Guerra Civil de 1865-1868.

Em relação a nós, estás satisfeito com o nosso sistema?

O sistema saído do 25 de Abril?

Não, o sistema que temos saiu do 25 de Novembro.

Há uma discussão que se pode ter e que eu citei no livro. São as afirmações do Coronel Delgado Fonseca, que esteve nas operações do 25 de Abril, no Porto, e andou a promover campanhas de dinamização no Norte. Ele diz qualquer coisa como isto: “Eu, uns anos mais tarde acabei por me filiar no PS, mas na altura achei que Mário Soares tentou travar a Revolução cedo demais, porque ainda havia muito trabalho de consciencialização das classes mais baixas e aquele travão do 25 de Novembro talvez tenha sido demasiado cedo e com demasiada força, com o risco de algumas coisas se perderem.”

Nós temos, de facto, legislação laboral avançada e ambiental, que saiu da mão do Ribeiro Teles, que não é propriamente um perigoso esquerdista, temos um serviço nacional de saúde, com todos os seus problemas, que é mil vezes melhor do que o dos Estados Unidos.

Nos Estados Unidos não há sistema nacional de saúde.

Pois então, temos todas essas coisas, mas o que é importante nisso tudo é que de facto fazer a pedagogia democrática. Como aquela frase muito batida do Churchill, este sistema é o pior, com exceção de todos os outros.

É incrível como nós somos mesmo de brandos costumes, porque tivemos uma Revolução que foi uma confusão total durante dois anos e morreram muito poucas pessoas.

20 pessoas. Fizemos as contas para o livro.

E provavelmente alguma por engano.

Cinco ou seis foi logo no 25 de Abril, mortas pela PIDE, e um PIDE que ia a fugir e foi atingido pelos soldados.

Há de facto dois tipos extraordinários, o alferes Sotto Maior, que recusa a cumprir a ordem, leva uma coronhada e fica detido, e o apontador do tanque que respondeu à ordem: “Meu Brigadeiro, vou ver o que é possível fazer”

Há aquela cena inesquecível, na Praça do Comércio, quando o Brigadeiro Cerqueira das Neves manda disparar contra o Salgueiro Maia.

Há de facto dois tipos extraordinários, o alferes Sotto Maior, que recusa a cumprir a ordem, leva uma coronhada e fica detido, e o apontador do tanque que respondeu à ordem: “Meu Brigadeiro, vou ver o que é possível fazer”. Fechou a escotilha e nunca mais saiu.

Concluindo: o PREC afinal não foi tão mau como isso?

Não, não foi. Há todos os acontecimentos com protagonistas, o Vasco Gonçalves, o Spínola, tudo isso é verdade, mas por outro lado houve aqui uma série de lutas populares altamente participadas, mesmo à margem dos partidos, que é uma espécie de democracia directa e de autogestão, que os sociólogos estudarão.

E depois do 25 de Novembro volta tudo a funcionar, tribunais, polícia, serviços públicos, etc. Como ficou num epitáfio escrito pelo “Le Monde”: 

“Esta revolução romântica, tipo Couraçado Potemkine, que se esfumou como um sonho, alguma vez terá sido outra coisa senão um sonho.”

É das coisas mais bonitas que se disse sobre o PREC.