Quando é que o presente passa a história?
Não me pergunte onde estava no dia 11 de setembro de 2001. Não vale a pena: não me lembro.
Tinha seis anos. Tenho na minha cabeça formada a ideia de estar em casa da minha avó, mas na altura tinha outras coisas em que pensar — não me pergunte quais, que também não sei.
Não tendo memória, pus-me à procura dela nos arquivos da agência Lusa, enquanto falava com os meus parceiros de secretária aqui na redação de Lisboa, Tomás e António.
Gosto de arquivos. E especialmente dos da agência Lusa, a agência nacional de notícias. É lá que vão sendo guardados os eventos mais importantes desde os finais do século XX — e é um lugar onde gosto de mergulhar à procura de contexto.
Por exemplo, em 2011, Jack Pires, que trocou em 1960 a sua terra natal, uma aldeia nos arredores de Portimão, por Nova Iorque, recordava a construção do World Trade Center, em que esteve envolvido.
“A gente sente sempre [a obra] como a terra onde nasceu, pois sempre gosta de voltar”, disse à Lusa em Nova Iorque.
A construção não foi serena: “Volta e meia tínhamos de fugir do trabalho. Ligavam a dizer que havia bomba, às vezes três ou quatro vezes por semana. Tinham de evacuar o pessoal todo”, recordava.
Como ainda tinha por hábito quando a Lusa foi ter com ele, estava a 11 de setembro de 2001 numa esquina do bairro a conversar, na altura com “um rapaz que era construtor e foi piloto de helicópteros no Vietname”, quando viu passar por cima da sua cabeça um avião a baixa altitude e com “muita força”.
“Via-se que ele se ia enfeixar logo, da maneira que vinha”, recordava na altura, reconstituindo a passagem de um dos aviões sequestrados por operacionais da al-Qaida contra o World Trade Center que ele construíra.
“Isto era gente aí aos montes. Vinha tudo branco [do World Trade Center], parecia o carnaval. Outros iam para baixo para ajudar”.
“Deu-me um choque grande. Era muito para mim. De tanta coisa que uma pessoa lá ajudou a fazer e ver e depois ver aquilo tudo vir num molho para baixo em meia dúzia de minutos…”, dizia Pires, pontuando a frase com um sopro, descreve a notícia, assinada por Paulo Dias de Figueiredo, da agência Lusa.
“Lembro [António] hoje, como amanhã, como ontem”. Também nos dez anos do atentado, Augusto Rocha recordava um dia sinónimo de “dor” como nenhum outro – 11 de setembro, quando perdeu o “filho e amigão” António, nos atentados contra as torres gémeas, em Nova Iorque.
Nesse ano, Augusto queria ir com as netas ao memorial, então inaugurado.
A família nunca tinha ido à cerimónia, dedicada todos os anos aos parentes das quase três mil pessoas que morreram nas torres gémeas. E mesmo naquele ano, a mãe de António “não [tinha] forças” para ir, nem Augusto para a convencer a tanto.
O irmão mais novo, Jason, até evitava deslocar-se a Nova Iorque, a cidade onde cresceu. Era em 2001 um jovem de 21 anos e, com o pai fora do país – a trabalhar nas Bahamas – teve de ser ele a correr os hospitais durante os cinco intermináveis dias até à confirmação da morte de Tony.
Augusto descrevia Tony como alguém com dom para as línguas e para a matemática, apaixonado pelo trabalho de gestor financeiro, na Cantor Fitzgerald, que perdeu 658 funcionários no dia dos ataques, mas também pela bricolage, carros (fã do brasileiro Ayrton Senna) e até fotografia.
“Tony viveu a vida até ali ao máximo que podia ter vivido”, afirmava o pai, em 2011 a residir no estado da Pensilvânia. “Era algo além do filho que era, era um amigão… fantástico. Nunca vou superar essa perda”, desabafava à Lusa.
“Procurei falar [aos netos] sobre o pai, o que ele fez. Falar muito sobre ele, sobre a sua personalidade. É o que me preocupava mais, eles começarem a adquirir esse conhecimento”.
Do que ainda não tinham falado, explicava, foi do “porquê”, as circunstâncias do desaparecimento do pai naquele dia normal de trabalho, nos últimos pisos da torre norte do World Trade Center, a primeira a ser atingida.
Se o neto mais novo não chegou a conhecer o pai, já Alyssa “tem perfeita consciência” da perda. Guardava no quarto uma tapeçaria feita a partir de uma foto sua ao colo do pai, e outra na carteira.
“Essa matéria de terrorismo está muito além da minha compreensão. Interessava-se sim que os meus netinhos entendessem muito sobre a personalidade do pai. E que, com essas conversas que tenho com eles, possam adquirir, digerir alguma coisa sobre isso e quem sabe seguirem alguns dos trilhos dele”.
Às vezes, ficamos a pensar nas grandes questões; ficamos a discutir o envolvimento de A ou B. O interesse de X e Y. A teoria do combustível e a inocência de uns e outros.
E esquecem-nos dos outros mundos que desabaram com as torres: os mundos de pessoas como Jack ou Augusto. Cada um de maneira diferente viu a realidade desaparecer.
Eu, que nasci no final do século XX; que cresci com os princípios do mundo novo; que me fiz adulto nas crises económicas e nos atentados mensais, não hei de ser capaz de ter noção de como o mundo viu cair duas torres gigantes lá na América.
Por isso, sempre me fascinaram as histórias pequenas das pessoas pequenas; as histórias dos humanos e não dos tijolos.
Não sei ao certo onde estava há 18 anos. O Tomás, que nasceu exatamente no mesmo dia que eu, lembra-se. O António, também contemporâneo, lembra-se de não poder ver Digimon, que passava no Batatoon da TVI, cuja emissão acabou interrompida pelo aparato.
Para muitos jovens da minha idade, por ventura será mais fácil saber que José Figueiras, o apresentador português de televisão, não teve nada a ver com o 11 de setembro (o Manuel, outro contemporâneo, fala disso aqui), do que perceber o impacto que a queda das duas torres no coração dos Estados Unidos teve na geopolítica que ainda hoje nos vai governando.
Por falar nisso, vem-me à cabeça outro pormenor: lembro-me do dia em que reparei na injustiça dos meus livros de História: a minha irmã não tinha nos dela o capítulo sobre os atentados — e no meu lá vinham, mesmo nas últimas páginas.
Já um bocadinho mais crescido do que era em 2001, eu sou o Pedro Soares Botelho e hoje o dia foi assim.
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