E porque é que as eleições canadenses, cujo resultado mais visível foi não terem mudado nada, representam o modo como as democracias andam a esbracejar? Precisamente por ter havido grande comoção e nenhuma mudança. Os jogos políticos não produzem as vantagens que prometem aos eleitores. Neste caso concreto, Justin Trudeau convocou umas eleições antecipadas completamente inúteis, com o objectivo de conseguir uma maioria absoluta. E Trudeau, é bom lembrar, é dos políticos da cena internacional com a imagem mais satisfatória, defensor dos imigrantes, ponderado nas posições internacionais, sempre simpático e sorridente.
A boa gestão inicial da pandemia (as coisas depois descambaram um bocado) deu-lhe resultados muito favoráveis nas sondagens, pelo que decidiu ir a jogo.
(Não é equivalente à mesma decisão de convocar intercalares de Theresa May em 2017; ela precisava desesperadamente de melhorar a sua posição no Parlamento para impor o seu modelo de Brexit).
O que lhe aconteceu foi precisamente o contrário do que almejava. Os eleitores acharam uma inutilidade ir às urnas fora de tempo, o que ainda por cima lhes custou 600 milhões de dólares. Acharam que Trudeau, que é primeiro-ministro desde 2015, com boa aceitação geral, não precisava de mais poder do que tem tido, isto é, o maior número de votos, sistematicamente, mas insuficientes para uma maioria absoluta, sempre.
Precisaria de 170+1 votos para se livrar da coligação com os Novos Democratas (ND), um partido mais esquerdista – ou menos liberal. (Os liberais de Trudeau são social-democratas). Obteve 158, o que o obriga a manter a necessidade dos 25 votos dos ND para governar.
O Canadá não é um país nada simples. Além da sua enorme extensão e clima inabitável na maior área, tem dezenas de nacionalidades, da inglesa à chinesa, passando por indianos, ucranianos e portugueses. No censo de 2016, só 32% da população se considerou como canadiana. Tem, evidentemente, o contraste entre as zonas rurais mais conservadoras e as populações urbanas mais progressistas, como no resto do mundo. Mas tem uma minoria francófona, cerca de 14%, acantonada no Estado do Quebeque, que aspira à independência e acaba por complicar todos os cálculos políticos.
A imagem multicultural do Canadá acabou de receber um duro golpe, quando uma investigação ainda em curso revelou que milhares de nativos – ah, sim, ainda há os nativos, 4,4% da população – foram vítimas de um quase genocídio entre 1920 e 1996. As crianças indígenas (das First Nations, como lhes chamam), eram enviadas para escolas abertamente encarregadas de as desenraizar da sua cultura, ao mesmo tempo que as tratavam muito mal. Já se contam centenas de cadáveres em campas não identificadas.
Embora Trudeau nada tenha a ver com o caso, o mal-estar da notícia contribuiu para uma espécie de retracção dos eleitores.
O eterno segundo partido do Canadá é o Conservador, agora dirigido por Erin O’Toole (a ascendência irlandesa é óbvia), que não conseguiu impressionar os eleitores indecisos – aqueles que sempre decidem o resultado duma eleição. “Há cinco semanas o Sr. Trudeau pediu uma maioria, porque achava que uma posição minoritária no Parlamento era impraticável. Mas hoje os canadianos não lhe deram a maioria que ele queria. Pelo contrário, mantiveram-no em minoria, à custa de 600 milhões de dólares e o aumento das divisões dentro do nosso grande país”, foi o máximo que ele conseguiu dizer, isto é, o que já toda a gente sabia.
As principais questões na agenda, que ficaram penduradas, são a carência de habitação, o controle de armas e, obviamente, a pandemia. Desta mesmice eleitoral o que se pode concluir é que a habitação continuará a ser um problema, o porte de arma não será facilitado e a pandemia... continua.
Esta eleição veio confirmar que também no Canadá há um divórcio crescente entre a população e os governantes. A abstenção foi a mais alta de sempre, cerca de 61%. O afastamento dos eleitores em eleições só não aumentou nos Estados Unidos, onde a radicalização esteve ao máximo nas eleições de 2020, devido ao trumpismo. Mas segue a preocupação nos países evoluídos com o desinteresse dos eleitores. Num inquérito feito depois das eleições de 2019 (ainda não há para 2021), 35% dos absentistas disseram que “não se interessam por política”, como se as decisões políticas não lhes dissessem respeito.
Felizmente há excepções, é precisamente o caso da Alemanha, onde a participação popular tem sido consistente ao longo dos anos e até sobe nas eleições estaduais, o que mostra que os governados ainda pensam que uma mudança de chefias significa alguma mudança nas suas vidas.
(No caso de Portugal, a abstenção tem aumentado regularmente de 8,5% em 1975 para 51,4% - um recorde - nas legislativas de 2019).
Trudeau vem de uma longa tradição política. Não só toda a vida esteve metido ao barulho eleitoral, como o seu pai, Pierre Trudeau, foi primeiro-ministro duas vezes, entre 1968 e 1980 e uma figura carismática e dominante da cena política do país.
Portanto, experiência não lhe falta. Ou então, como diriam os cépticos, tem experiência a mais.
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