
Vários países já implementaram o voto eletrónico, mesmo que apenas parcialmente. Em Portugal, continua ainda a forma tradicional: caneta e papel.
Ao longo dos anos, surgiram, segundo a Comissão Nacional de Eleições (CNE), vários "ensaios ou experiências piloto", devido à vontade dos Estados de desenvolverem "processos eleitorais mais modernos".
"A implementação de soluções de voto eletrónico visa, sobretudo, conferir maior celeridade às operações de votação e apuramento, melhorar toda a gestão do próprio processo com vista a atingir ganhos de eficiência e, ao mesmo tempo, manter ou aumentar as garantias de segurança e credibilidade de todo o processo", é explicado.
Desta forma, o voto eletrónico pode "contribuir para que o cidadão eleitor exerça o seu direito de sufrágio de modo mais eficaz e cómodo, procurando, assim, combater algumas causas do abstencionismo que, no caso português, se têm vindo a evidenciar em alguns atos eleitorais".
Portugal já testou o voto eletrónico?
Em Portugal foram desenvolvidas várias experiências de voto electrónico: em 1997, 2001, 2004, 2005 e 2019.
1997 e 2001
- Desenvolvidas durante as eleições para os Órgãos das Autarquias Locais;
- A primeira experiência aconteceu na freguesia de São Sebastião da Pedreira (Lisboa);
- A segunda experiência realizou-se em zonas de características sociológica e geograficamente diferenciadas: freguesias de Campelo (Baião) e Sobral de Monte Agraço;
- Em nenhuma destas experiências os votos contaram para os resultados oficiais.
2004 e 2005
- A experiência de 2004 contemplou exclusivamente o voto eletrónico presencial e foi realizada nas Eleições para o Parlamento Europeu;
- Apenas algumas freguesias foram contempladas: Mirandela (Mirandela), Paranhos (Porto), Mangualde (Viseu), São Bernardo (Aveiro), Sé (Portalegre), Belém (Lisboa), São Sebastião (Setúbal), Salvador (Beja) e Salir (Loulé);
- Em 2005 a experiência aconteceu nas Eleições para a Assembleia da República, com voto eletrónico presencial e não presencial;
- Voto eletrónico presencial: freguesias de Conceição (Covilhã), Santa Iria da Azóia (Loures), S. Sebastião da Pedreira, Santos-o-Velho e Coração de Jesus (Lisboa);
- Voto electrónico não presencial: eleitores portugueses residentes no estrangeiro, através de uma plataforma de voto online;
- Estas experiências também não contaram para os resultados oficiais.
2019
- A experiência aconteceu nas Eleições Europeias;
- Foi utilizado o voto eletrónico presencial no distrito de Évora, com 47 mesas de voto eletrónico em 25 freguesias;
- Os eleitores puderam optar entre votar eletronicamente e de forma tradicional;
- A votação eletrónica presencial foi apurada e contabilizada nos resultados finais.
Votar pela internet? “É possível, mas exige muito mais do que tecnologia”
Como vemos, a ideia de simplificar o ato eleitoral com a ajuda da tecnologia já foi testada em Portugal várias vezes e a tecnologia já mostrou que é possível. Mas afinal o que é que está a faltar?
“Uma decisão política e técnica”, garante o porta-voz da Comissão Nacional de Eleições (CNE).
Sem se pronunciar sobre se o voto eletrónico deve ou não ser implementado, Fernando Anastácio garante que a Comissão não se opõe à sua adoção, desde que seja assegurado que “o eleitor pode votar de forma livre, sem qualquer tipo de pressão”. Questionado sobre a viabilidade e segurança desta modalidade, admite: “Não posso garantir. Tenho dúvidas. Exige várias salvaguardas de segurança.”
Num cenário ideal, votar poderia ser tão simples como fazer login numa app, escolher um candidato e confirmar a decisão com um clique. Mas transformar esse ideal em realidade exige uma engenharia complexa e multidisciplinar, alerta Davide Ricardo, CTO da Load Interactive, uma empresa portuguesa especializada no estudo e desenvolvimento de novos produtos digitais.
“É possível votar eletronicamente, sim — e até remotamente, pela internet. Mas não é só uma questão de tecnologia. É preciso garantir segurança, auditabilidade, acessibilidade e adaptação legislativa. Um sistema destes só pode ser implementado com testes em escala e uma abordagem faseada”, alerta o especialista.
Dois modelos possíveis
Existem, segundo Davide Ricardo, dois grandes modelos para digitalizar o voto:
- As urnas eletrónicas autónomas, colocadas em espaços públicos, mas sem ligação à Internet — uma solução que combina tecnologia com controlo físico.
- O voto remoto via internet, com todas as vantagens e desafios que isso implica.
Neste segundo cenário “mais ambicioso”, o eleitor poderia votar a partir de qualquer sítio, com recurso ao Cartão de Cidadão, autenticação forte e assinatura digital.
Para isso a aplicação ou sistema teria de ser seguro, auditável e, idealmente, baseado em tecnologias como blockchain: um mecanismo de banco de dados avançado que permite o compartilhamento transparente de informações na rede de uma empresa.
Uma das possibilidades exploradas seria permitir que o cidadão votasse as vezes que quisesse durante o período eleitoral, sendo apenas o último voto contabilizado.
“Isto mitiga o erro de voto e dá flexibilidade ao eleitor. Mas só funciona se o sistema for absolutamente fiável e transparente”, reforça Davide.
Segurança e privacidade: o centro da equação
Um dos grandes desafios é garantir que o sistema protege o anonimato, resiste a ciberataques e permite recontagens, sempre sem comprometer a privacidade.
Neste sentido o especialista explica que do ponto de vista estrutural o sistema tem de assegurar:
- Picos massivos de acesso simultâneo, especialmente se for remoto; ou seja, são necessários testes de carga e de stress intensivos: “Não podemos correr o risco de o sistema falhar no momento mais crítico”, sublinha o CTO.
- Sistema de segurança, com chaves publicas (PKI), para garantir autenticidade, integridade e confidencialidade;
- A segregação física de sistemas, ou seja uma separação entre o sistema que autentica os eleitores, daquele que desencripta e conta os votos.
Além disso, o problema não está apenas nos servidores: está também nos dispositivos dos eleitores.
“Podemos ter um sistema central bem protegido, mas o computador do cidadão pode estar infetado com malware. Uma das formas de mitigar esse risco seria criar uma aplicação paralela, onde o eleitor pudesse confirmar que o seu voto corresponde ao que foi registado”, sugere.
Acessibilidade e inclusão digital
A tecnologia, por si só, não basta.
É fundamental garantir que todos os eleitores conseguem utilizá-la, incluindo pessoas com deficiência e cidadãos com baixa literacia digital.
“As interfaces devem ser intuitivas, universais e acessíveis. E o Estado tem de garantir que ninguém fica de fora só porque não tem computador ou internet”, alerta.
As principais vantagens
Se bem implementado, o voto eletrónico remoto pode trazer inúmeras vantagens:
- Maior comodidade, permitindo votar de casa;
- Redução de custos logísticos, ao eliminar a necessidade de espaços físicos e mesas de voto;
- Contagens mais rápidas e precisas, com menor erro humano;
- Maior participação, ao eliminar barreiras geográficas ou físicas;
- Continuidade democrática, mesmo em cenários de crise, como pandemias.
Ainda assim, Davide Ricardo deixa o alerta: “Se o sistema não for transparente e verdadeiramente auditável, pode gerar desconfiança popular. E isso seria fatal para a democracia.”
Outro obstáculo é o facto de as auditorias técnicas exigirem especialistas altamente qualificados. “Não sei se é uma desvantagem em si, mas obriga a um investimento sério em competências e processos.”
A tecnologia está pronta — ou quase
Antes de qualquer implementação nacional, deveria ser feito um teste piloto regional, envolvendo, por exemplo, 100 mil eleitores na eleição autárquica, sugere o especialista da Load Interactive.
Só depois, e com base nos resultados, se devia avançar para uma escala maior.
Além disso, lembra que será preciso adaptar o quadro legal e regulatório à realidade digital, com normas claras para autenticação, encriptação, contagem e fiscalização.
A tecnologia está pronta - ou quase, é preciso uma visão política clara, aliada a uma execução meticulosa e inclusiva.
“Estamos a falar de um dos pilares da democracia. Não podemos falhar”, conclui Davide Ricardo.
Quem tem pedido o voto eletrónico em Portugal?
Nas eleições para a Assembleia da República, como as que se realizarão a 18 de maio, os portugueses que residem no estrangeiro podem votar presencialmente ou por via postal, devendo fazer essa opção junto da respetiva comissão recenseadora no estrangeiro, até à data da marcação da eleição, pois se não escolherem terão de votar por via postal. Nas eleições presidenciais e europeias, a votação só é presencial.
O voto eletrónico tem vindo a ser exigido pelo Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP) para eliminar as dificuldades associadas ao voto postal e ao voto presencial.
Uma resolução proposta pelo PSD para a realização de uma experiência para testar o voto eletrónico na emigração foi aprovada em fevereiro com a oposição do PS, Bloco de Esquerda e PCP e com a abstenção do PAN.
Para as eleições antecipadas de 18 de maio estão inscritos pelo círculo da Europa 947.984 eleitores, mas nas eleições legislativas anteriores, de 2024, foi registada uma taxa de abstenção de 74,5% neste mesmo círculo.
Cerca de 40% dos votos foram ainda anulados, a maioria devido a irregularidades com a fotocópia do documento de identificação exigida.
"Temos um objetivo que é o voto eletrónico. A votação não pode ser uma complicação, nem é aceitável que as pessoas votem e depois haja muitos votos que sejam nulos, outros cujas cartas vêm para trás", disse o cabeça de lista da AD pelo círculo da Europa, José Manuel Fernandes.
"Há muita gente que se agarra às taxas de participação que são muito baixas para dizer que a representação está bem. É evidente que, havendo uma participação facilitada, haverá uma votação massiva e uma reivindicação justa para que haja uma maior representação", acrescentou.
Também em Macau representantes portugueses têm vindo a mostrar estar de acordo com uma transição para o voto eletrónico, salientando constrangimentos nas opções correntes para a emigração.
"Desde que não se avance sem ser testado, estou integralmente de acordo. O futuro é esse e temos que apontar para aí", sublinhou a presidente da Casa de Portugal em Macau (CPM), Maria Amélia António.
"Com os consulados a funcionarem mal, no sentido de terem poucos funcionários, com o trabalho que têm, e em países onde estão muito longe dos sítios onde as pessoas moram, é muito difícil as pessoas irem votar pessoalmente. Também se tem provado que há muitas falhas nas garantias de receberem voto [via correio]", afirmou ainda.
Também o presidente da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), lembrando que "o problema dos correios é muito complicado", admitiu que, se o voto eletrónico garantir maior participação no ato eleitoral, então é uma aposta ganha.
"Ainda por cima, [tratando-se] de Portugal, país de emigrantes, que querem seguir os assuntos do país", considerou.
Rui Marcelo, presidente do Conselho Regional das Comunidades Portuguesas da Ásia e Oceânia, também apoia a medida.
"Com o avanço da tecnologia e a possibilidade de implementação de sistemas de segurança que possam garantir a segurança do voto — o que acontece hoje através da prestação de serviços noutras áreas também do Governo — estão criadas as condições para que possamos eventualmente evoluir para uma situação onde ele possa ser obviamente um complemento mas não um substituto", notou.
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