
O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, já está a chamar os partidos que ontem ganharam assento parlamentar para, "serenamente", os "ouvir na leitura da vontade dos portugueses". Antes de indigitar o primeiro-ministro, quer apenas uma garantia: "A certeza de que o Governo não é rejeitado imediatamente", disse ao jornal Expresso três dias antes das eleições.
Resta saber se essa certeza existe ou se a dúvida prevalece. A AD ganhou as legislativas com 1.951.789 votos expressos (mais cerca de 141 mil votos do que em 2024), numas eleições com a abstenção mais baixa dos últimos 30 anos, e isso pode não ser suficiente para Luís Montenegro e o seu governo implementarem um programa.
Isto, apesar de em 25 governos constitucionais desde 1976 até ontem, apenas seis terem tido maioria absoluta, quatro liderados pelo PSD, dois pelo PS. Mas muitos governos minoritários cumpriram legislaturas completas.
Depois da derrota de Pedro Nuno Santos, que num ano perdeu mais de 365 mil votos, o Partido Socialista terá de encontrar um novo líder e precisa de se reorganizar. Ainda assim, o secretário-geral não saiu sem antes dizer que acredita que não cabe ao partido o papel de suporte do novo governo e que "Luís Montenegro não tem a idoneidade necessária para o cargo de primeiro-ministro e as eleições não alteraram essa realidade", pondo em cheque os quatro anos de governação.
Ainda assim, se o PS, sozinho, pode viabilizar o governo, perdeu qualquer hipótese de o chumbar. A AD sozinha tem mais deputados (89) do que a esquerda toda junta (70), e a direita unida (156 deputados sem contar com emigração) já tem mais dos dois terços (154) necessários para fazer uma revisão constitucional. Isto significa que na hora de votar no parlamento, é o Chega que vai decidir se fica ao lado do PS ou do PSD, se aprova ou bloqueia determinada iniciativa. A menos que PS e AD sanem as suas divergência e se entendam.
A Constituição dá ao presidente da República a possibilidade de ouvir os partidos ainda antes de serem conhecidos e publicados os resultados oficiais. A lei prevê duas semanas ao longo das quais podem ser apresentadas reclamações, pedidos de recontagem de votos ou repetição de atos eleitorais. Os resultados oficiais têm de ser publicados em Diário da República até oito dias depois da recepção das actas.
No final deste processo, é convocada a primeira sessão da nova Assembleia da República, presidida pelo deputado mais velho entre os eleitos, com o objectivo principal de eleger o novo presidente. A votação é secreta e exige maioria absoluta (116 votos). Será o primeiro teste à nova configuração parlamentar - em 2024 foram necessárias várias votações e teve de haver um entendimento entre AD e PS para uma presidência rotativa, José Pedro Aguiar-Branco na primeira metade da legislatura, um deputado no PS na segunda metade, que não chegou a acontecer. O SAPO24 traça aqui diversos cenários possíveis, ainda que uns mais improváveis que outros.
Cenário 1: Marcelo Rebelo de Sousa não nomeia Montenegro
O presidente da República pode achar que não estão reunidas as condições de estabilidade para nomear Luís Montenegro primeiro-ministro. Embora a esquerda somada tenha menos deputados do que a AD sozinha, a garantia de André Ventura de que irá viabilizar o governo e não será um elemento de perturbação pode não chegar para Marcelo Rebelo de Sousa.
Embora a decisão deva respeitar os princípios democráticos e os resultados eleitorais, a Constituição da República Portuguesa não obriga o presidente a nomear o líder do partido mais votado. É prática fazê-lo, mas em 2015 foi diferente, quando PS, BE, PCP se uniram para derrotar a direita (que venceu nas urnas). Neste caso, sem a "maioria maior" pedida por Luís Montenegro e com o "não é não" da AD ao Chega, qualquer equilíbrio é mais difícil.
Em teoria, o presidente pode ainda optar por um governo de iniciativa presidencial (houve três em Portugal, nenhum correu bem), solução altamente improvável na prática. Ou pode optar por sugerir (ou pedir a sugestão) de um nome mais consensual para primeiro-ministro, mesmo vindo que vindo da AD.
Basta lembrar o que disse Marcelo Rebelo de Sousa sobre Luís Montenegro ainda há uma ano, num jantar com jornalistas estrangeiros. "Dá muito trabalho", é muito "imprevisível", "caipira" e com "comportamentos rurais", considerações reveladas pelo Correio Braziliense.
Seja qual fora a decisão, vamos ver como é que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, em fim de mandato, exerce a sua magistratura de influência para garantir quatro anos de estabilidade.
Cenrário 2: Uma moção de rejeição
Qualquer partido pode apresentar uma moção de rejeição. O PCP tem vindo a anunciar que apresentará uma moção de rejeição ao programa do governo - sozinho ou com outros partidos, essa é a incógnita -, para dar um sinal claro de oposição à AD.
Em 2015, uma moção de rejeição contra o programa do PSD/CDS fez cair o governo de Passos Coelho, eleito com 1.993.921 votos (convertidos em 102 deputados). Os 36,86% alcançados, acima do resultado agora conseguido pela mesma coligação, não foram suficientes para o governo se manter de pé.
Com apenas uma deputada, o Bloco de Esquerda não forma grupo parlamentar e, por isso, não pode apresentar moção de rejeição, como fez no passado. O Livre também pode fazê-lo, mas não tem nada a ganhar, e com Pedro Nuno Santos demissionário, a decisão ficará para o próximo líder (e alguns possíveis candidatos à liderança do partido, como José Luís Carneiro, têm defendido entendimentos ao centro). Ainda que quisessem chumbar o governo, os partidos de esquerda teria sempre de contar com a aprovação do Chega.
Cenário 3: A prova do OE 2026 e uma Comissão Parlamentar de Inquérito à Spinumviva
A AD voltou a ser a coligação mais votada, mas Luís Montenegro não está a salvo. Entre as várias provas que terá de superar estão o Orçamento do Estado para 2026, em outubro, e uma eventual Comissão Parlamentar de Inquérito à Spinumviva - apesar de os eleitores terem dito claramente que esse não é um assunto.
Sozinho, o Chega tem deputados suficientes para avançar com uma CPI (e o PS também), uma vez que é necessário apenas um quinto dos deputados (46) para avançar com o processo, e alguns elementos do partido já disseram que esta podia ser uma opção.
O mesmo se passa com o Orçamento do Estado, a decisão pode ficar nas mãos do Chega. PS, Livre, PCP, BE e JPP podem votar contra, mas não conseguem bloquear. Para chumbar, é necessário o Chega. Se até aqui o PS era uma pedra no sapato para a AD, esse papel cabe agora a Ventura e é a direita que pode impedir a direita de avançar.
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