1, 2, 3, 4, 5 minutos de Jazz.
1
Reúno-me com os professores da turma numa sala de aulas comum, mas nestas alturas tratamo-la por “sala de reuniões”. A diferença da sala de aulas e da sala de reuniões está na disposição das mesas – arrastaram-se algumas até ao centro, fazendo um rectângulo maior em torno do qual os professores abancam. A outra diferença é que, quando os alunos se sentavam dois a dois, as mesas não se chamavam mesas, eram carteiras. Apercebo-me que o “Carina + Igor” escrito à minha frente é muito mais estranho numa mesa do que numa carteira.
2
No rectângulo de mesas sentam-se pessoas que têm em comum a profissão e a vontade que o tempo passe depressa. Já as idades são diversas. Não sei quem é o mais velho entre nós, e isso seria uma informação sem importância alguma – exactamente o tipo de informação que hoje em dia me deixa curioso (a internet estragou-me). É claro que não vou perguntar isto das idades. Tenho senso de decoro. E embora estejamos todos com vontade que o tempo passe depressa, pareço ser o único dedicado a não atrasá-lo com perguntas sem importância alguma.
Entretanto uma colega amorosa leu-me o pensamento e adicionou-lhe descaramento. Perguntou a idade a toda a gente. Os mais novos, ambos com 28 anos, são o professor de Educação Física e eu. Escusado será dizer que os 28 anos dele estão em muito melhor forma que os meus. Azar, ficou incumbido de redigir a acta.
3
A reunião de professores tem por nomenclatura oficial “Conselho de Turma”. Questiono-me se o nome não parecerá pomposo e formal aos que estão de fora (esse mundo imenso de não-professores). Às vezes divago e imagino-me de fora; imagino-me a entrar ao engano nesta sala, ver as bolachas que alguém trouxe para a mesa, olhar para a informalidade das roupas, para os cabelos berrantes das professoras divorciadas. Imagino que me pedem silêncio porque está a decorrer um “Conselho de Turma”. O nome não soará pomposo e formal a quem está de fora?
A verdade é que estou dentro, e sei que a nomenclatura é ajustada. Há aqui gente extraordinariamente dedicada ao Ensino e aos alunos, dedicação que transcende a formalidade e merece todas as bolachas que quiser num “Conselho”. Ouço testemunhos de colegas que me envergonham - pelo tanto que eles fazem e sacrificam em prol dos miúdos, pelo pouco que em comparação eu faço. São testemunhos que me deixam com ponta corporativista, quase priapismo sindicalista. Sinto-me culpado por estar sempre a imaginar-me de fora. Culpado por andar sempre distraído a escrever disparates no meu Moleskine. Quero estar dentro. Vou só rabiscar aqui uma caricatura no canto e já vou para dentro. Dentro de momentos. Dentro do possível.
4
Aconteceu agora uma coisa que me fez lembrar a série policial “The Wire” (a melhor série de sempre, não me canso de dizer). Há uma temporada (a 4.ª) onde o enredo gira em torno de dois polos: uma escola secundária de Baltimore, e os meandros políticos de Baltimore (sobretudo a eleição do Mayor da cidade). É nessa temporada que os polícias recebem ordens para prender gente a torto e a direito, fazer detenções por ninharias – e isto devido a uma manobra política. O objectivo era mostrar muito serviço nas estatísticas do trabalho policial. Essa manobra fez desleixar o combate ao crime, já que o esforço quantitativo para apresentar números estava a estragar o esforço qualitativo - focado em casos maiores e mais importantes.
Paralelamente, e em analogia perfeita, a Direcção da tal escola secundária de Baltimore pedia o seguinte aos professores: para não se preocuparem com a compreensão da matéria por parte dos alunos, e passarem apenas a treiná-los para saberem responder às provas nacionais. O objectivo, mais uma vez, era parecer bem nas estatísticas. Outra vez também, o afã quantitativo estragava algum trabalho de fundo que vinha a ser feito com as crianças.
Pois, no Conselho de Turma onde estou sentado (e, até ver, é só sentado que estou), acabaram de revelar uma indicação superior com essas manigâncias dos números, e do “desenrasquem-se em prol da estatística”. Fico muito indignado. Tanto, que começo a praguejar mentalmente com sotaque de Baltimore. É uma indignação fraquinha, mas ao menos foi inspirada na melhor série de sempre.
5
Alguém foi fumar à janela. Lá fora vê-se o parque de estacionamento dos professores. Uma paisagem feita de carros modestos. Em contraste, o primor de alguns penteados nesta sala faz-me crer que as contas de cabeleireiro davam para pagar uma frota de Aston Martin. Por falta de linguajar técnico, não sei descrever o que se passa nestes cabelos das colegas; há madeixas e coiso. Parece que passou por aqui o Edmundo Mãos-de-Tesoura (que ainda tem mais jeito para o landscaping capilar do que o seu irmão Eduardo).
Este assunto é-me caro, tendo em conta que não pago por um corte de cabelo desde 1999 (diz-se “mil nove e noventa e nove”). Na verdade é um assunto que me é barato.
O meu cérebro entretém-se a imaginar sacos de dinheiro a entrar no “Salão Unissexo Marizé”, mas só até à altura em que os ouvidos me puxam as orelhas para escutar qualquer coisa sobre um decreto-lei não-sei-das-quantas.
5.1
O pior corte de cabelo na sala é, obviamente, o meu. Mas, como sou penteado por uma força da Natureza (o vento matinal que me apanha entre o carro e a porta da escola), não entro nestas contas. O pior corte de cabelo cabe então à professora directamente à minha frente. O péssimo penteado dela emoldura um rosto que faz lembrar o da minha mãe. Foi esta colega que há pouco fumou à janela. Cabelo ridículo, cheiro a tabaco e, ainda assim, me recorda a santa da minha mãezinha. Não ouso, contudo, mirá-la com olhar maternal - posso ser mal interpretado, e os meus 28 anos não estão em tão boa forma como os do colega de Educação Física. Ele safava-se.
5.2
O prémio de melhor corte de cabelo na sala vai para uma colega que eu creio nunca ter visto antes. Deve ter cinquenta e muitos, mas com a luz certa receberia estimativas de trinta e poucos. Ilumina a sala como se ostentasse uma auréola de néon dizendo “Eu sei envelhecer” (ou, em alternativa, “Eu não sei o que é envelhecer).
O enlevo com aquela criatura dura até ao momento em que abre a boca para falar. Dali sai uma voz que transporta 30 anos de berros a alunos mal comportados. Se isto fosse uma banda-desenhada e ela tivesse um balão de fala, seria desenhado em papel de lixa. Cabelo impecável e voz desgrenhada. Malditos miúdos! O meu cérebro começa a imaginar-me anjo vingador, com ralhetes e negativas e chumbos e recados na caderneta, mas entretanto os ouvidos puxam-me as orelhas para escutar qualquer coisa sobre a alínea não-sei-das-quantas.
6.
Chegou a minha altura de falar. Vamos lá despachar isto para irmos embora. Tenho a boca seca como quem esteve a dormir e não diz nada há várias horas. A julgar por este caderno, há várias horas que não me calo.
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
O portal da crónica brasileira é um portal da crônica brasileira. A crónica brasileira celebra a riqueza da língua portuguesa, e a crônica brasileira celebra a riqueza duma ortografia que não tem de ser igual.
Embora o conceito de cowork muito se tenha popularizado, são raros os casos em que os espaços representam mais do que a soma das suas mesas. A CRU Cowork, no Porto, é caso raro. Fervilha de criatividade, privilegia a interacção, está voltada para a intervenção na comunidade local e ainda possui uma galeria/loja para os produtos lá desenvolvidos. O slogan “Tudo é melhor no Porto” não foi criado na CRU, mas era justo se tivesse sido.
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