Às 7 da manhã de 11 de setembro de 1973, o céu de Santiago do Chile ficou atormentado pelas manobras contínuas de helicópteros e pelo ronco dos motores de aviões militares em voo baixo.
Esse movimento no ar cobria o posicionamento de carros blindados do exército que, com centenas de militares armados cercavam La Moneda, o edifício que era a sede do governo chileno.
O comando militar das Forças Armadas chilenas comunicou nesse amanhecer ao civil Salvador Allende que, como presidente da República era o comandante máximo do país, que teria de renunciar de imediato ao cargo. Facilitavam-lhe um lugar num avião militar para que deixasse o país.
Allende tinha sido eleito três anos antes, em 4 de setembro de 1970, como líder de uma coligação de esquerdas que tinha adotado o nome de Unidade Popular.
Logo nos primeiros meses de mandato na presidência daquele país muito alongado e estreito situado entre o Pacífico e a imensidão dos Andes, Allende tinha decretado a expropriação dos latifúndios. Resultaram choques violentos entre proprietários e camponeses.
Meses depois, em julho de 1971, o parlamento chileno com maioria da Unidade Popular aprovou a nacionalização da banca e também das minas de cobre, estas exploradas por empresas dos EUA.
No Natal chileno de 1971 havia escassez de alimentos. Por um lado, em consequência dos conflitos no campo, por outro, porque a poderosa associação patronal de camionagem tinha iniciado movimentos de paralisação da distribuição.
O governo do presidente Allende introduziu, em abril de 1972, as Juntas de Abastecimento e de Controlo de Preços. Era suposto que funcionasse um cabaz de compras acessível a todos, mas não resultou. Perante a inflação disparada (323% de inflação anual entre junho de 72 e junho de 73), a crispação altíssima no país dividido levou a que , nas eleições legislativas de março de 73, a oposição de direita saísse vencedora. Allende deixou de ter maioria no parlamento, mas a Unidade Popular continuou a governar.
Em agosto de 73, a crise agravou-se mais: o parlamento aprovou uma moção de censura ao governo, a camionagem voltou a paralisar os abastecimentos e houve uma mudança crucial no comando do exército: Carlos Prats, general legalista e constitucionalista considerou não ter condições para continuar a chefiar a tropa que cada vez mais falava em derrube do presidente; Augusto Pinochet foi nomeado em 23 de agosto para o comando do exército.
Pinochet demorou apenas 19 dias no comando militar até consumar o golpe de estado.
A operação militar golpista começou às 5 da manhã de 11 de setembro daquele 73, com a Armada a bloquear quartéis leais a Allende em Valparaíso e Viña del Mar.
Às 6 e 40, Salvador Allende, em casa, foi avisado que estava em curso um levantamento militar. Às 7 e 15 da manhã já estava no palácio presidencial de La Moneda. O comandante da polícia pôs-se ao lado do presidente e montou segurança reforçada por centenas de agentes nos quarteirões em volta de La Moneda. Allende tentava falar com Pinochet e outros comandantes dos três ramos das forças armadas, mas estes não lhe atendiam o telefone.
Às 7 e 30, a Radio Agricultura, bastião da oposição a Allende, passou a porta-voz e propagandista dos golpistas.
O presidente Allende decidiu dirigir-se aos chilenos através da rádio. A mensagem foi dita através das rádios Magallanes e Corporacion. Na ocasião, Allende apelou à calma e expressou a confiança de que o golpismo seria travado.
Na hora seguinte, o presidente falaria através da rádio mais quatro vezes: às 8 e 10, 8 e 45, 9 e 3 e, finalmente, às 9 e 10. Este último, é um discurso de despedida com incitamento ao combate pela esperança: “Trabajadores de mi patria, tengo fe en Chile y su destino. (...) Mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor”.
Instantes depois, a residência pessoal de Alende foi bombardeada.
Em cima das 10 da manhã a tropa golpista fez primeiros disparos sobre o palácio presidencial. Aconteceu então a última aparição fotografada de Salvador Allende: o ainda presidente, com uma capacete militar a proteger-lhe a cabeça, abriu uma janela no primeiro piso do palácio presidencial; tinha uma espingarda na mão e disparou em resposta ao fogo da tropa de Pinochet.
Eram 10 e 30 quando a Junta Militar, chefiada por Pinochet, anunciou que estava a tomar o poder e iria bombardear o palácio presidencial porque Allende não se rendia. O bombardeamento desencadeado por caça-bombardeiros Hawker Hunter começou às 11 e 58. O palácio ficou em chamas.
Allende já se tinha despedido das duas filhas que tinham ido ao encontro dele no palácio.
Pouco depois das 13 horas, Allende pede a todos os fiéis ao lado dele que se vão embora. Despediu-se de cada um com um aperto de mão e um abraço.
Há registo de suicídio do presidente Salvador Allende às 13:58 daquele 11 de setembro, no salão da Independência do palácio de La Moneda, que continuava a arder.
Os disparam continuaram a partir do exterior, até à entrada da tropa golpista no palácio, pouco depois das 2 da tarde.
A política e a legitimidade democrática ficaram derrotadas por um golpe de estado militar. Ficou instalada por 17 anos uma brutal e perversa ditadura militar, acusada de crimes de lesa humanidade, que causaram centenas ou mesmo milhares de mortos, cujos corpos, em mitos dos casos, nunca foram entregues aos familiares.
Um dos milhares de torturados e mortos é o cantautor Vitor Jara, tinha então 41 anos. Ficou registado que foi torturado e morto por um grupo de sete militares da Junta de Pinochet. O processo a esses criminosos, entretanto impunes, demorou meio século a chegar à fase de sentença final, lida no passado 28 de agosto: dois deles estão fugidos e um outro, com 86 anos, suicidou-se.
Continua a procura por milhares de desaparecidos no tempo da ditadura de Pinochet. Foi gigantesca a onde de chilenos que há meio século se refugiou no exílio.
Ainda persistem sequelas da ditadura de Pinochet no Chile, um país que agora tem um presidente, Boric, que emergiu dos movimentos da esquerda estudantil e que é uma democracia, mas com vida política muito crispada, com ainda nostálgicos do tempo da ditadura.
Esta longa ditadura de Pinochet no Chile não está sozinha na América Latina. Brasil, Uruguai e Argentina também estiveram submetidos a ditadores militares seguidores de Pinochet. Mais a norte, a Venezuela e a Nicarágua seguem o modelo ditatorial esquerdista da Cuba revolucionária.
O 11 de setembro de 1973 é um dia de tristeza e impotência na história da democracia. O onze é um número primo, indivisível, também uma capicua. Remete-nos para outras brutais tragédias terroristas em outros dias onze: exatamente 28 anos depois do golpe no Chile, em 11 de setembro de 2001, foi a infâmia terrorista da Al Qaeda nos EUA; a vileza terrorista continuou num outro onze, este três anos e meio depois das Torres Gémeas, o 11 de Março de 2004, com os ataques jiadistas a quatro comboios nas linhas de Madrid, causando então 192 mortos.
Todos estes ataques ainda ressoam e doem.
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