Portugal e Espanha têm comboios históricos para todas as bolsas e organizados, sobretudo, pelas empresas ferroviárias dos respetivos países. Do lado de cá, a cargo da CP, circulam o Comboio Histórico do Douro (54 euros/pessoa; três horas de programa, no total), que dura toda a tarde, e o Presidencial (Comboio Presidencial - 750 euros/pessoa; dia inteiro, mais refeições), que viaja todo o dia; do lado de lá, a Renfe conta com programas para vários dias de luxo, como o El Expreso de la Robla, Transcantábrico, Costa Verde Express e Al Ándalus. Mas há outras opções nos dois países que são organizadas por voluntários apaixonados pelos comboios.

Nestes passeios sobre carris, os passageiros entram num ambiente de festa a bordo de composições históricas devidamente recuperadas e ainda podem conhecer cidades fora das capitais dos dois países. Em Portugal, os passeios são anuais e promovidos pela APAC – Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro; em Espanha, as atividades são mensais e dinamizadas por associações como a AAFM - Asociación de Amigos del Ferrocarril de Madrid – e a AZAFT - Asociación Zaragozana de Amigos del Ferrocarril y Tranvías. As associações espanholas são donas de carruagens e locomotivas; em Portugal, a APAC depende da CP para pôr os passeios em marcha. As diferenças não ficam por aqui, entre a burocracia portuguesa e os apoios do lado de Espanha.

Em Portugal, um dos passeios mais ambiciosos de sempre realizou-se a 26 de março de 2022: perto de 500 pessoas preencheram nove carruagens históricas Schindler e percorreram 730 quilómetros de comboio num só dia a reboque de uma locomotiva elétrica da série 2600.

Saíram do Porto e de Lisboa, percorrendo a Linha do Norte até ao Entroncamento, a partir de onde subiram toda a Linha da Beira Baixa até perto da estação da Guarda. Depois, entraram na Linha da Beira Alta (na véspera de fechar para obras) até à Pampilhosa, onde se dividiram os passageiros com destinos ao Porto e a Lisboa. A principal paragem fora do comboio foi no Tortosendo, na Linha da Beira Baixa, onde foi servido um almoço volante. Na viagem houve ainda paragens para fotografia em Almourol e no Fratel. Foi uma festa sem fim ainda para mais porque nestas carruagens, recuperadas dois anos antes, dava perfeitamente para abrir as janelas e contemplar a paisagem.

Anunciada com algumas semanas de antecedência, a viagem pelas beiras (Passeio das Beiras - 41 euros/pessoa; em 2022) foi um sucesso tão grande que houve lista de espera. No ano seguinte, a associação tentou fazer um passeio totalmente ibérico, com partidas de Lisboa e do Porto, o comboio entraria em Espanha por Badajoz, passaria por Ciudad Real, Valência, Tarragona e Barcelona. A partir da cidade catalã, a viagem seguiria por Lleida, Madrid, Salamanca, entrando em Portugal por Vilar Formoso até ao Entroncamento. A partida ficou adiada sine die “por dificuldades essencialmente burocráticas relacionadas com a interoperabilidade do material circulante” entre os dois países, recorda ao SAPO24 o líder da APAC, António Brancanes dos Reis. Entre Portugal e Espanha, seriam necessárias diferentes locomotivas tendo em conta as diferentes tensões na catenária e os diferentes sistemas de apoio à condução. Também seriam necessárias autorizações dos gestores da rede ferroviária de Portugal (IP) e Espanha (ADIF).

“Em comboios especiais, a APAC faz a alavancagem dos seus passeios com os recursos próprios, tendo vindo a ser possível, felizmente e nalgumas ocasiões, contar com o apoio da CP no que se reporta à afetação do material circulante utilizado, mais cativante e interessante para os nossos associados”, explica António Brancanes dos Reis. Nestas ocasiões, os lugares esgotam mas “têm despesas elevadas e não muito ajustadas às bolsas do nosso país; não os realizamos que a frequência que gostaríamos”, reconhece o ferroviário. Outra dificuldade é a cada vez menor variedade de destinos ferroviários “de maior interesse”, por conta do “encurtar” da rede de caminhos-de-ferro em Portugal. 

Enquanto não voltam os passeios exclusivos, a APAC tem optado por deslocações mais convencionais, sem recorrer a comboios especiais: em novembro de 2024, 150 pessoas, dezenas das quais a partir de Lisboa, foram visitar as oficinas ferroviárias de Guifões, no concelho de Matosinhos, onde puderam conhecer o espaço onde se faz a manutenção de todas as composições do Metro do Porto e onde se reparam várias das carruagens e locomotivas da CP. Modelo semelhante foi seguido em 2023, com a visita às oficinas do Barreiro, com mais de 70 participantes. Nestas ocasiões, a APAC realiza os seus passeios “exclusivamente com os seus recursos próprios e sem qualquer tipo de apoios externos”.

Outra limitação da APAC é não ter uma frota própria de comboios para poder fazer passeios com mais à-vontade. “Os recursos da associação são limitados e insuficientes e, acima de tudo, não existem condições práticas no nosso país para que tal pudesse acontecer. Basta ter presente a complexidade burocrática para a operação ferroviária (ao nível dos inerentes licenciamentos e homologações) e os aspetos logísticos incontornavelmente associados a uma frota própria (onde a parquear, fazer a sua limpeza e manutenção, etc.). Em Portugal não há sequer perspetivas de que tal pudesse ser uma realidade, mesmo que a associação tivesse recursos financeiros para o efeito”, justifica o dirigente. 

Como Espanha está mais desenvolvida

O panorama muda um pouco quando atravessamos a fronteira. A culpa é do “forte apoio que é dado às associações por todo o ecossistema ferroviário, a nível financeiro, da simplificação de licenciamentos, apoios logísticos por parte dos reguladores e operadores ferroviários existentes e até mesmo os apoios de entidades oficiais”, sinaliza Brancanes dos Reis. Isso mesmo foi testemunhado no início de dezembro do ano passado. Pouco passava das 8 horas da manhã quando estávamos na estação de Chamartín, em pleno centro de Madrid, à espera de um comboio para Salamanca. Já na plataforma, apercebemo-nos da decoração vintage: a locomotiva a gasóleo amarela e preta rebocava oito carruagens com pintura que nos remetia completamente para o passado. Quem estava à espera do comboio tinha bem presente o objetivo da viagem: seguir em material do século passado durante três horas e meia, da capital de Espanha até Salamanca passando por Ávila e sempre em linhas convencionais.

As oito carruagens são autênticas raridades, que já não já usadas no dia-a-dia e que estão nas mãos das duas associações. “Desde o começo da associação que acreditamos que a melhor forma de fazer um museu é torná-lo num museu vivo. Por isso, enquanto lutávamos para ter um espaço para o museu, fomos recuperando carruagens e colocámo-las ao serviço”, destaca ao SAPO24 o presidente da AZAFT, Carlos Abadias Mata. Ainda hoje, são os voluntários que cuidam do interior das composições e que fazem a manutenção ligeira; quando há trabalhos mais pesados, há uma empresa encarregada disso.

Na viagem até Salamanca, a associação de Saragoça contribuiu com dois vagões: uma carruagem-restaurante, que foi fabricada em Bilbao em 1930 e pertenceu à Companha Internacional de Wagons-Lites (CIWL) até 1985; e uma antiga carruagem-postal dos Correios de Espanha, que, até à década de 1990 funcionava como uma loja ambulante para enviar cartas e postais, pagar pensões entre outros serviços postais. No final de 2024, foi a partir desta carruagem que enviámos postais para Portugal – e chegaram a casa, graças ao selo e ao carimbo certificados.

Para conseguir ter estas carruagens na sua posse, os voluntários da AZAFT começaram a ficar bastante atentos às decisões tomadas pelo Governo. “No final dos anos 1980, a Espanha fez uma grande mudança de material circulante. Passaram-se a utilizar carruagens climatizadas com velocidade de até 160 km/h”, recorda Carlos Abadias Mata. Nessa altura, a associação começou a evitar que este material fosse abatido. Exemplo disso aconteceu com a carruagem-restaurante da CIWL, que foi resgatada de um centro de abate. O exemplo repetiu-se mais vezes e permite que hoje em dia haja uma frota de 100 carruagens.

A associação de Saragoça também tem contado com a ajuda de grandes empresas espanholas: com a Endesa, foi possível recuperar três locomotivas a vapor e que servem para o comboio mineiro, que percorre 2,5 quilómetros em bitola (distância entre carris) de 600 mm num percurso em Utrillas, na província de Teruel, a 300 quilómetros de Madrid; com a ajuda dos Correios de Espanha, foram recuperados três vagões postais, um dos quais participou na viagem até Salamanca. Espera-se que nos próximos anos também seja possível ver estas e outras carruagens no futuro Museu Ferroviário de Aragão.

O passeio até Salamanca foi uma parceria entre as associações AAFM e AZAFT, que repartiram aas carruagens e que combinaram o “comboio dos anos 1980” madrileno com o “comboio azul” de Saragoça. Os bilhetes e o serviço de tração (maquinista) estiveram a cargo da Alsa Rail, filial ferroviária da empresa espanhola de autocarros que é parceira do grupo Barraqueiro no mercado internacional. A parceria da AZAFT com a Alsa Rail surgiu em 2017 e contribuiu para dar uma nova dinâmica económica e social a estas viagens: “A exploração de um comboio histórico é sempre deficitária, pois trata-se de tecnologia em desuso e que requer altos custos de manutenção e de pessoal. Tendo isso em conta e com a ajuda da Alsa, conseguimos encontrar um ponto de equilíbrio. Sabemos que rentabilizar financeiramente um comboio é complicado. No entanto, não nos podemos esquecer dos benefícios socioeconómicos que proporcionamos nas zonas onde circulamos. Queremos que a nossa atividade seja economicamente sustentável”, destaca o dirigente da AZAFT.

Com uma taxa de ocupação média de 85% em cada viagem, o programa da associação de Saragoça para até final de junho inclui viagens em comboio histórico até Soria e San Sebastián. Em 17 de maio haverá mesmo uma viagem feita de noite para aproveitar a final do festival Eurovisão da Canção. 

Além das duas carruagens da associação de Saragoça, a AAFM contribuiu com seis composições: duas carruagens-compartimento de segunda classe; uma carruagem-restaurante com um salão de segunda classe, em que são servidos, por exemplo, churros com chocolate quente (esgotados ao fim de pouco mais de uma hora de viagem); uma carruagem-salão de segunda classe com bancos que rodam conforme o sentido do comboio; uma carruagem-compartimento de primeira classe, com seis autênticas poltronas que, quando reclinadas, conseguem formar três camas individuais; e ainda um furgão-gerador.

A associação madrilena começou a resgatar comboios em 1995, com uma automotora conhecida como “La Suiza”, que começou a circular no início da década de 1960 e que foi fabricada numa parceria entre empresas espanholas e helvéticas. Mas as coisas mudaram a partir de 2007: “coincidindo com a retirada massiva de material convencional por parte da Renfe, pedimos a sua preservação junto da Fundação para os Caminhos-de-Ferro de Espanha (FFE) para que estes comboios nos fossem cedidos por parte da Renfe de forma a serem preservados”, recorda ao SAPO24 Gonzalo Vásquez Hidalgo, porta-voz da AAFM. 

A associação também é parceira da Alsa e tem conseguido garantir uma taxa média de ocupação entre os 50% e os 60%: “temos viagens que esgotam e outras mais discretas”, nota o porta-voz. Independentemente disso, “o objetivo não é a rentabilidade, que, por si só, é difícil devido aos elevados custos de exploração, de manutenção e da natureza da atividade”. Gonzalo é claro: “o nosso objetivo é a sustentabilidade, de forma a cobrir os custos a ser possível continuarmos a organizar estas viagens”. Apesar de a manutenção pesada estar a cargo de oficinas certificadas, os voluntários são fundamentais para a conservação dos comboios: “gerem a restauração, fazem a manutenção preventiva e de acordo com os planos, em equipamentos como as instalações elétricas, casas de banho e sistema de som”.

Fique a saber que a associação, pelo menos até ao final de junho, vai fazer viagens de Madrid para cidades com Bilbao, Talavera de la Reina, Burgos, Aguilar de Campoo (comboio das bolachas) e Vigo. As duas associações contactadas pelo SAPO24 gostavam de fazer uma viagem de comboio entre Espanha e Portugal mas é necessário superar algumas dificuldades: “tecnicamente não é fácil e economicamente não é barato mas é um sonho que um dia tornaremos real”, ambiciona a AZAFT; “é necessário vontade das autoridades portuguesas para que o custo da operação seja suportável mas temos sempre a possibilidade de mudar de material circulante na fronteira, tendo em conta a compatibilidade com a infraestrutura”, conclui a AAFM.