
Montoya, assim se chama o rapaz, assistiu em direto à traição da sua namorada, caiu de joelhos ao chão e saiu disparado do local onde se encontrava com a apresentadora do programa, atravessou a correr uma praia para entrar na casa onde a dita namorada se encontrava na cama com outro concorrente. Tudo seguido ao segundo pelas câmaras e acompanhado em direto por milhões. Algumas pessoas descreveram a cena como “um grande momento de televisão” e o clip “Montoya, por favor” correu redes sociais e tornou-se um meme usado nos mais diferentes contextos.
Houve quem ultrapassasse a primeira crosta do “grande momento de televisão” e discutisse o que tinha acontecido, a responsabilidade dos produtores, da televisão, do próprio público. E houve quem lembrasse o que também é óbvio: quem vai para um reality show sabe ao que vai e, com grande probabilidade, sabe porque vai. Quase todos querem ficar “famosos” e já agora ganhar algum dinheiro. Também se discute sempre se aquilo que vemos é ou não verdadeiro. Estava planeado em guião? Aquele choro do Montoya estava previamente ensaiado? Não é mais do que uma novela a fazer de conta que é vida real? Tudo questões plausíveis no grande negócio do entretenimento.
O Big Brother mudou para sempre a televisão, a portuguesa e as outras, com este nome ou com outro. A seguir, chegaram as redes sociais e mudaram de forma ainda mais profunda a forma como nos relacionamos no espaço público. Reality shows e redes sociais têm em comum o valor da popularidade como referência de sucesso e a destruição de uma ideia de qualidade como fasquia de acesso ao respeito público. E ambos têm como mantra que devemos dar às pessoas aquilo que as pessoas querem – ouvimos e não julgamos.
Isto não começou com a televisão e também não começou com a internet. Começa e continua sempre em nós, humanos. Gostamos de ver o mórbido, o ridículo ou o simplesmente dramático. Quentin Tarantino diz que vamos ao cinema para podermos ver duas coisas a que não assistimos, por norma, em público, sexo ou morte. É uma ideia quase poética porque hoje em dia vamos a qualquer ecrã perto de nós para ver alguém que nos quer mostrar que encravou uma unha ou que havia uma cenoura estragada nas compras da mercearia desde que essa pessoa seja suficientemente profissional a viver a sua vida pessoal e a transforme no seu próprio reality show.
Trouxeram-nos a dimensão quantitativa do que é bom. Tem muitos seguidores? É bom. Tem muitos comentários? É bom. Publica tudo sobre tudo o que mexe à sua volta? É bom. Vivemos um plebiscito diário em que a discussão sobre a qualidade do que se faz é secundária perante a exibição dos resultados de quantos viram ou partilharam ou comentaram.
Esta obsessão pela popularidade invadiu todos os domínios da nossa vida. És médico? Arranja uma conta numa rede social e fala sobre ti, os teus pacientes, a tua vida privada, os teus pensamentos privados sobre os teus doentes. O mesmo para todas as profissões e atividades que possamos pensar – ganha quem se expõe diariamente num palco sendo uma espécie de outdoor digital a acontecer no caminho dos outros.
Há umas semanas, a atriz Maya Hawke, explicava isto de forma clara. Dizia ela, hoje em dia, os produtores decidem castings em função do número de seguidores que um ator/atriz tem. Quantos mais tiver, melhor, mais publicidade gratuita, mais visibilidade pública. Se são os melhores? É uma conversa incómoda, mas fácil de contornar para quem decide nestes termos. Numa frase: mais é mais.
“Anora” ganhou o óscar para o melhor filme deste ano e uma das suas particularidades é ser um expoente da produção indie, custou apenas 6 milhões de dólares. Os produtores gastaram o triplo em promoção – 18 milhões de dólares – e não devem ter chorado um cêntimo desse valor. O racional é o mesmo para quase tudo: emagrecer ao máximo os custos de quem produz, seja pão, seja um livro, para depois poder engordar o orçamento na promoção desse mesmo produto e assim garantir a sua venda.
Os “criadores” com olho para o negócio percebem as regras do jogo e sabem que mais importante que serem extraordinários é conseguirem construir uma legião de pessoas, os seus “seguidores”, que os acham extraordinários. Quando chegam a esse patamar, não precisam de se legitimar pelo que fazem, mas sim pelo números de pessoas que os seguem. E para as pessoas os seguirem têm de lhes dar aquilo que valorizam: a sua vida em direto, a sua autenticidade, a sua proximidade.
Se não fosse trágico, era cómico: não é que milhões de pessoas que seguem milhões de contas de “influencers” ou “criadores” acreditam mesmo que estas pessoas acordam todos os dias de manhã cheios de vontade de lhes mostrar a sua vida em direto, dar acesso ao berço dos filhos ou ao leito da morte de alguém que lhes é querido, tudo porque são autênticos e sentem genuinamente o apelo de estarem próximos de quem os segue. O voyeurismo não é novidade, o que torna este “produto” vencedor é algo muito mais poderoso: a ideia de que não precisamos de ser ou fazer nada de especial para sermos famosos.
Para muitos, nada disto é um problema. Cada um vê o que quer e se vemos reels, tiktoks ou reality shows que nos transformam em amebas, mas nos fazem rir ou sentir melhores seres humanos, então está tudo bem. Cada um sabe de si.
Só que não está e suspeito que estamos apenas a ver a ponta do icebergue. Se tantos não são capazes de descortinar imbecilidade e manipulação em coisas que não têm importância nenhuma, como conseguiremos que pensem mais do que 30 segundos em temas verdadeiramente sérios e que estão a mudar o nosso mundo para pior?
À banalidade do mal sucedeu a banalidade da imbecilidade. Provavelmente o cocktail mais perigoso que enfrentamos. E aqui estamos num momento da história em que idolatramos o conteúdo “autêntico” ao mesmo tempo que duvidamos de quase tudo, incluindo a realidade concreta que entra pelos olhos dentro. Tudo é um reality show.
Ser bom dá mais trabalho. Bom ser humano sem estar no campeonato da popularidade. Bom escritor sem estar no campeonato do TikTok. Bom político sem estar no campeonato da desinformação. Implica não fazer, muitas vezes, o que obviamente é popular, ou divertido, ou fácil.
Alain Botton explicou num dos seus livros [“As notícias”] que os jornais sensacionalistas têm sucesso, porque nos fazem sentir melhores seres humanos (mesmo que o comparativo seja com corruptos, violadores ou mesmo assassinos). Ou podemos sentir-nos só melhores do que um homem de 30 anos que concorreu a um reality show em que casais são confrontados com a “tentação” da traição, acabou mesmo traído e para todo o sempre será eternizado na internet.
Imaginem um livro sobre todas as grandes ideias de televisão que felizmente não chegaram ao ecrã:
- um reality show com o Tiago Grila em que acompanhamos a par e passo as interações diárias de um “génio” do TikTok
- uma série sobre a vida e obra de Miguel Arruda de São Miguel ao Parlamento
- uma masterclass com um “techno bro” das criptomoedas sobre como “quer ficar rico, pergunte-me como”
Na verdade, nada disto precisa de televisão. A internet já nos dá tudo gratuitamente em qualquer pequeno ou grande ecrã da nossa vida.
Se nos aparecesse uma verruga no nariz cada vez que gastamos tempo com tudo o que é simplesmente imbecil ou nos faz mal enquanto sociedade, será que mudava alguma coisa? Estamos demasiado fascinados com o poder do anel de Giges para pensar nisso.
*Opinião de Rute Sousa Vasco
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