
Li este livro com grande interesse, porque pouco se compara as direitas do “antigamente” ( 1945) com as direitas do século XXI, e usam-se com frequência classificações imprecisas. Fala-se muito em fascismo, por exemplo, quando muitas características do fascismo - partido único, militarização das massas, uso intensivo de símbolos - desapareceram dos partidos de extrema-direita. Nem os países com governos que consideramos de direita radical têm essas características.
Gostaria que me explicasse porque é que o fascismo hoje fui substituído por aquilo a que chamamos de autocracia, e qual é a diferença entre a direita, a extrema-direita, e a direita radical. Foi o mundo que mudou e obrigou a direita a mudar, ou foram as mudanças na direita que mudaram o mundo?
Bem, eu diria que a ideologia neo-fascista persistiu depois da derrota do nazi-fascismo, após a Segunda Guerra Mundial, mas persistiu até ao fim do século XX sob uma forma, a meu ver, grupuscular, e de muito pequena influência política, muitas vezes até paredes meias com a criminalidade comum, ou com o terrorismo, ou até com o tráfico de armas, etc.
"Houve sempre, sobretudo em França, em Itália e na Alemanha, um grande número de grupos de extrema-direita neo-fascista, mas tinham pouca expressão, enfim, tinham uma expressão criminal, mas não propriamente política"
Porquê? Porque havia a memória da Segunda Guerra, do Holocausto e do terror do nazismo, portanto, não era fácil isso fazer isso passar e ficar.
No entanto havia, houve sempre, variados grupos, sobretudo em França, em Itália e na Alemanha, um grande número de grupos de extrema-direita neo-fascista, mas tinham pouca expressão, enfim, tinham uma expressão criminal, mas não propriamente política.
Agora, eu considero que há uma mudança, a partir do fim do século XX, e no primeiro quartel do século XXI: uma parte, uma pequena parte, desses grupos transformam-se, e se reconfiguram como partidos pretensamente sistémicos, pretensamente dispostos a jogar o jogo parlamentar, e pretensamente declarando a sua renúncia à violência, que, aliás, praticavam.
O regime da Hungria está dentro desse modelo?
Sim, a Hungria é, digamos assim, até um precursor.
Agora, esses grupos, por estranho que pareça, a meu ver, essa adaptação começa na Europado Norte, nos países nórdicos, Suécia, Finlândia, Dinamarca. É aí que, na Suécia em particular, havia uma tradição forte de grupos neonazis, e uma parte deles se transforma. Mas as coisas tomaram uma rapidez imprevista com o que se passa em Itália, quando a extrema-direita não só se aproxima do poder, como tem força eleitoral para o conquistar.
Neste momento a extrema-direita chefia o poder em Itália, na Holanda, na Áustria, e prepara-se para, provavelmente, eventualmente, ganhar eleições em França e ficar numa posição muito forte na Alemanha, inclusivamente condicionando uma hipotética aliança com a direita tradicional para formar governo. Diz-se que a direita tradicional vai recusar, mas isso é o que vamos ver, porque por todo o lado a barreira, o “cordão sanitário” pode desaparecer. Desapareceu em Itália, tende a desaparecer em França.
Repare, a direita tradicional tende, por natureza, a aproximar-se dessa nova extrema-direita. Essa é uma tendência.
Portanto, a direita vai mais para a direita.
Há uma radicalização à direita, da direita tradicional. E porquê? Porque, repare, a transformação do mundo capitalista, daquele mundo neo-keynesiano do pós-guerra, do Estado regulador, do equilíbrio entre o capital e o trabalho regulado pelo Estado, etc., esse mundo desapareceu com a viragem neoliberal do capitalismo, que acaba com os keynesianos.
"O "cordão sanitário” pode desaparecer. Desapareceu em Itália, tende a desaparecer em França"
Refere-se ao aparecimento das teorias de Milton Friedman?
Sim, a Escola de Chicago. E isso coincidiu, historicamente, com outro fenómeno muito importante, que foi a vitória na Guerra Fria, do lado do capitalismo ocidental, sobre o que era o mundo soviético.
Não é que nas esquerdas europeias já não se considerasse muito o mundo soviético como um mundo paradigmático do socialismo; acho que havia até um sentimento de distância, com a invasão da Checoslováquia... enfim, com os acontecimentos todos que são conhecidos.
Mas o que é facto é que essa implosão também arrastou consigo o bebé com a água do banho, ou seja, as ideias do marxismo, as ideias progressivas do papel regulador do Estado. Houve um desequilíbrio de forças que se instalou em desfavor daquelas que são, de uma forma geral, ideologias de esquerda.
E isso, deixe-me dizer, facilitou a ofensiva ideológica de uma direita que descendia e chegava ao fim da história: o capitalismo era o fim da história, “and there is no alternative”.
Ou seja, o capitalismo neoliberal, o capitalismo da especulação financeira, o capitalismo de regressão económico-social, este capitalismo brutal a que estamos a assistir era o destino inelutável da humanidade. Numa altura em que a relação de forças se desequilibrou em desfavor das forças de esquerda, estas passaram a uma certa defensiva da qual têm tido dificuldade em sair, diga-se de passagem.
Bom, historicamente, houve o plano Marshall, que foi um plano especificamente feito para dar aos países ocidentais da Europa meios para não se “comunizarem”, porque os partidos comunistas, logo depois da guerra - o Thorez, em França, e o Togliatti, em Itália - tornaram-se muito salientes. Até em Inglaterra, os trabalhistas ganharam imediatamente após a vitória de Churchill na guerra.
A Europa teve oportunidade, e foi uma possibilidade única, de ser financiada. O capitalismo privado europeu teve a ocasião de ser financiado pelos Estados Unidos, só para parar o capitalismo de Estado, “comunista”.
Porque eu acho que a diferença entre o comunismo e o chamado capitalismo, é que no comunismo, o capitalismo é de Estado.
Sim, mas isso não é bem o comunismo, isso é o capitalismo de Estado.
"Toda a gente precisa de saúde, toda a gente precisa de ensino, quer dizer, a procura é gigantesca e constante e, portanto, privatizar esse negócio é muito atraente"
Eu sabia não ia aceitar exatamente isto. O comunismo, tal como decorrente da visão marxista do mundo, não é um capitalismo de Estado, é uma economia e uma sociedade construídas a partir de baixo pelos próprios intervenientes. Mas isso nunca se verificou, não é?
Isso não se verificou… O único partido comunista que governa e é, na realidade, um capitalismo de Estado, é a República Popular da China. Esse país tem o único partido comunista que gere o capital e governa o Estado.
Agora, o que eu digo é o seguinte, é que o pós-guerra meteu medo a muita gente, porque o comunismo parecia querer tomar conta do mundo, e como prevenção relativamente a isso, não foi só o Plano Marshall, também houve cedências muito importantes no que toca ao Estado Social, no que toca ao bem-estar, ao papel regulador do Estado, ao papel regulador da circulação de capitais, - e porquê? Porque os povos europeus estavam fartos de guerra, responsabilizavam o fascismo pela guerra, mas também responsabilizavam o capitalismo tal como ele existia e, portanto, essa atração. Ainda por cima um exército vermelho vitorioso exercia uma atração muito forte que provocou, relativamente ao capital, o chamado “medo do comunismo”, que, paradoxalmente, fez regressar à cena política, nessa altura, os partidos socialistas que tinham saído muito mal da Segunda Guerra. Refiro-me aos chamados socialistas mesmo.
Os social-democratas, juntamente com parte dos democratas-cristãos, realizaram, um projeto neo-keynesiano de economia que, institucionalmente, se traduziu na democracia parlamentar e nessas formas institucionais que ficaram da Segunda Guerra Mundial.
A partir dos anos 70, 80 do século passado, esse modelo entrou em crise, ou seja, mudou porque a economia começou a derrapar, ou seja, as dificuldades económicas, as taxas de acumulação, quase tudo isso começou a ficar...
"Privatizar a saúde não se justifica, porque fazer da saúde pública uma fonte de lucro não é bom, é a minha opinião"
Acha que o modelo sozinho não se soube sustentar?
Não se sustentou e, portanto, o capitalismo foi à procura de outras fontes de lucro. E essas fontes de lucro foram a especulação financeira, a privatização dos setores de interesse coletivo, como a saúde, que é um negócio fantástico, não é? Toda a gente precisa de saúde, toda a gente precisa de ensino, quer dizer, a procura é gigantesca e constante e, portanto, privatizar esse negócio é muito atraente.
Bem, privatizar opções para a saúde ainda se pode justificar pela pressão das pessoas doentes; agora, privatizar as autoestradas ou os correios não era necessário,
Sim, mas privatizar a saúde, no meu entendimento, também não se justifica, porque fazer da saúde pública uma fonte de lucro não é bom, é a minha opinião.
O que eu estava a dizer é que se privatizaram coisas que não tinham que ser privatizadas, e os correios são um bom exemplo.
Portanto, com essa forma de acumulação a relação laboral que foi fortemente prejudicada pelas novas regras respeitando ao salário, às pensões, à jornada de trabalho, à produtividade, enfim, tudo isso, que são a busca de novas formas de acumulação e de lucro. Claro que depararam com resistências muito fortes e é aqui que entra o meu argumento: para aplicar esta nova estratégia de desenvolvimento do capitalismo, foi preciso reconfigurar o Estado fazer uma política de reforço da autoridade para aplicar medidas que são muito impopulares. Foi nesse sentido, que a extrema-direita se radicalizou e aproximou-se daqueles partidos de direita que tinham programas exatamente de radicalização autoritária do Estado e até da privatização. Não nos esqueçamos que o primeiro programa do Chega, (que eles, entretanto, meteram na gaveta) foi a privatização total da saúde e da educação. Como o Milei quer fazer na Argentina.

Não sei se já fez ou se ainda está a fazer.
Não fez totalmente, mas continua com esse projeto.
Há um fator que eu senti que não foi muito destacado no seu livro, e que foi a mudança do inimigo da direita, que passaram a ser os imigrantes, as migrações. Porque o grande argumento da direita moderna passou dos inimigos tradicionais, os comunistas, os traidores, para os imigrantes.
Mas eu falo disso no meu livro. Há uma transmutação do antissemitismo.
Os proletários passam a ser os imigrantes, não é?
Sim, e do antissemitismo passa-se para a islamofobia.
Exatamente.
Mas a função, o aspecto funcional de quem tem a culpa é a mesma coisa. Os judeus agora são o imigrante, é o outro mais fraco e mais indefeso que paga as favas.
Porque aqui, repare, tudo isto assenta numa questão que é esta, é que a economia neoliberal gerida pelos partidos do centro causou, deixou um rastro profundo de animosidade social.
"A imigração desempenha, hoje, no argumentário da extrema-direita o papel que o antissemitismo desempenhou nos anos 30, sobretudo na Alemanha e países afins"
Porque as pessoas não se identificam. Fecharam indústrias tradicionais, fecharam uma rede muito grande de empresas que não conseguiram competir, há deslocalizações para outros lugares, há desemprego e há, sobretudo, precarização do trabalho. O trabalho que era uma coisa que se adquiria com uma expectativa de longa duração, passa ser hoje, em Portugal, 50% precário.
E portanto essa situação criou insegurança, medo, animosidade, e criou uma situação política muito complicada para os partidos tradicionais do centro, ou seja, social-democratas, de direita tradicional, que em pouco tempo quase desapareceram da Europa, ou então perderam expressão.
Se pensar há 30 anos, os partidos social-democratas governavam a Europa toda.
O Partido Socialista francês morreu de uma eleição para outra, em 2017.
O Partido Socialista italiano desapareceu, o Partido Socialista francês praticamente não existe, o Partido Social-Democrata da Alemanha surge em terceiro lugar nas sondagens, atrás dos neo-fascistas, e por aí fora.
Ou seja, aquele centrão que geria de alguma forma a democracia liberal, numa gestão neo-capitalista, deixou um rastro que fez com que esse descontentamento pudesse ser cavalgado com sucesso por parte de uma nova extrema-direita que se apresenta como respeitável, eleitoral.
Sim, mas voltando à questão dos imigrantes, eles são de facto o grande argumento dessa dessa direita.
Já lá chego… Portanto, essa direita pode desenvolver-se para a captação de apoios, beneficiando não só do desequilíbrio da relação de forças que eu falei há pouco, mas utilizando uma retórica manipulatória de exploração dos instintos primitivos, da falta de informação, explorando esse sentimento até de uma parte da sociedade menos informada e mais suscetível de ser mal informada. Portanto, eles cavalgam com sucesso, como aconteceu nos anos 20-30 do século passado. O fenómeno é absolutamente idêntico.
"Os palestinianos são as vítimas das vítimas"
De facto, a Alemanha foi um caso paradigmático dos anos 30, não é?
Claro. Repare que a imigração desempenha hoje, no argumentário da extrema-direita, o papel que o antissemitismo desempenhou nos anos 30, sobretudo na Alemanha e países afins.
Ou seja, arranjaram no imigrante um bode expiatório para a raiva acumulada , inventando um imigrante que não existe; um criminoso, que quer esmagar a soberania e a identidade nacional, a grande invasão... Tudo isso é o argumento que a extrema-direita neo-fascista usa desde o pós-guerra e que agora, então, se tornou uma bandeira. Eles estão a progredir nas eleições, em grande parte graças ao problema da imigração.
É um argumento demagógico, falso, manipulado, mas que corresponde a uma ideia que o sistema neo-liberal global originou - uma diferença cada vez maior entre o Norte e o Sul global, ainda por cima associada às diferenças climatéricas. Há uma crise de subsistência, de alimentação, etc., no Sul global, o que faz com que as pessoas fujam para as zonas ricas para arranjar condições de vida e de subsistência.
Deixe-me fazer um desvio no seu raciocínio, para fazer uma pergunta. Há muita gente que diz que os judeus estão a fazer agora em Gaza o que os nazis lhes fizeram antes da II Guerra Mundial.
Eu acho que essa avaliação é perfeitamente legítima.
É uma avaliação forte, que deixa os judeus absolutamente furiosos.
Os palestinianos são as vítimas das vítimas.
Tem todos os indicadores da definição de genocídio.
É um genocídio. Ou seja, os palestinianos são vítimas daqueles que foram vítimas do nazismo. Se um povo é cercado, não o deixam sair para lado nenhum...
Não podem nem pescar...
Não deixam entrar a assistência humanitária. São bombardeados selvaticamente. Naturalmente, isto é um genocídio. Ou seja, não podem viver. A ideia é mesmo exterminá-los e expulsá-los. Agora já estão a falar em expulsá-los para a Jordânia ou para o Egito.
"A China, do ponto de vista de agressão militar, é o menos perigoso. Porque eles apostam na economia"
Mas a Jordânia já tem três milhões.
Exato. E o Egito também não os quer. Portanto, estamos para saber o que é que vai acontecer depois deste cessar-fogo.
A Arábia Saudita é que tinha muito espaço para isso...
Sim, mas esses são os últimos interessados nisso. Portanto, no caso, a propósito desta celebração dos 80 anos da libertação de Auschwitz, o que me deixou um pouco transtornado na cerimónia oficial, foi que se tentou transformar Auschwitz num puro discurso do sionismo atual, numa pura legitimação atual do Estado de Israel. Considerando que todas as críticas que se fazem aos crimes que o Estado de Israel está a cometer são uma manifestação de antissemitismo. Isso não é verdade.
Mas o que é incrível é que os judeus americanos, que são tendencialmente liberais, estão horrorizados com o que se passa em Israel, mas continuam a financiar o exército israelita.
A financiar, e de que maneira! Porque se não financiassem era impossível. E acabam de desbloquear o envio das bombas de alto calibre que Biden tinha proibido…
Sim, as bombas de duas mil toneladas.
Preocupa-me outra coisa, que não é só o massacre, o genocídio, o abuso, a tortura nas prisões, o abuso de milhares de presos, espancados, violados. Preocupa-me o que se passa em Gaza e na Cisjordânia, porque agora eles estão a atacar a Cisjordânia. Eu acho que eles querem a Cisjordânia. O grande Israel.
Aquele Israel bíblico.
Querem o grande Israel bíblico, sim. E não estou seguro que Trump não esteja disposto a dar-lhes luz verde. Desde que isso seja economicamente vantajoso... Porque Trump pensa na política como um negócio. Que seja vantajoso, claro.
Sim, que seja um bom negócio. Portanto, agora, o que eu vejo com preocupação é aquilo a que a Hannah Arendt chamava a banalização do mal.
"Tenho dito várias vezes que estamos num ambiente semelhante a 1939"
Ou seja, as pessoas fizeram muito barulho com a guerra da Ucrânia, e bem, porque é uma invasão, naturalmente, contra um país soberano, etc. Mas a relativa indiferença com que se encarou na União Europeia e em vários governos europeus, se encarou o genocídio em Gaza é uma coisa altamente preocupante.
Os países que agora formam a União Europeia sentem-se culpados, porque isto tudo vem do Acordo Sykes-Picot, como se sabe.
Como se sente culpada, dá dinheiro, como se isso resolvesse o problema, não é?
Pois, mas a União Europeia teria poderes, não diria militares, mas de sanção económica, por exemplo, muito importantes. Do ponto de vista económico teria poderes importantes, mas como Bruxelas nunca sabe o que quer...
Eu não quero ficar muito na questão de Israel. Neste momento a questão que se levanta a toda a gente quando acorda de manhã cedo, é Trump, não é?
Quer dizer, a pessoa abre o noticiário e vê as coisas mais inacreditáveis.
Há uma bomba atómica lançada todos os dias!
Preocupa-me sobretudo a escolha que está a fazer dos secretários do Estado, que são completamente incompetentes para os lugares que vão ocupar.
O Pete Hegseth, por exemplo, que vai dirigir o Pentágono. Há dois milhões e oitocentos mil militares nas forças armadas. Quer dizer, é uma empresa gigantesca e Pete Hegseth não tem nenhuma experiência. Não estou a falar nas ideias políticas, não tem experiência de gerir uma organização daquele tamanho. Sabe-se que geriu dois pequenos grupos de veteranos de guerra, fez várias falcatruas com dinheiro numa tem uma acusação de violação. Há uma gripe de aves em progressão rápida nos Estados Unidos, e Trump escolheu como Ministro da Saúde (Surgeon General, nos EUA) alguém que não acredita em vacinas nem em certo tipo de tratamentos convencionais. O que Trump fez foi escolher um governo de multimilionários, com os oligarcas que antes operavam às escondidas agora na linha da frente.
E Musk, ,que é o mais vocal deles todos, vai racionalizar a administração, (isto é, o aparelho do Estado) despedindo milhares e milhares de funcionários públicos, congelando tudo o que é ajuda às minorias internamente e até na ajuda externa. O departamento dele tem um estatuto que fica à margem da própria administração - portanto, sem os deveres, mas com as capacidades...
Li uma coisa muito interessante sobre o Musk, escrito pela jornalista veterana Nellie Bowles: o poder que Musk tem hoje em dia, ao longo da história só foi possível, através de exércitos gigantescos, invasões, massacres e controles policiais absolutos. E Musk, sem disparar dar um tiro...
Bom, mas vamos ver se consegue fazer. Repare que na ordem institucional dos Estados Unidos, eu acho que aquela questão do equilíbrio entre os vários poderes está seriamente comprometida.
A minha esperança é que o namoro entre o Musk e o Trump não dure muito tempo. São dois egos brutais..
Mas não é apenas um equilíbrio entre os dois, é também um equilíbrio entre as instituições.
Porque neste momento o Trump, além de ter ganho com uma maioria substancial, tem a maioria no Congresso, ou seja, nas duas câmaras.
"Eu sou um autor marxista"
“Trifecta”, é como chamam a essa situação.
E ainda tem o Supremo Tribunal de Justiça na mão. E tem um poder de nomeação de juízes que nas democracias normalmente não existe. Portanto, o equilíbrio de poderes está seriamente afetado nos Estados Unidos.
O destino daquela democracia, chamemos-lhe assim, é muitíssimo problemático. E depois trata-se de um imperialismo que surge agora, à margem de qualquer regulação internacional. Eu tenho força, portanto eu espero que toda a gente aceite que eu expulse todos os imigrantes ilegais, e pouco barulho. Se um país recusa receber os seus, aplico-lhe uma taxa de 50% - é uma brutalidade, a lei do mais forte.
E ainda sai da Organização Mundial de Saúde, qualquer dia sai das Nações Unidas, como o Hitler e o Mussolini fizeram com a Sociedade das Nações na década de 1930… E ainda mais esta coisa extraordinária que é “Eu quero o Panamá e a Gronelândia” e a simples negação destas ambições é uma resposta hostil, que merece castigo… Voltámos à política das canhoneiras do século XIX!
Acho - o futuro o dirá - que podemos dividir a História e considerar que houve um período que começa com a destruição das Torres Gémeas, porque desviou a atenção dos Estados da América do Sul, onde impunham ditaduras, faziam o que queriam - para outras regiões, como o Afeganistão, o Iraque, o SAEL. E está a começar um novo período, em que obviamente a China vai ser a potência dominante. Rússia provavelmente será um estado vassalo da China.
Eu acho que estamos num período histórico em que vai haver uma disputa entre velhos imperialismos e imperialismos ascendentes, que são a China, a Índia e eventualmente uma África do Sul. Disputa-se território e zonas de influência. A China, do ponto de vista de agressão militar, é o menos perigoso. Porque eles apostam na economia. São uma economia moderna em expansão. Acabam de descobrir uma metodologia para a Inteligência Artificial que rebenta totalmente com a versão que está a ser desenvolvida no Ocidente. Isto prejudica nas bolsas as empresas tradicionais.
Quer dizer estão à beira de ser a primeira potência tecnológica e militar.
Enquanto que, nos Estados Unidos, o fenómeno das trad wifes faz com que se pense em proibir o serviço militar às mulheres, para ocuparem os seus papéis de fadas do lar.
Portanto, a existência de um imperialismo incumbente e de imperialismo concorrente é a situação histórica que precede uma guerra. Desde a II Guerra Mundial nunca tivemos uma situação tão complicada como esta. Tenho dito várias vezes que estamos num ambiente semelhante a 1939.
"As pessoas que estão civicamente despertas deviam estar alarmadas. Agora é um momento alarmante. Só há uma maneira de evitar a guerra, é a opinião pública impedir que ela aconteça"
Agora queria perguntar-lhe: vai escrever um livro sobre “as antigas e as novas esquerdas”?
É uma boa sugestão, não tinha pensado nisso
A sua análise das direitas utiliza toda a nomenclatura marxista.
Eu sou um autor marxista.
Isso é evidente. E até tem uns neologismos marxistas que eu não conhecia. Por isso seria interessante analisar as esquerdas com a mesma linguagem. O que é que não correu bem? As esquerdas estão em recuo e têm muitas culpas no cartório. Seria muito elucidativo que o Professor, que é de esquerda, escrevesse um livro sobre o que aconteceu às esquerdas no mesmo período. Seria muito útil.
E é uma análise a fazer, porque as esquerdas também têm uma história complicada e neste momento estão na defensiva. Já foram estalinistas, maoistas, decocráticas, socialistas, anarquistas…
Para terminar, o que acha que vai acontecer?
Eu tenho dito isto várias vezes; sou como o Antonio Gramski, que dizia que era preciso ter pessimismo na razão e optimismo na vontade, ou seja toda a análise da situação atual é uma análise preocupante. As pessoas que estão civicamente despertas deviam estar alarmadas. Agora é um momento alarmante. Só há uma maneira de evitar a guerra, é a opinião pública impedir que ela aconteça.
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