Estas são duas das áreas em que PS e PSD registaram consensos na primeira fase do processo – os dois partidos são fundamentais para que se alcancem os dois terços necessários a qualquer alteração da Constituição –, bem como no reforço dos direitos ambientais e dos animais na lei fundamental.

A modernização da linguagem constitucional é outra das potenciais mudanças à vista, num processo em que o PS até demonstrou abertura para algumas alterações pontuais no sistema político, área que tinha rejeitado à partida mexer, embora ainda sem compromissos de parte a parte com qualquer aprovação final.

A primeira leitura das quase 400 alterações propostas pelos oito partidos com assento parlamentar deverá terminar entre esta e a próxima semana, ficando para depois do verão a votação artigo a artigo.

Entre as matérias já definitivamente rejeitadas, contam-se várias do Chega – partido que desencadeou a revisão – como a inclusão da prisão perpétua ou castração química, a redução de deputados (PSD e Chega), eliminação de um referendo para instituir a regionalização (BE e PCP), bem como todas as propostas da IL de simplificação ou reorganização económica, ficando também inalterado o preâmbulo, que a maioria dos partidos considerou ter apenas um valor histórico.

A primeira fase dos trabalhos da comissão eventual de revisão constitucional terminará entre esta e a próxima semana, mas o processo ainda está longe do fim e tem desfecho incerto, dependente da aprovação conjunta de PS e PSD.

O 12.º processo de revisão da Constituição da República Portuguesa (só sete foram concluídos com sucesso) foi desencadeado com a apresentação de um projeto do Chega, em outubro do ano passado, seguido por todas as bancadas e deputados únicos, num total de oito projetos e 393 propostas de alteração, revogação e aditamento de artigos à lei fundamental.

Segue-se, em pontos essenciais, um resumo das principais alterações que mereceram consenso ou abertura por parte de PS e PSD:

Emergência sanitária

PS e PSD foram os dois únicos partidos a concordar incluir na Constituição a privação da liberdade para doentes graves e contagiosos, ainda que sem estado de emergência, com os restantes partidos a considerarem que se deve manter o atual quadro jurídico.

Ambos os partidos optam por acrescentar no artigo que regula o direito à liberdade e segurança (27.º) uma nova exceção às atuais normas que já permitem a privação da liberdade, embora com diferentes formulações, manifestando-se disponíveis para chegar a um texto comum.

Os socialistas determinam que a privação da liberdade possa acontecer para "separação de pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves, determinada pela autoridade de saúde, por decisão fundamentada, pelo tempo estritamente necessário, em caso de emergência de saúde pública, com garantia de recurso urgente à autoridade judicial".

O PSD usa uma formulação diferente: “Confinamento ou internamento por razões de saúde pública de pessoa com grave doença infetocontagiosa, pelo tempo estritamente necessário, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente”.

Na discussão, o PSD salientou que a sua proposta exige que exista uma doença já verificada – em vez de apenas um “fundado receio” – e, sobretudo, “a chancela de um juiz”, não bastando a decisão de uma autoridade administrativa.

O PS admitiu que a intervenção judicial “faria todo o sentido”, mas advertiu que dificilmente se conseguiria concretizar de forma célere, dizendo rever-se no texto do PSD em que se permite uma autorização ‘a posteriori’.

Metadados 

PS e PSD concordaram que os serviços de informações devem poder aceder aos dados de contexto das comunicações, salientando que tal nada tem a ver com problemas recentes relacionados com a inconstitucionalidade da lei que regula o uso de metadados em investigações criminais.

Os coordenadores dos dois partidos, Pedro Delgado Alves (PS) e André Coelho Lima (PSD), frisaram que a atual revisão constitucional apenas irá decidir se os serviços de informações devem ou não ter acesso a estes dados de contexto (que podem incluir informações sobre tráfego ou de localização do equipamento, mas não ai conteúdo das comunicações).

Neste artigo, relativo à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, PS e PSD têm formulações diferentes, mas manifestaram-se disponíveis para convergências, e, dos restantes partidos, apenas o Chega manifestou disponibilidade para apoiar a mudança.

O PSD opta uma formulação mais genérica, determinando que “a lei pode autorizar o acesso do sistema de informações da República aos dados de contexto resultantes de telecomunicações, sujeito a decisão e controlo judiciais”.

Já o PS, mantendo a proibição de “toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”, introduz uma exceção a este princípio geral: “O acesso, mediante autorização judicial, pelos serviços de informações a dados de base, de tráfego e de localização de equipamento, bem como a sua conservação, para efeitos de produção de informações necessárias à salvaguarda da defesa nacional, da segurança interna de prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada, nos termos a definir pela lei”.

Bem-estar animal 

Os partidos concordaram em consagrar na Constituição a promoção do bem-estar animal para tentar ultrapassar várias declarações de inconstitucionalidade da lei dos maus tratos a animais.

Em concreto, pretende-se alterar o artigo 66.º sobre ambiente e qualidade de vida, com o PS a propor como uma incumbência do Estado a promoção do bem-estar animal, e o BE criar um artigo autónomo sobre o tema, o que mereceu a concordância generalizada dos restantes partidos, PSD incluído.

Em janeiro, o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional pediu a declaração de inconstitucionalidade da norma que criminaliza com multa ou prisão quem, sem motivo legítimo, mate ou maltrate animais de companhia, pedido que surgiu após três decisões do Tribunal Constitucional nesse sentido.

Direitos fundamentais e linguagem 

A maioria dos partidos quer alargar na Constituição a lista das tarefas fundamentais do Estado para incluir princípios como a erradicação da pobreza, a justiça intergeracional ou a defesa da natureza e do ambiente.

Este foi o artigo que mais alterações suscitou na atual revisão constitucional, com o PS a defender a introdução de novos conceitos como a promoção de laços das comunidades no estrangeiro ou a erradicação da pobreza, a par da constitucionalização do princípio da coesão territorial.

O PSD quer colocar entre estas tarefas primordiais as necessidades dos territórios de baixa densidade e a justiça entre gerações.

PS e PSD mostraram-se também abertos à possibilidade de eliminar da Constituição o critério “político” do conceito de refugiado, uma proposta da Iniciativa Liberal para que o texto fundamental passasse apenas definir que “a lei define o estatuto do refugiado”.

Na primeira fase da discussão, houve consenso para substituir na Constituição a expressão “direitos do homem” por “direitos humanos”, ou “cidadãos portadores de deficiência” para “pessoas com deficiência”, bem como abertura para trocar a expressão ‘raça’ por ‘etnia’ ou ‘pertença étnico-racial’.

Ainda no capítulo dos direitos, liberdades e garantias, os partidos concordaram em consagrar o direito ao esquecimento digital na Constituição, comprometendo-se a encontrar um texto comum neste ponto.

Direitos e deveres sociais 

PS e PSD concordaram em consagrar na Constituição um novo artigo sobre o direito à alimentação, embora os sociais-democratas tenham alertado para uma eventual dificuldade em concretizar as propostas apresentadas por socialistas e Livre.

No domínio da habitação, registou-se apoio à proposta do BE para incluir na Constituição que todos têm direito a uma habitação “com acessibilidade física”, tal como à do PS para consagrar “medidas de proteção especial” neste capítulo às vítimas de violência doméstica.

No artigo relativo à família, houve consenso generalizado quanto à proposta do PS para incluir na Constituição que incumbe ao Estado “estabelecer políticas integradas e adotar medidas de prevenção e combate à violência doméstica e de género”, bem como uma referência à conciliação da atividade profissional com a vida familiar, já prevista, “com a dimensão cívica”.

O alargamento dos direitos dos consumidores na Constituição proposto pelo PS mereceu também um consenso generalizado dos partidos, propondo os socialistas incluir na lei fundamental que todos os consumidores têm direito a “serviços de interesse económico geral em condições de universalidade, igualdade e equidade”, incluindo nestes “os de fornecimento de água, de saneamento, de energia, de transportes coletivos urbanos, de telecomunicações, de correios e outros previstos na lei”.

Saúde e educação 

Na área da saúde, os partidos concordaram em incluir os cuidados paliativos e reprodutivos nas incumbências do Estado no que toca aos cuidados de acesso universal.

Já na educação, houve acordo para alargar na Constituição o conceito de “ensino universal, obrigatório e gratuito” ao secundário, ao pré-escolar e até às creches, até agora apenas previsto na lei fundamental para o básico.

Sistema político 

Apesar da posição de princípio inicial do PS contra quaisquer alterações em matérias institucionais, ao longo das reuniões os socialistas manifestaram abertura para algumas mudanças pontuais neste capítulo, entre as quais a proposta do PSD para ‘encurtar’ a quarta e última sessão legislativa de cada legislatura para que as eleições nacionais passem a realizar-se antes do verão, já que os socialistas apresentaram no passado uma proposta semelhante.

O PS mostrou-se igualmente disponível para acolher propostas – do PSD e do Chega – que clarificam que os Governos em gestão ficam impedidos de fazer nomeações definitivas, bem como propostas de PSD e IL para eliminar da Constituição a necessidade de referenda ministerial após a promulgação de leis pelo Presidente da República, considerada generalizadamente como “um instituto obsoleto”.

O PS admitiu também “uma reflexão” sobre propostas do PSD e do Chega que pretendem introduzir na Constituição a possibilidade de limitações temporais aos mandatos de todos os titulares de cargos políticos, incluindo deputados, (atualmente só previstos para cargos executivos), e ainda abertura para aperfeiçoar na Constituição o acompanhamento de matérias europeias pela Assembleia da República.

Também a proposta do PSD para antecipar a apreciação pelo parlamento da Conta Geral do Estado, fixando o prazo até 31 de julho do ano seguinte ao Orçamento a que se refere (em vez da atual data de 31 de dezembro) foi recebida pelos socialistas como “um contributo valioso” e com promessas de atenção.