
Entre outubro de 2002 e março de 2007, a Linha de Cascais era servida por um total de 279 comboios por dia. Praticamente todo o dia, havia trajetos semi-diretos entre Cais do Sodré e Cascais e viagens a parar em todas as estações entre Cais do Sodré e Oeiras; nas horas de ponta da manhã e da tarde, havia ainda um reforço, com ligações entre Cais do Sodré e São Pedro, na zona do Estoril. Entre as 7 e as 8 horas da manhã, os passageiros podiam contar com 13 comboios a partirem do Cais do Sodré. Com uma frequência deste gabarito, não era necessário correr tanto para apanhar o comboio: o tempo máximo de espera era de oito minutos, um verdadeiro serviço suburbano.
Avançamos quase 20 anos e a realidade encolhe: a partir do próximo domingo, 23 de março, e até ao final de junho, haverá um total 198 comboios por dia na Linha de Cascais por conta dos impactos das obras de modernização da infraestrutura e dos impactos da construção da linha circular do Metro de Lisboa. À hora de ponta, haverá nove comboios a saírem do Cais do Sodré entre as 7 e as 8 da manhã, menos quatro do que no início do século; o tempo máximo de espera passa para 10 minutos – mais dois minutos podem não parecer muito tempo mas podem implicar chegar atrasado à escola ou ao trabalho ou obrigar a sair de casa um pouco mais cedo, com naturais impactos na vida de um passageiro.
As diferenças face ao início do século XXI não ficam por aqui e mostram como o serviço da Linha de Cascais se tem degradado nas últimas décadas. À cabeça, CP e Infraestruturas de Portugal (IP) são alvos fáceis mas o problema é de (falta de) decisão política.
Comboios novos sucessivamente adiados
Voltamos a 2002. Todas as automotoras da Linha de Cascais tinham sido modernizadas quatro anos antes nas oficinas da EMEF. A renovação abrangeu as duas séries de material motor: com três carruagens por automotora, a série 3100 passou a designar-se 3150; com quatro carruagens por automotora, a série 3200 evoluiu para 3250. A ideia era prolongar, por pelo menos 15 anos, a vida de material que tinha sido originalmente fabricado em 1950, 1960 e 1979 nas antigas oficinas da Sorefame. Na mesma altura tinha sido cancelada a compra de novo material para esta linha.
Não seria a primeira vez: uma década depois, em março de 2009, lançou-se a encomenda de 36 novos comboios suburbanos para a Linha de Cascais, mais cinco do que atualmente estão ao serviço para este trajeto. Estava prevista ainda a modernização da linha. Já com o empréstimo da Troika à espera, o concurso foi abaixo, em setembro de 2010, por alegada falta de cumprimento dos requisitos.
Seria necessário esperar mais uma década para um novo concurso para a Linha de Cascais: 34 automotoras elétricas, desta vez incluídas num pacote de 117 novas unidades. O caderno de encargos foi publicado em dezembro de 2022, o vencedor foi escolhido em novembro de 2023… mas desde essa altura está impugnado nos tribunais. Não havendo novo concurso nem uma decisão judicial, o processo arrasta-se. Tendo em conta que são necessários quatro anos entre a assinatura formal do contrato e a chegada dos primeiros comboios, antes de 2029 a Linha de Cascais não poderá receber novo material circulante.
Uma peculiaridade elétrica centenária
A Linha de Cascais é a única via ferroviária eletrificada que ainda funciona com 1500 volts em corrente contínua, ao contrário dos 25 000 volts em corrente alternada que existem nas restantes linhas eletrificadas. Isto quer dizer que em apenas 26 quilómetros de linha há seis subestações: além do Cais do Sodré, a energia para os comboios é fornecida por instalações em Belém, Cruz Quebrada, Paço de Arcos, Carcavelos e São Pedro. Este é o preço do pioneirismo: foi a primeira linha eletrificada do país, em 1926, numa altura em que o serviço era gerido pela Sociedade Estoril, o que aconteceu até ao final de 1976, quando a gestão passou para a CP. A situação impede que a restante frota da transportadora pública possa reforçar o serviço.
O cenário vai mudar a partir do final deste ano, com a conclusão da modernização da Linha de Cascais, que passará a ter informação ao público em todas as estações, novos sistemas de sinalização e diagonais em plena via, para os comboios poderem mudar de linha em caso de algum problema. A linha também passará a ter a mesma tensão na catenária da restante rede ferroviária nacional. A energia será fornecida pela futura subestação de Sete Rios, que terá um cabo a ligar à Linha de Cascais, deixando de existir as atuais seis subestações. A migração da corrente, no entanto, apenas irá ocorrer no final da década, quando a CP tiver 25 das 34 novas automotoras elétricas para esta linha — as primeiras 25 unidades serão bi-tensão e as restantes só estão preparadas para 25 000 volts.
Ficarão ainda a faltar obras: entre o final de 2025 e o final de 2027, será altura de acabar com três atravessamentos de nível. Entre o terceiro trimestre de 2026 e o mesmo período de 2028, a intervenção será nas próprias estações e apeadeiros da linha. Assim ficará possível que as novas automotoras possam circular em toda a linha, evitando incidentes como o ocorrido em dezembro de 2020, quando uma automotora do serviço suburbano da CP do Porto praticamente embateu na plataforma da estação da Parede por ser demasiado larga para o espaço disponível, escreveu na altura o jornal Público.
Mais adiante há um plano para que um comboio elétrico possa partir da estação de Cascais e chegue ao Oriente, passando por Sete Rios, Entrecampos e Roma-Areeiro. A ligação entre a Linha de Cascais e a Linha de Cintura deverá ser construída entre 2028 e 2031, levando ao enterramento da estação de Alcântara-Terra. Até lá, a ligação entre Alcântara-Terra e Alcântara-Mar depende de um troço à superfície que faz parar o trânsito.
Horários com menos comboios há quase 20 anos
A redução nos horários a partir de 23 de março “deverá vigorar até ao final do primeiro semestre do ano”, adianta ao SAPO24 fonte oficial da CP. A transportadora pública pretende que a alteração temporária do horária tenha “o objetivo de permitir a estabilização do horário, a regularidade da oferta e a melhoria da pontualidade”, considerando as obras de modernização da linha e das intervenções da Linha Circular do Metro de Lisboa junto à estação do Cais do Sodré. Nos últimos meses, não há dia em que as limitações de velocidade impostas pelas obras não atrasem os comboios em 10 a 15 minutos. Os passageiros da linha cascalense, contudo, só têm conhecido reduções de horários ao longo dos anos.
Depois dos 279 comboios por dia entre outubro de 2002 e março de 2007, houve uma diminuição para 268 percursos diários até setembro de 2011, mas sem alterações nas famílias de comboios. Já com a Troika em Portugal, a CP acabou com a família de comboios entre Cais do Sodré e São Pedro, que ajudava a reforçar as horas de ponta: sem esta ajuda, as partidas do Cais do Sodré entre as 7 e as 8 da manhã passaram a ser 11, o que passou a ser o padrão nesta linha. Mas o cenário ainda iria piorar em fevereiro de 2015: caiu para 204 o número de comboios diário e as duas famílias de comboios ficaram confinadas à hora de ponta — no resto do período, há comboios a pararem em todas as estações entre Cais do Sodré e Cascais.
Atualmente, a Linha de Cascais vive o menor período de oferta em muitas décadas e a sua utilização está abaixo dos 40%, segundo dados da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes de 2019. Ou seja, capacidade não falta para responder à oferta com mais procura.
Com 26 das 31 automotoras em rotação neste momento, a oferta de lugares por comboio varia entre 952 (carga normal) e 1344 lugares na hora de ponta. A lotação “vai manter-se” apesar da menor frequência, “visto que estas unidades já circulam em dupla [duas automotoras acopladas] e a dimensão das plataformas não permite reforçar composições”, assume ao SAPO24 a mesma fonte da CP. Depois do final do primeiro semestre, voltarão os horários que estão em vigor até 23 de março.
A situação foi ainda pior, quando em 19 de março de 2024 houve um incêndio na subestação do Cais do Sodré, obrigando a reduzir a oferta em 30% e a suspender, temporariamente, a família de comboios Cais do Sodré-Oeiras. Nas horas de ponta, o serviço ficou limitado a sete partidas por hora nos dois sentidos. Um ano depois, “as causas e responsabilidades pelo sinistro encontram-se em fase de averiguação pela seguradora” da empresa responsável pelas obras, adianta ao SAPO24 o metropolitano da capital, que aguarda as conclusões da avaliação. Só depois disso se poderá saber se a IP será ressarcida pelos danos causados.
O SAPO24 tentou ainda obter esclarecimentos por parte da IP sobre as obras de modernização das estações.
Resta saber se a Linha de Cascais vai ter capacidade para renascer e voltar a atrair passageiros, sobretudo numa altura em que o número de carros na A5 anda muito próximo dos níveis pré-pandemia, apesar do passe de transportes a 40 euros para toda a Área Metropolitana de Lisboa.
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