Por: Nuno Simas (texto) e José Sena Goulão (fotos) da agência Lusa
“Salvar vidas”, como foi dizendo, ao longo da missão, o comandante Madaleno Galocha, à frente de uma guarnição de mais de 60 mulheres e homens, ao serviço e paga pela agência europeia de fronteiras, a Frontex.
Em números, desde 9 de outubro o navio patrulha português fez mais 5.800 milhas, intercetou seis embarcações e resgatou 145 migrantes. Nalguns dos casos, como aconteceu com o grupo maior, de 48, o barco estava perdido, sem combustível suficiente e em risco de se incendiar. “Foi um milagre”, disse-lhes depois o comandante, já os homens estavam sãos e salvos, a bordo.
A ponte de comando é um local calmo, silencioso até. Há quem ponha música durante o turno à ponte, conversa-se amenamente. A frase, bem-humorada, do guarda-marinha João Pires – “e pronto, vai começar a guerra” – reflete o frenesim que se seguirá após o alerta de barco com migrantes.
O alerta chega ou através de um dos vigias que, com binóculos, percorre a linha do horizonte até às sete, oito milhas, ou pelo toque do telefone-satélite. Do outro lado da linha estava a oficial de ligação portuguesa na sede do Centro de Coordenação Internacional, em Roma. Naquele dia, em 27 de outubro, um avião havia identificado uma embarcação, com cerca de 30 migrantes a cerca de 17 milhas, a duas horas de navegação. A hora registada é 13:08.
O “Viana do Castelo” navegava entre a Tunísia e a ilha de Lampedusa, Itália. Há uma certa tensão. O comandante e os oficiais traçam a rota para a interceção. A bordo é declarado o “estado negro”, para preparar a receção aos migrantes. Monta-se o toldo, no piso intermédio, para os abrigar, e uma tenda de campismo para os exames médicos. Juntam-se cobertores. Os fuzileiros equipam-se, com coletes, capacetes e levam uma arma bem visível. A lancha semirrígida é preparada.
Aproxima-se o barco. De megafone, o comandante pergunta se precisam de ajuda, de onde são, para onde querem ir. Depois, sai a lancha rápida, com dois fuzileiros (um deles fala francês), e dois mergulhadores, se for necessário salvar alguém que caia ao mar.
A lancha aproxima-se. Os fuzileiros pedem que parem o motor, que vão ser ajudados. Veem-se alguns sorrisos, alguns polegares para cima.
Vem agora momento mais tenso. Todos querem subir a bordo ao mesmo tempo. Se todos estiverem do mesmo lado, há o risco de o barco se virar. A voz dura, gritada de um dos fuzileiros, em francês, vai impondo ordem e alguma calma. Primeiro sai a criança, assustada, puxada pelos fuzileiros, em segundo lugar a mãe. Depois, um a um, os migrantes sobem a escada. Estão molhados, sujos, alguns perderam os sapatos. No fundo do barco, boiam restos de pão, há fugas de óleo, gasolina, dejetos. O mau cheiro é intenso.
Retirados os sacos e mochilas, são revistados. O médico a bordo, Bruno Canilho, avalia o seu estado de saúde: “As embarcações que temos vindo a socorrer têm mais de meio dia de mar, habitualmente as embarcações não são de grande envergadura, portanto as pessoas referem-se principalmente a enjoo de movimento, e, caso estejam em zonas mais desabrigadas ao mar, que tenham as roupas mais molhados, a casos de hipotermia ligeira.”
Segue-se a identificação. Ninguém tem cartões de identidade ou passaportes. Põem o nome e a data de nascimento numa folha branca, a pedido de um dos dois inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) a bordo.
A mulher e a criança ficam na tenda usada pela equipa médica (médico, enfermeira e socorrista). Trocam a roupa molhada por roupa seca. Alimentam-se. A menina brinca, improvisa-se uma boneca feita com meias, um jogo de “quantos-queres”, pinta desenhos que a tripulação traz em fotocópias. Sukur chama a cabo Sara Santos, com quem brincará muitas horas até ao desembarque em Pozzallo, sul da Sicília, Itália.
“Aconteceu porque gosto muito de crianças. Por mim, não é considerado trabalho dedicar-me a elas. Ou ajudá-las. [A menina] chegou a bordo muito assustada, achei que precisava de um carinho extra”, descreveu, afirmando que foi algo que “vem de dentro”. “O carinho não se trabalha”, concluiu.
Nos dias seguintes, as histórias da menina correm a tripulação. Da boneca feita de meias pela tripulação durante a noite para ela brincar. Ou por a menina gostar de dar bolachas aos fuzileiros e marinheiros que montavam guarda ao local se alguém lhe oferecia um pacote. E na hora do desembarque, um dos fuzileiros despediu-se dela com uma festa na cabeça.
É um sábado e as autoridades italianas montam uma operação para receber os 48 migrantes. Sete deles serão detidos pela polícia, com base em informações dos inspetores do SEF, sob a suspeita de serem os facilitadores ou pertencerem às redes de imigração ilegal.
Os restantes são conduzidos em autocarro até ao centro de acolhimento de Pozzallo, a poucos metros do cais. O procedimento normal, nestes casos, é os migrantes serem identificados e serem repatriados os que tiverem antecedentes criminais. Aos restantes é entregue um documento de identificação e são-lhes dados oito dias para deixar o país. Ou seguem nos aviões de repatriamento para Tunes – 60 pessoas por semana – ou tentam seguir o seu caminho para Itália ou outro país europeu.
À tarde, o navio faz-se de novo ao mar, para mais uma semana a vigiar as águas entre Lampedusa e Tunísia. No outro dia, são resgatados mais dois pequenos barcos, entregues às autoridades italianas. A primeira informação era que se trataria de duas lanchas rápidas, vindas de Tripoli, Líbia, o que poderia remeter um caso mais complicado. A tripulação preparou-se para o pior, instalando duas metralhadoras junto à ponte do navio, para, se necessário, as usar a fazer tiros de aviso ou, em última análise, para obrigar a parar as duas embarcações.
“Ainda não se sabia que tipo de ação era necessária e preparámo-nos. Pelo tipo de embarcação que nos foi indicada, ‘lanchas-rápidas’, poderia ser algo mais grave”, explicou Madaleno Galocha. No final, não foi necessário qualquer uso da força, tudo foi pacífico e as metralhadoras retiradas.
Mas nesta missão houve grupos diferentes, mais exigentes. Candidatos a migrantes com ténis caros, telefones de última geração, iPhone, Huawei e Samsung, o que espantou a guarnição.
“São totalmente diferentes daquilo que estávamos habituados a ver na rota da Líbia. É uma rota em que as pessoas já tentam, muitas vezes pela terceira ou quarta vez, fazer a reentrada na Europa. Algumas delas já foram expulsas da Europa por cometerem crimes”, descreve o comandante.
Pode a Europa estar a deixar entrar pessoas indesejáveis no meio do fluxo de imigração económica e na missão quase impossível de controlar as fronteiras? “É uma gota no oceano, realmente. O nosso trabalho tem que continuar. A principal missão é salvar as pessoas, independentemente de elas estarem ligadas ou não a organizações ou a atos menos corretos, mas o que está aqui em jogo é a vida humana. E a vida humana sobrepõe-se a qualquer valor”, respondeu o comandante.
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