Prólogo

QUINTA-FEIRA, 21 DE JUNHO DE 2007

Jean Julings ajoelhou-se dentro da pequena tenda e aconchegou o seu neto de três anos, Charlie, no seu saco-cama. Tinha uma cabeleira desgrenhada louro-clara e o seu rosto estava corado de cansaço devido ao ar fresco e à diversão. Agarrava-se a um pequeno urso de peluche castanho a que faltava um olho.

— Tiveste um dia divertido com a avó? perguntou Jean. Charlie anuiu, sonolento, e sorriu, mostrando os seus perfeitos dentes de leite brancos. – Lindo menino. E o Olho de Botão escovou os dentes?

— De cima e de baixo – respondeu Charlie, erguendo o urso de peluche. Jean riu-se, e o seu coração dilatou-se de amor pelo rapazinho.

— Muito bem. É muito importante para um urso de peluche escovar os dentes. Come todo aquele mel... – Os seus joelhos estalaram ao sentar-se nos calcanhares e estendeu a mão para o pequeno candeeiro a pilhas, que projetava um suave brilho amarelo.

— Não, luz acesa – queixou-se Charlie. O seu pequeno sobrolho franziu-se e ele esperneou dentro do saco-cama. Jean apagou a luz e um suave brilho permaneceu no interior. Estava lua cheia, e brilhava através da lona.

— Olha só para aquilo. Não precisamos de luz. Temos a luz de presença de Deus no céu – disse Jean, acariciando-lhe os suaves cabelos louros. – Não é tão assustador quando a Lua está assim tão brilhante à noite, pois não?

Charlie abanou a cabeça e aconchegou Olho de Botão debaixo do braço.

É Desta Que Leio Isto: Em janeiro recebemos Dulce Garcia

Anote na sua agenda. O É Desta Que Leio Isto já tem a primeira sessão de 2023 marcada. Dulce Garcia é a convidada do próximo encontro do nosso clube de leitura, a ocorrer no dia 19 de janeiro, pelas 21h.

Nascida em 1970, Dulce Garcia foi jornalista entre 1991 e 2017, escrevendo no Diário Económico e, acima de tudo, na Sábado, publicação de que foi fundadora e subdiretora. Assinou também colaborações nas revistas Elle, GQ, Vogue e Máxima. Hoje, é assessora de imprensa na área da política, trabalhando com o Ministério da Justiça.

A sua experiência na literatura bifurca-se nos dois lados da mesma moeda: foi editora de ficção portuguesa do grupo editorial Planeta e começou a publicar ficção com “Quando Perdes Tudo Não Tens Pressa de Ir a Lado Nenhum”, estreia editada na Guerra & paz em 2017.

Olho da Rua” — o seu segundo romance e uma das recomendações do ano do SAPO24 — trata-se de uma sátira do panorama laboral do século XXI, fazendo do escritório uma selva onde impera a lei do mais forte.

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— Vou só lá fora apanhar um pouco de ar fresco – disse ela, apalpando os seus calções e sentindo o maço de cigarros e o isqueiro no bolso esquerdo.

— Não…

—Serão só alguns minutos. Depois, volto para dentro e conto-te uma história, se ainda estiveres acordado. Está bem? Estarei lá fora, e podes chamar «Avó» e eu oiço-te e volto para dentro. Sim?

Charlie aquiesceu.

— Lindo menino. – Jean deu-lhe um beijo na face e, enquanto rastejava para fora da tenda, viu que os olhos de Charlie começavam já a fechar-se. Tinha passado o dia todo em movimento, a brincar e a chapinhar no rio. Ia adormecer num instante.

Jean esgueirou-se pela entrada da tenda para a alta e emaranhada vegetação do exterior e correu o fecho atrás de si. A tenda estava montada sob a ampla copa de um vasto e antigo carvalho, e os seus grossos ramos nus estendiam-se como braços nodosos, projetando sombras deformadas na relva. Jean levantou-se, ouvindo os seus joelhos estalar novamente. Tirou um cigarro e acendeu-o, exalando para o céu noturno. As estrelas cintilavam no céu, e ouvia o rio correr para o desfiladeiro. Parecia mais ruidoso à noite. A charneca estendia-se como um manto de cetim azul, pontilhada por rochas, e uma ligeira bruma agarrava-se aos canais e às terras baixas.

Diretamente à sua direita, do outro lado de uma curta extensão de vegetação, o Devil’s Tor erguia-se sobre tudo. Apesar da sua altura imponente, a pilha de rochas parecia muito zen e calma, como se um gigante tivesse empilhado um monte de grandes pedras lisas sobre uma plataforma relvada. Na base, e à sombra do luar intenso, encontrava-se outra tenda, pertencente à filha de Jean, Becky, e ao seu companheiro, Joel. A lona estava escura, e pareciam já estar a dormir.

Céus, este sítio é lindo, pensou ela. Quando acabou o cigarro, apagou-o cuidadosamente na sola do sapato e enfiou a beata enegrecida no maço. Estava prestes a voltar para a tenda quando ouviu uma voz ténue chamar o seu nome.

— Jean!

Viu uma figura desgrenhada aparecer atrás do Tor e entrar, cambaleante, numa mancha de luar sobre a plataforma relvada.

— Jeeean!

Era Declan, o seu companheiro ocasional de muitos anos. Jean praguejou baixinho e confirmou que a tenda estava fechada. Dominada pela urgência, atravessou rapidamente a erva alta, apavorada com a possibilidade de Declan acordar a família e armar uma cena.

A correr, subiu o talude relvado até à plataforma para tentar impedi-lo de descer, e estava sem fôlego quando o alcançou. Declan vestia as mesmas calças de ganga rasgadas e a T-shirt às riscas de quando aparecera junto ao rio nessa tarde.

— Que raio estás tu a fazer? Disse-te esta tarde que não eras bem-vindo aqui! – silvou ela.

Ele sorriu, e um laivo dos seus dentes amarelos surgiu por entre a barba espessa. Jean teve uma fria sensação de pavor ao ver que ele trazia uma garrafa de uísque, com apenas alguns centímetros de líquido âmbar no interior. Declan cambaleou, levando-lhe a garrafa à boca para a tentar fazer beber.

— Não! – disse ela, afastando-a com uma palmada. – O Charlie está a dormir, tal como a Becky e o Joel.

— Eu sei – respondeu ele, estendendo a mão para lhe agarrar os seios. Cambaleou para a frente, empurrando-a de novo para as sombras contra as altas pedras do Tor. Jean conseguia sentir o seu hálito azedo e desagradável enquanto se encostava a ela. Conseguiu empurrá-lo e libertar-se, saindo novamente para o luar. Ele pareceu surpreendido. não tens mesmo graça nenhuma, agora que estás sóbria… – Levou-lhe a garrafa à boca, mas ela afastou-lhe a mão. Não estava assustada. Já não tinha medo dele. Jean sentia uma feroz necessidade de proteger Charlie de Declan. Agarrou na garrafa e, torcendo-a, tirou-lha da mão, ignorando os seus protestos.

— Onde está o teu carro? – perguntou. Ele revirou os olhos e apontou vagamente para o outro lado da plataforma relvada, franzindo os lábios. Jean agarrou-o pelo colarinho e arrastou-o à volta do Tor.

— Calma, calma! – gritou ele.

Um pequeno parque de estacionamento no matagal do outro lado do Tor dava para uma estrada de gravilha. Jean viu o desconjuntado Renault azul de Declan estacionado no meio. O motor ainda estava ligado e a porta do condutor estava aberta.

— Posso ver-te amanhã? – perguntou ele, enquanto ela o arrastava pela agora mais rasa encosta relvada até ao carro.

— Não. Já te disse. Acabou. Não temos mais nada.

A alguns metros do carro, ele tropeçou na superfície rochosa irregular e bateu com o nariz no chão. Soltou um gemido. Jean recuou e ficou impassivelmente a ver se ele se levantava. Cambaleante, Declan fixou nela um maldoso olhar vítreo e aproximou-se novamente.

— Ouvi a cabra da tua filha na tenda, a foder – disse ele, torcendo o rosto num rosnido. – Parecia estar a gostar… mais do que tu, de certeza.

Jean deu-lhe uma bofetada, e ele retribuiu esbofeteando-a com as costas da mão. Ela cambaleou e caiu, aterrando na rocha dura. Viu como Declan cambaleava, impassível. Tinha o lado do rosto a arder, e levou a mão ao lábio. Não havia sangue, mas tinha os ouvidos a tinir. Não era o pior que ele lhe tinha feito.

Jean sentiu raiva. Pura raiva. Levantou-se, agarrou no que restava de cabelo na parte de trás da cabeça de Declan e empurrou-o pela porta aberta para dentro do carro.

— Onde estão as tuas chaves?

— O quê? – queixou-se ele.

Ela vasculhou-lhe rudemente os bolsos e tirou as chaves do carro.

— Não me vou embora – disse Declan, cruzando os braços.

— Vais, pois. E vais já. Estamos a meio da noite.

— Tens algo que se beba?

— Não.

— És uma cabra feia – disse ele.

— E tu és um flácido desperdício de espaço. – Disse-o com intenção de o magoar, mas ele sorriu e desatou a rir, com os seus dentes amarelos a surgir de novo por entre a barba.

— Que horas são?

— O bar ao cimo da estrada vai dar uma festa privada, disse-me alguém daqui. Talvez chegues a tempo, se te despachares – disse ela, sentindo um rasgo de inspiração. Não podia acreditar que ele tinha engolido aquilo, mas Declan era um alcoólico crónico.

Fechou a porta do carro, e ela viu como o seu zelo por álcool assumia o controlo. Ligou os faróis e, enquanto o carro guinava ao fazer uma curva, a erva alta ficou fugazmente iluminada. Jean teve a impressão de ver algo a mover-se nas sombras, mas depois desapareceu.

— Por favor, meu Deus, que ele morra numa sarjeta. Que não magoe mais ninguém a não ser ele – pediu. Jean viu como os faróis desciam a estrada e depois desapareceram. O alívio inundou-a e os seus ombros descaíram. Ergueu a mão para a face dorida. O rugido do rio parecia mais alto na escuridão.

Charlie, pensou. Jean apressou-se a contornar o Tor e a descer pelo outro lado da encosta. Quanto tempo tinha ele ficado sozinho? Apenas alguns minutos. Tudo estava em silêncio no campo. Uma coruja piava, os ramos da enorme árvore rangiam à brisa suave, e as duas tendas estavam imóveis.

Ao aproximar-se da sua tenda, a luz de presença acendeu-se no interior. O alívio inundou-a ao contorná-la e ver que a sua filha Becky punha a cabeça de fora. Estava em pijama e com o rosto limpo de maquilhagem. Tinha o sobrolho franzido de preocupação.

— Mãe, o Charlie está contigo? – perguntou ela.

— Não está na tenda? – contrapôs Jean, sentindo o pânico regressar.

— Não.

Jean passou por ela e olhou para o interior. Os sacos-cama estavam ambos vazios, e sentiu o coração cair-lhe aos pés.

— Deve estar com o Joel – sugeriu, ao voltar e ver a expressão preocupada de Becky.

— Não, mãe, não está. Pareceu-me ouvi-lo do lado de fora da nossa tenda. Foi por isso que o vim procurar. Porque não estás com ele?

— Fui fumar um cigarro. Foi só um minuto – disse Jean. A mentira a sair-lhe da boca sem qualquer preparação necessária.

— E se ele foi para o rio? Não sei se choveu, consegues ouvir o barulho da água? – perguntou Becky. A sua voz tinha um laivo de histeria.

— Vamos procurar. O Charlie não pode ter ido para longe – disse Jean, tentando manter a calma. O facto de Becky estar mais assustada do que zangada amedrontava-a.

Becky acordou Joel, e todos agarraram em lanternas e começaram a procurar, cobrindo o rio, as rochas do Tor e os campos circundantes. Os arcos de luz das suas lanternas varriam a paisagem escura, procurando. O rio estava mais alto do que no dia anterior e, enquanto Jean apontava a sua lanterna à negra e furiosa torrente, e gritava o nome de Charlie, a sua voz pareceu ser engolida pela escuridão. Sentiu-se doente à medida que os minutos passavam, tornando-se uma hora e depois duas. Charlie não estava em lado nenhum. Por volta das quatro da madrugada, o céu começou a clarear, e foi então que chamaram a polícia.

Enquanto o Sol nascia sobre a charneca, um carro da polícia chegou, seguido por outros dois.

Começaram as buscas a sério, mas Charlie nunca foi encontrado.

1

ONZE ANOS DEPOIS, QUINTA-FEIRA, 7 DE JUNHO DE 2018

A manhã começou tão normal como qualquer outra. A detetive privada Kate Marshall acordou às seis, mesmo antes do despertador, e estendeu automaticamente a mão para o seu fato de banho, que estava pendurado na cadeira ao lado da sua cama.

Kate nadava no mar todos os dias do ano, fizesse chuva ou fizesse sol, mas eram aquelas sonolentas manhãs de verão, em que a brisa era ligeira e os dedos prateados da alvorada começavam apenas a irromper sobre o horizonte, que mais adorava. A sua casa erguia-se no cimo de uma falésia em Thurlow Bay, na costa sul de Inglaterra. Era um local tranquilo, a oito quilómetros da cidade universitária de Ashdean. Após um rápido gole de água da torneira da cozinha, Kate abriu a porta dos fundos, que dava para um pequeno terraço e para um caminho de areia, e dirigiu-se rapidamente à praia.

A areia estava macia, e sentiu sob os pés o formigar do feno-das-areias que se estendia ao fundo da falésia, e depois atravessou as dunas. A erva era alta, cobrindo os montes e protegendo-a da brisa que vinha da água.

Quando saiu para a praia, os primeiros raios de sol espreitavam sobre o horizonte, atingindo uma grande poça de água do mar no areal com um cintilar. À sua esquerda, conseguia ver toda a extensão da escarpada costa Jurássica até Ashdean, que ficava numa pequena baía em forma de ferradura. À direita, situavam-se as falésias, pontilhadas ocasionalmente por uma ou outra casa, e um negro afloramento rochoso que se projetava para o mar formando uma barreira a oeste. Kate pensou que alguns dos surfistas hospedados no parque de caravanas em frente à sua casa poderiam já estar na água, mas não, tinha a praia só para si.

A areia molhada estava compacta e fresca debaixo dos seus pés. Largou a toalha a alguns metros da rebentação e entrou nas ondas. As vagas que avançavam chegavam-lhe à altura dos joelhos, e sentia a vibração da água na sua pele.

A areia desapareceu enquanto atravessava as ondas e, respirando fundo, Kate mergulhou. Deu-se conta de que algo estava errado quando voltou à superfície para tomar fôlego e sentiu uma corrente puxar-lhe a cintura, como dedos invisíveis, mas firmes.

E então foi tudo muito rápido: olhou para a vasta e cintilante poça de água do mar na praia, viu o profundo canal de água branca que corria da grande poça para o mar, e sentiu um violento puxão nas pernas. Kate foi arrastada para baixo, as pernas a rodopiar à volta da cabeça, o nariz e a boca a encher-se de água, e apercebeu-se demasiado tarde de que tinha entrado numa mortífera corrente de retorno.

Todos os seus anos de experiência de nadar no mar desapareceram, e Kate viu-se apanhada num pânico cego de sobrevivência. A velocidade e a força da corrente de retorno eram súbitas e aterradoras. Kate foi arrastada para longe da praia, aos tropeções. Viu laivos de céu, a praia vazia e um vislumbre da sua casa na falésia, agora muito longe, e então foi outra vez violentamente puxada para debaixo de água. Tossiu e engasgou-se, e a sua garganta encheu-se de água do mar.

Silêncio Mortal
Silêncio Mortal créditos: Alma dos Livros

Livro: "Silêncio Mortal"

Autor: Robert Bryndza

Editora: Alma dos Livros

Publicação: 19 de janeiro

Preço: €17,51

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Do outro lado da cidade, Tristan Harper, sócio de Kate na agência de detetives, mudava de posição no lugar do condutor do seu Mini Cooper. Doíam-lhe as costas e estava a ficar com o traseiro dormente. Olhou para o relógio e viu que eram quase seis e dez da manhã.

— Vá lá, por favor. Vai trabalhar – pediu Tristan, mantendo o olhar fixo na porta amarela de uma casa geminada mais adiante na Walker Avenue. Era uma rua de elegantes casas geminadas na parte «fina» de Ashdean. A casa pertencia a um arquiteto chamado Terrance Trent. Tinha cinquenta e poucos anos, e a mulher havia contratado Kate e Tristan para provar que ele andava a ter um caso.

Ouviu uma porta bater à sua esquerda e virou-se para ver uma mulher de meia-idade emergir do portão da casa junto à qual estava estacionado. Usava um fato de treino rosa-velho e tinha o cabelo preto curto penteado numa permanente bem apertada.

Dirigiu-se à sua janela, bateu no vidro e chegou-se para trás, de braços cruzados.

Tristan olhou novamente para a porta amarela. Terrance Trent devia estar prestes a sair para o trabalho a qualquer momento. Abriu a janela.

— Pode, por favor, dizer-me por que razão está parado à porta de minha casa desde as três horas da manhã? – exigiu saber a mulher. – Bem? – Falava em tom grandiloquente e parecia enfatizar palavras ao acaso. De perto, tinha o rosto coberto por uma camada espessa de base clara, e exagerara no contorno escarlate dos lábios. A coroa de apertados caracóis negros na sua cabeça lembrava a Tristan um reluzente prato de caracoletas. Perguntou-se se seria uma peruca ou uma coloração terrível. Olhou novamente para a porta amarela, que se mantinha fechada. Tristan estava estacionado na Walker Avenue desde as onze da noite. Tinha mudado de lugar duas vezes, acabando por se instalar junto à casa daquela senhora uma hora antes de ela o avistar, às duas da manhã. Um carro passou e um idoso saiu de uma porta mais à frente do outro lado da rua, seguido por um igualmente idoso cão castanho.

— Estou à espera de alguém – replicou Tristan. – É uma rua pública – acrescentou.

As sobrancelhas da mulher arquearam-se.

— Para sua informação, esta é uma rua residencial privada. Porque está estacionado à porta de minha casa?

— Porque havia um lugar de estacionamento vago – respondeu Tristan, tentando não perder a calma com aquela intrometida de aspeto bastante louco.

Ela franziu os lábios e aproximou-se, baixando-se para espreitar para o interior do carro. O lugar ao lado de Tristan estava repleto de invólucros de sanduíches vazios, além de uma máquina fotográfica com teleobjetiva. Tinha uma garrafa de chá gelado de pêssego no suporte para copos, mas já não continha chá, depois de Tristan se ter visto obrigado a urinar para dentro dela às quatro e meia da manhã.

— Parece suspeito. Como se andasse a tramar alguma. É jornalista?

Nesse momento, Tristan viu a porta amarela abrir-se e Terrance Trent emergiu, caminhando a bom ritmo com uma jovem pelo braço. Vestia um elegante fato azul às riscas. A rapariga usava o mesmo minivestido branco, saltos altos e casaco de peles que tinha às onze horas da noite anterior.

— Sei tudo o que se passa por aqui – rugiu a mulher. – Sou a presidente da patrulha de bairro local.

Tristan sentiu um aperto no coração. Queria pegar na câmara e tirar a foto, mas era demasiado arriscado. Se aquela velha percebesse que ele era detetive privado, podia avisar Terrance e dizer-lhe que estava sob vigilância, o que significaria perder uns avultados honorários para a agência. Terrance e a jovem entraram no seu carro e partiram em sentido oposto.

Tristan suspirou e afundou-se no seu lugar.

— Então? O que tem a dizer em sua defesa? – perguntou a mulher.

— Trabalho para a câmara. Estou a verificar se alguém deixa os caixotes do lixo de fora depois da recolha – replicou ele.

— Ah! – exclamou a mulher, sorrindo e acenando em aprovação. Bateu de lado no nariz e pareceu aceitar essa explicação. Chegou-se mais perto. – Há um grupo de estudantes em frente, no número quatro, que são muito culpados disso e merecem uma notificação e uma multa – disse ela.

— Número quatro – repetiu Tristan.

— E, claro, o meu caixote do lixo sai menos de uma hora antes da recolha, e levo-o de novo para dentro assim que é esvaziado.

— É bom saber.

Terrance Trent passava o dia inteiro a trabalhar, por isso era improvável que regressasse a casa antes da noite. Tristan olhou para os dois lados da rua, sorriu e agradeceu à zelosa informadora. Quando ligou o motor e saiu para a estrada, conseguia ver a mulher pelo espelho retrovisor, a observá-lo enquanto se afastava.

2

Quando abriu os olhos, Kate estava num pequeno quarto de hospital. A cama onde jazia parecia rodeada de branco e oscilava. Sentia a garganta dorida e a pele pegajosa. Mexeu a cabeça e a dor explodiu como a pior das ressacas. Terei bebido? Por favor, não, pensou. Respirou fundo algumas vezes, mas com grande esforço, e tinha um estertor húmido no peito.

E então lembrou-se. Não tinha descarrilado ao fim de treze anos de sobriedade. A sua última memória fora o puro pânico de morrer afogada. Kate mudou de posição na cama e viu um sistema de soro no braço e fios ligados ao peito. Uma floresta de linhas coloridas movia-se silenciosamente pelo ecrã de um monitor cardíaco do lado direito da cama. O alívio por não ter bebido foi substituído pela memória de ser arrastada pela água.

Uma fila de janelas de vidro dava para um corredor, e um médico apareceu à porta aberta e bateu no caixilho. Parecia jovem, em finais dos vinte, com denso cabelo preto e óculos. Sorriu.

— Bom dia, Kate – disse ele, entrando no quarto e parando aos pés da sua cama. A forma como disse o seu nome fez Kate pensar que se conheciam.

— Bom dia tentou ela responder, mas a voz saiu-lhe num crocitar. Engoliu em seco, mas sentia a garganta seca e cheia de agulhas.

— Passou algum tempo inconsciente. Tivemo-la nos cuidados intensivos – disse o médico. Pegou na ficha ao fundo da cama, folheando as páginas. Kate esfregou a garganta e engoliu em seco, retraindo-se. A cama parecia oscilar e mover-se debaixo dela. – Tinha água nos pulmões. Tivemos de a entubar – acrescentou ele. Ela tossiu, o que pareceu ativar uma dor surda e latejante para somar à sinfonia na sua cabeça.

— Quanto é algum tempo?

— Quase vinte e quatro horas – respondeu ele. A cortina fechada à direita de Kate ondulou e ela ouviu vozes murmuradas do outro lado. Abriu-se uma fresta e uma enfermeira pôs a cabeça de fora.

— Desculpe, doutor Harris, tem um minuto? A senhora Julings está um pouco indisposta – disse ela. Ele pousou a prancheta na cama, anuiu e seguiu-a através da brecha. A enfermeira esboçou um aceno a Kate e fechou a cortina atrás de ambos. Kate debruçou-se para a frente para agarrar na prancheta, mas o esforço deixou-a tonta. Recostou-se, transpirada e sem fôlego. O médico e a enfermeira falavam baixinho do outro lado da cortina, e a voz estridente de uma mulher mais velha interrompeu-os.

— Por favor, doutor, dê-me algo mais forte. Doem como o raio. Pode olhar para elas o tempo que quiser, mas isso não alivia a dor!

O nariz de Kate pareceu reativar-se e captou um cheiro desagradável a pus; depois, os outros aromas do hospital pareceram inundar-lhe os sentidos: desinfetante, cera para pavimento e outros pivetes clínicos que não conseguia identificar muito bem. Deu um salto quando a mulher gritou.

— Cristo! Da próxima vez, avise-me!

— Por favor, senhora Jean. Acalme-se. O doutor está quase a terminar – disse a enfermeira, em tom monótono.

— Não me diga para me acalmar!

— Muito bem, Jean. Já acabámos – anunciou o Dr. Harris.

— Por favor, cubram-me. Até o ar as faz doer – gemeu a mulher, em tom desesperado. Houve mais alguns movimentos, e então o Dr. Harris voltou a atravessar a cortina, seguido pela enfermeira, transportando um recipiente de cartão cheio de ligaduras sujas. Pela fresta, Kate captou um vislumbre de uma mulher minúscula com uma penugem de cabelo cor de melaço que mal se lhe agarrava à cabeça, sentada na cama com uma película de suor a cobrir-lhe o rosto.

Onde íamos nós? – perguntou o médico, voltando a aproximar-se da sua cama. A enfermeira saiu do quarto, e o cheiro a pus e a infeção ficou a pairar sobre eles com uma intensidade de fazer lágrimas nos olhos.

Kate engoliu com dificuldade enquanto ele tirava uma pequena caneta-lanterna do bolso e lhe apontava a luz aos olhos. Pareceu-lhe arder contra a parte de trás da sua cabeça. O Dr. Harris pareceu satisfeito e guardou a lanterna.

— Está com um início de infeção pulmonar, uma pneumonia, o que era de esperar pela água nos seus pulmões. Está a fazer um ciclo muito forte de antibióticos intravenosos e precisamos de a monitorizar por alguns dias disse ele, indicando o ecrã a que Kate estava ligada. Ainda conseguia ver um clarão dourado da lanterna.

— Como cheguei aqui? – perguntou ela, reconstituindo subitamente a memória da corrente de retorno, de ser tirada do mar. – E onde é aqui?

— Ah, acho que foi tirada da água por surfistas – disse ele, consultando novamente a ficha. – Julgo que chamaram os serviços de emergência.

— Que serviços de emergência?

— O salva-vidas.

Kate sentiu-se humilhada ao ouvi-lo.

— Quem eram os surfistas?

— Não sei, lamento. Mas teve muita sorte.

Kate viu o seu telemóvel pousado em cima do armário, ao lado de uma caixa de lenços de papel e de algumas garrafas de água. O Dr. Harris seguiu-lhe o olhar.

— O seu filho esteve aqui enquanto estava inconsciente.

— O Jake está cá? Veio a casa?

O Dr. Harris hesitou.

— Não sei. Esteve cá um rapaz chamado Tristan, não é seu filho?

— É o meu sócio – explicou Kate. – O meu filho sabe que estou bem?

— Estou certo de que o pessoal de enfermagem terá entrado em contacto com os seus parentes mais próximos. – O Dr. Harris consultou novamente a ficha. – Vejo que é detetive privada. É uma estreia. Nunca tinha tratado um detetive privado – disse ele, fitando-a com um sorriso. – Venho ver novamente como está daqui a algumas horas. Está a sair-se bem, mas com uma pneumonia não se brinca. Rapidamente se pode tornar em algo mais desagradável.

Kate sentiu a emoção dominá-la. Lágrimas quentes escorreram-lhe pelo rosto, e então, sem aviso, uma enorme mancha de ranho desceu-lhe pelo queixo. O Dr. Harris estendeu-lhe a caixa de lenços do armário alto, e Kate tirou um, encostando-o à cara. Ele acenou-lhe desajeitadamente e saiu do quarto. Kate estendeu a mão para outro lenço, mas foi atingida por tonturas e náuseas. Recostou-se, ofegante e a suar, e olhou para o teto. Nadar no mar era algo que fazia todos os dias. O que acontecera? Como podia ter sido tão estúpida ao ponto de se deixar apanhar por uma corrente de retorno?