
Noutros tempos (séculos XV e XVI) a Polónia, ligada ao Grã-Ducado da Lituânia, foi uma força poderosa, sempre ameaçada por levantamentos dos cossacos, guerras contra a Suécia (que nessa época era um império em expansão) e contra os turcos otomanos. Nos séculos XVII e XVIII, foi a vez da Rússia se expandir para Oeste e terminar com o Grã-Ducado. A Polónia, sozinha, com um território mais ou menos equivalente ao atual, ficou às ordens dos czares Pedro o Grande e depois Catarina, igualmente Grande. O ápice do Império russo, no século XVIII, incluiu também o reino da Prússia e a Austria dos Habsburgos. Os polacos revoltaram-se contra os russos e os prussianos em várias alturas, nem sempre com sucesso, até que, finalmente, em 1791, a Polónia conseguiu estabilizar-se e teve a primeira constituição moderna europeia, com um rei escolhido pelo parlamento - ou seja, uma monarquia não hereditária.
Estou a simplificar bastante um período de desassossego constante; se quiser todos os pormenores veja aqui. O que interessa salientar é que o país sofreu quatro partilhas com parceiros diferentes e as suas fronteiras mudavam constantemente. A última partilha foi entre a URSS de Estaline e a Alemanha de Hitler. Quando os nazis se viraram para o Leste, em 1939, ocuparam a Polónia inteira; quando a guerra mudou, em 1945, foram os russos os ocupantes. Tanto uns como outros organizaram grandes massacres de judeus e dos intelectuais polacos. Na famigerada conferência de Yalta, a Polónia ficou dentro da esfera de influência russa, o que quer dizer que passou directamente para um estado vassalo da URSS. Um dos muitos episódios dessa época foi o massacre de cerca de 4.443 intelectuais e oficiais do exército em Katyn, com a intenção expressa de acabar com as elites polacas. Durante anos, os nazis acusaram os comunistas e vice-versa; finalmente, em 2010 ficou definitivamente provado que os autores tinham sido os russos. No total, calcula-se que o NKVD e o Politburo soviético foram responsáveis pela assassinato de 20.000 pessoas.
Quando se inaugurou uma estátua de homenagem aos mortos da atrocidade, em 2010, estiveram presentes o então primeiro polaco, Donald Tusk, e o presidente russo, Vladimir Putin. Dois dias depois, um avião que transportava o presidente polaco Lech Kaczynski, a esposa e altas patentes militares, despenhou-se perto de Katyn e morreram todos. Embora desta vez não se apontasse nenhuma responsabilidade política, o facto só reforçou a fama tenebrosa do local e contribuiu para a desconfiança que os polacos têm pelos russos, até hoje. Não surpreende que actualmente (desde a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, em 2022) a Polónia seja o país europeu que gasta maior percentagem do PIB em defesa.
Uma característica marcante dos polacos é a sua fé católica, tão forte que mesmo nos anos em que o país esteve na esfera soviética os padres não foram perseguidos e as igrejas continuaram abertas; os comunistas conseguiram conciliar, ou, pelo menos, ignorar, as diferenças entre uma prática religiosa intensa e o materialismo dialético.
A Polónia comunista começou a dar sinais de fraqueza na década de 1970, quando os sindicatos dos estaleiros navais, dirigidos por Lech Walesa, organizaram uma série de impensáveis greves contra as condições de trabalho. A eleição dum Papa polaco, João Paulo II, deu novo alento às convicções ultra-conservadoras dos católicos - até hoje o aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo são proibidos por lei.
Em 1989, a Polónia libertada teve as suas primeiras eleições parlamentares desde 1928. Em 1990 é eleito o primeiro presidente democrático - o mesmo Lech Walesa dos sindicatos, e em 1999 o país abandona o Pacto de Varsóvia e entra para a NATO. Em 2004 adere à União Europeia.
Finalmente livre de controles externos, a Polónia desenvolve-se rapidamente, mas permanece ultra-conservadora nas questões sociais. Isso reflete-se no Partido Lei e Justiça (PiS), que seguiu a “formula Viktor Orbán” para se manter no poder e dar seguimento a uma cartilha “iliberal”. Ou seja, primeiro assegurar, através de uma mistura de favorecimento dos seus membros e perseguição dos oponentes, que a Polónia segue uma linha autoritária e conservadora.
Donald Tusk e o seu Partido Liberal Democrático (KLD) segue um ideário social-democrata centrista e pró europeu. Tusk é muito popular e já foi parlamentar e Primeiro Ministro duas vezes (nessa altura o partido chamava-se Plataforma Cívica), até que se encantou com o convite para a Presidência do Conselho da União Europeia, cargo que desempenhou de 2014 a 2019. Assim deixou o país nas mãos PiS. Durante o seu mandato apoiou a adesão da Polónia ao euro e, não tendo conseguido, graças aos esforços do Ministro das Finanças, Jan Vincent-Rostowski, e do Presidente, Lech Kaczyński, ambos do PiS.
Em 2023, Tusk terminou a Presidência do Conselho da Europa (sucedido por António Costa) e voltou à política doméstica, sendo eleito Primeiro Ministro no mesmo ano. Mas a Polónia que encontrou estava bastante diferente da que tinha deixado, graças às manobras do PiS para dominar os tribunais, a comunicação social e o ensino - os típicos movimentos da extrema direita “suave”, seguidos por Orbán, Trump e Miley, por exemplo. Talvez “suave” não seja a expressão adequada, porque é uma tomada do poder bastante áspera. Apenas não utiliza métodos abertamente violentos, como prisões arbitrárias ou violência física. Joga dentro da legalidade, mas vai mudando essa legalidade insidiosamente.
No sistema polaco quem governa é o Primeiro Ministro, mas o Presidente tem muita influência e pode favorecer ou facilitar as medidas parlamentares e os decretos-lei - é praticamente igual ao sistema português. Portanto, nas eleições presidenciais da semana passada Tusk precisava de um Presidente favorável. O seu candidato estava bem posicionado mas, à última hora, o preferido do PiS e “apoiado por Trump, Karol Nawrocki, acabou por ganhar. O seu slogan de campanha já diz tudo: “A Polónia primeiro!”.
O novo presidente vai dificultar o mais que puder as reformas de Tusk, quer através do veto, quer influenciando o Supremo Tribunal, que há anos é aparelhado pelo PiS. Certas reformas, como o aborto, estão fora de questão.
Nawrocki é um historiador que mistura o reacionarismo populista com uma leitura muito própria da História recente. Temas não faltam, como o Holocausto, a comunização e a descomunização, e uma crítica ao liberalismo económico. Apostou nos sentimentos conservadores e anti-elites e concorreu como uma pessoa fora do sistema. (Isto está a tornar-se um padrão, os políticos dizerem que não políticos…)
Quanto a Tusk, vive num período desfavorável; a esquerda acha-o ineficiente e a direita considera-o um traidor. Com o novo presidente eleito até 2030, as reformas mais modernizadoras ficam muito comprometidas. E a postura anti-europeia de Nawrocki contraria a vontade de Tusk de colocar a Polónia no centro da resistência europeia à Federação Russa (embora os polacos não queiram sequer pensar na hipótese de Putin ultrapassar a Ucrânia).
A vitória do candidato apoiado pelos “deploráveis” - Le Pen, Orbán, Trump - é o resultado do que os tem levado ao poder: a desconfiança e a frustração dos menos informados pelas elites e pelas instituições democráticas. A desconjuntada coligação liderada por Tusk não tem conseguido progressos visíveis
O sucesso económico da Polónia, baseado nos fundos europeus, nas redes de distribuição alemãs e na segurança monetária produziram resultados surreais. O PiS governou com o dinheiro europeu ao mesmo tempo que desprezava os valores da União. Tusk tem uma atitude diferente, mas isso não é o suficiente; tem de provar que consegue estar mais próximo das ansiedades dos eleitores. No fundo, é o problema de todos os dirigentes europeus (e muitos não europeus): provar que um ambiente democrático dá melhores resultados, não morais (que são sempre discutíveis), mas concretos, materiais.
A disfunção a que estamos a assistir na Polónia é apenas mais uma. Apesar dos seus indiscutíveis sucessos, a União Europeia ainda tem de provar que vale a pena.
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