6. O Noviciado
No Verão de 1955, o meu biografado deixou o quarto do Paço da Rainha. Bem localizado, sossegado, tinha a desvantagem de ser acanhado e rudimentar. Tratava-se de uma centenária casa popular, sem condições. Alugou então um quarto numa casa mais recente, em zona próxima e bem sua conhecida, a Rua Almirante Barroso, na lateral do Liceu Camões, onde estava a Escola António Arroio. O quarto ficava no lado esquerdo do sexto e último andar do número 44, num prédio estreito e fundo, que hoje já não existe, cujas traseiras davam para as traseiras dos edifícios da Rua Actor Taborda. No meio havia umas hortas e uns pátios lajeados. Na parte da frente ficavam os recreios da escola e os telhados do Liceu Camões. No andar vivia uma senhora que alugava quartos para ajudar a criar a filha, uma criança tímida e enfiada, chamada Maria Eugénia Soares Barbosa, e que não teria mais do que 11 ou 12 anos. No mesmo andar, em frente, do lado direito, vivia o enfermeiro-chefe do Hospital dos Capuchos, um José de Sousa, igual a tantos outros, que em tempo de eleições fazia as mesas eleitorais no Liceu Camões e que chegou a convidar Luiz José, em 1957, a fazer parte de uma.
Luiz José achou graça voltar ao local de todas as partidas. Da varanda da frente via o pavilhão de canto coral onde fizera a graça do negro melro a Cardoso Pires. Por trás dos telhados vermelhos do liceu ficava a varanda das traseiras da Rua de Dona Estefânia, onde jovem cadete devaneava fantasias ao cair da tarde e onde se desenrolavam já outras e desconhecidas vidas. A casa tinha quarto de banho e oferecia sossego e espaço. Se bem que a sua relação com Maria Helena tivesse sofrido alguns abalos depois da morte de Adelina Maria, nada de substancial se alterara. Viam-se todas as semanas, davam as suas coelhadas, ela tratava-lhe das roupas, da comida, das limpezas e ele abonava-a. Preferia ter um quarto para a receber do que estar em casa do pai com ela. Então com 25 anos, a rapariga fechava o curso de enfermagem e previa-se a sua entrada próxima num dos hospitais da zona. Ela insistia que mais tarde ou mais cedo teria de voltar a instalar-se em Lisboa com os filhos — a mais velha, Maria Luísa, já em idade de escola e o outro, João Miguel, com cinco anos.
Nessa mesma época, final do ano de 1955, uma nova geração, nascida já na década de 30, filha do Estado Novo, surgiu em Lisboa interessada no que se passara na década anterior na Casa do Alentejo e nas duas exposições surrealistas de 1949 e 1950. Os opúsculos de António Maria Lisboa tiveram então nova procura e a figura do poeta que deixara esta Terra num quarto miserável do bairro da Graça aos 25 anos ganhou pela primeira vez uma aura de mito, tornando-se no mentor invisível dessa nova geração, que se afirmava com estrépito na pacata e muito policiada Lisboa da época. Para se diferenciar escolheu para ponto de reunião um café, o Gelo, até aí desprezado pelas tertúlias letradas, e que ficava na ponta ocidental do Rossio, quase na esquina com o Largo D. João da Câmara. As tertúlias estabelecidas preferiam os cafés Portugal e Chave d’Ouro, no Rossio, e o Restauração e o Martinho, aquele na Rua 1.º de Dezembro e este no Largo D. João da Câmara, ao lado do Teatro Nacional. O Gelo não tinha tradição artística e era visitado por comerciantes e gente da província que chegava ou partia da capital. No passado, antes da queda da monarquia, fora frequentado pelos círculos carbonários que ali haviam traçado o regicídio. Era espaço amplo, sobre o comprido, em dois andares e com duas entradas, uma pelo Rossio e outra pela Rua 1.º de Dezembro. A tertúlia atraiu desde logo gente jovem — uns vindos da Escola de Belas-Artes, outros da Faculdade de Letras, ainda no velho edifício do antigo Convento de Jesus, outros sem ocupação. Juntava-se-lhe a fileira dos sobreviventes da década anterior — à cabeça Cesariny, que por força das idas obrigatórias ao Torel se auto-apelidava de Pelado. Tinha por ele os livros e os poemas publicados que gozavam de grande favor junto destes jovens. De seguida estavam Luiz Pacheco e Manuel de Lima, o primeiro por ser o editor de Cesariny e de Lisboa, o segundo por ser o lendário das orquestras e autor de um romance que Almada prefaciara. Vindo do café Restauração, Raul Leal, o colaborador de Orpheu, fechou a roda do grupo, que se tornou numa das tertúlias mais activas da vida cultural lisboeta da segunda metade da década de 50. Nesse círculo encontrou Luiz José os que se tornaram seus companheiros de acção para a vida toda — Virgílio Martinho, António José Forte, Manuel de Castro, Ernesto Sampaio, João Rodrigues, Fernando Saldanha da Gama, Herberto Helder, José Rijo, Ricardo Tavares (Varik), João Fernandes (o Zanaga), Álvaro Santos (Cabeça de Vaca), José Manuel Simões, Florentino Goulart Nogueira, Ricarte-Dácio de Sousa e Manuel Granjeio Crespo.
Nesta época ultimou a edição de A Verticalidade e a Chave, de António Maria Lisboa, que apareceu no final de Maio de 1956, edição primorosa, em folhas soltas arrumadas numa grande caixa de cartolina preta, com um extratexto de Cruzeiro Seixas. Em simultâneo pôs na rua novo livro de Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação — o livro está datado de Março mas só no final da Primavera ficou pronto. Menos combativo e menos descarado que os anteriores, mostra porém uma ímpar capacidade de exploração do irracional. Nunca se vira um contrabando assim nas fronteiras do espírito. Cesariny vivia num paradoxo: sentia-se vexado pela polícia — chegou a pedir apoio médico — e sem esforço algum, sem nada pedir, era gratificado dia a dia pela mais alta criação poética. Mal punha o pé na rua, nasciam-lhe os poemas na cabeça. Um poema como «Vida e milagres de Pápárikás, bastardo do Imperador», que integrou o livro de 1956, foi criado deste modo, sem necessidade de escritório. O livro teve um enorme impacto na jovem geração, que consagrou o autor como seu mentor poético. Conhecida de Luiz José desde a década anterior, que a vira várias vezes na Inspecção-Geral dos Espectáculos, Natália Correia abriu o seu salão a Cesariny e ao grupo do Gelo para se fazer a leitura e a apresentação do livro. Na sua casa da Rua Rodrigues Sampaio, rua bem conhecida de Luiz José por via de Matias Celorico Palma, Natália recebia poetas e artistas. Apaixonada pelo surrealismo e íntima então de Manuel de Lima, com quem encetara uma relação amorosa, Natália ligou-se ao grupo do Gelo.
A criação de Cesariny foi tão abundante nesta época que deu origem a um livro paralelo, Pena Capital, que ele entregou em 1955 a Daniel Filipe, então a orientar um projecto editorial. O manuscrito entrou na tipografia para composição mas o projecto de Daniel Filipe falhou e só no Outono do ano seguinte, quando o Manual estava já distribuído, a chancela de Luiz José pôde pensar recuperar o material tipográfico e mandar seguir o livro para impressão, que ficou pronto no Verão de 1957 e voltou a contar com o apoio da jovem geração que se encontrava no café Gelo.
Luiz José depressa se tornou uma das figuras tutelares do discreto café do Rossio. Mais velho, convivera com o morto mítico, António Maria Lisboa, mantinha um diálogo muito próximo com Cesariny e fazia um trabalho de editor ousado. Mas mais relevante do que as letras e do que a diferença de idade era a liberdade que sem esforço e sem artifício ele apresentava. Sorrateiro, sem acusar o toque, chegava ao café de alpergatas e de canelas à mostra. Sentava-se, conversava, prodigalizava conselhos com o mais sério e circunspecto semblante. Os empregados mostravam incómodo mas ele compenetrado não acusava o toque. Tal como chegava, desandava. O grupo ficava a vê-lo voltar costas, atravessar a porta e desaparecer no escuro da cidade. Era um senhor e um saltibanco. Bastou este à-vontade para lhe criar ascendente no grupo. Embora em ruptura com a geração dos pais, estes jovens mantinham uma formalidade de porte e vestuário que ele já quebrara. Para alternar com o Gelo, havia ainda um café no Cais do Sodré, o Royal, que pertencia à família de Pepe Blanco, um dos rapazes da tertúlia, e alguns poisos no Parque Mayer, ao pé da Avenida da Liberdade, para horas mais tardias.
A editora Contraponto encontrou neste meio um húmus feraz. Pacheco editou então a estreia de Herberto Helder, O Amor em Visita (1958), e Poemacto (1961); voltou-se ainda para Natália Correia, de quem editou Comunicação (1959), Cântico do País Emerso (1961) e O Homúnculo (1964). Pouco depois da morte de Manuel de Castro (1934-1971), lamentará tê-lo deixado de lado; o mesmo dirá de Virgílio Martinho. Dedicou ainda atenção a Raul Leal, de quem editou um vistoso panfleto, Sodoma Divinizada (1961), que tivera em 1923 o auto-de-fé dos estudantes católicos da capital. Foi neste período que arrancou a colecção de teatro, que se estreou em 1956 com a edição de um livro de Henrik Ibsen, João Gabriel Borkman, e que editou durante um lustro quase duas dezenas de volumes. Digna de nota é a edição de Wozzeck (1959), de Georg Büchner, a primeira em português, tradução de Natália Correia e de Rosário Corte-Real e prefácio de Manuel de Lima. Lançado no Teatro de S. Carlos no dia da estreia da ópera de Alban Berg, 20-2-1959, sobre a peça de Büchner, o livro teve boa saída. Na altura do segundo intervalo já havia sido mandado retirar por indecências, não mais sendo permitida a sua mera exposição. A colecção “teatro no bolso” da editora Contraponto editou pela primeira vez entre nós autores como Ariano Suassuna, Castelao, Büchner, Dürrenmatt, Kleist, Vallejo, Genet, Ionesco e Sade. Em tradução de José Manuel Simões, editou deste em 1959 Diálogo entre Um
Padre e Um Moribundo, que foi a primeira obra que em Portugal se publicou do autor e que só não foi apreendida porque circulou fora do circuito livreiro. No Outono de 1957, quando Pena Capital de Mário Cesariny saiu da tipografia, ouviram-se os primeiros rumores públicos de que o general Humberto Delgado se ia candidatar à presidência da República pela oposição nas eleições que iam ter lugar em Junho. Fora um dos participantes no golpe militar do 28 de Maio de 1926, aderira ao salazarismo e ocupara cargos de relevo ao serviço do regime. Mostrara tímidas divergências depois da guerra e por isso o ditador o enviara para continuadas missões no exterior, evitando o seu regresso. No início da década de 50 estava em Washington, Estados Unidos, chefe da delegação portuguesa na Organização do Tratado do Atlântico Norte. Numa passagem por Lisboa em 1956 entrou em contacto com Henrique Galvão, então preso. A partir daí entrou em colisão com o regime. Regressou a Portugal em Setembro de 1957 e logo se falou dele para candidato da oposição nas eleições do ano seguinte. As eleições presidenciais anteriores haviam tido lugar depois da morte de Carmona, em 1952, e tinham levado à eleição de Craveiro Lopes. Agora o ditador decidia-se por um marinheiro inofensivo, Américo Tomás, um porquinho-da-índia que vivia para comer e mostrar o pêlo. Uma nova década estava a passar, o final da guerra já lá ia há mais de uma dúzia de anos e o ditador não dava mostras de se querer ir embora. Recorria a todas as fraudes para conservar a governação e dispunha de uma polícia política para lhe aniquilar os adversários. Era um maníaco do poder. Dentro das apertadas e vigiadas regras que o regime era obrigado a conceder em período eleitoral, Humberto Delgado lançou uma campanha destemida, que magnetizou multidões. Apanhado de surpresa, o regime tremeu. Por um momento as ruas voltaram a ver enchentes de pessoas, que vitoriavam a liberdade e o fim do salazarismo. A mesma esperança de 1945 encheu de novo as ruas em 1958 — o regime ia cair na sequência de um acto eleitoral.
Não passou de miragem, mas o incentivo de liberdade naquele momento foi sentido. A geração do café Gelo empenhou-se a fundo na campanha — a sede do general Humberto Delgado ficava a dois passos, na Avenida da Liberdade — e aqueles jovens viviam pela primeira vez a festa solar da liberdade. Multidões em movimento, gritos de vitória, vivas à liberdade, convívio caloroso nas ruas e nos comícios, tudo naquele momento foi exaltante e até a Primavera parecia ter aparecido no mundo pela primeira vez. Uma nova geração, nascida já no Estado Novo, queria o ditador pelas costas. Nascera, crescera e fizera-se adulta com a mesma cara a mandar no país. Nada mais deprimente do que ver todos os dias nos jornais o mesmo rosto. Mais gastos e mais batidos, Cesariny e Luiz José, que haviam vivido as grandes mobilizações de 1945, não deixaram de acompanhar o movimento, pondo-se à sua testa. Cesariny mandou imprimir um panfleto, Autoridade e Liberdade São Uma e a Mesma Coisa, que distribuiu à mão nas manifestações de rua e nos cafés. Pacheco encetou a partir do segundo semestre do ano de 1957 um processo de reflexão, que o levou à publicação do seu primeiro texto crítico de envergadura, «Da necessidade duma crítica exclusivamente formativa» (Diário Ilustrado, 2-7-1957). Estampara até aí umas tantas notas em revistas e jornais (Afinidades, Contraponto 2, Notícias do Império), nada a merecer atenção. Neste novo texto mostrava uma consciência aguda das tendências críticas em jogo desde a revista Presença — por um lado, a crítica pura, centrada no valor estético, sem preocupações morais, sociais e políticas, que sofria na época uma actualização em extensão com as tendências estilísticas da crítica universitária, e por outro a crítica pedagógica, visando sopesar as consequências morais e políticas de uma obra, independentemente do seu valor estético, e que tinha um único antecedente de peso, António Sérgio. Só esta lhe convinha, só ela lhe parecia estar à altura do momento que então passava e em condições de dar um contributo para a evolução da mentalidade portuguesa. Deixar de lado a situação social e política em nome da pureza do valor estético representava um tipo de demissão que só podia ser funesto. Eis o primeiro critério de aferição crítica de Luiz José! Foi com ele que mais tarde, já na década seguinte, partiu para a campanha crítica que encetou contra autores e obras. Com este princípio de base, aliás já presente na carta que escreveu a José Gomes Ferreira, construirá em 1971 o seu sistema crítico definitivo, que resumirá na máxima lapidar — «Diz-me quem és e como ages, dir-te-ei o que escreves.» Ao texto devem juntar-se os dois seguintes que publicou, «A República faz-se todos os dias» e «A lição», ambos na Seara Nova (Outubro de 1957 e Outubro de 1958), a revista de Câmara Reys, seu antigo professor de Português e que lhe punha à disposição na Feira do Livro a barraca das edições Seara Nova.
Luiz José continuava na Rua Almirante Barroso. O pai estava para Bucelas mas ele pouco aparecia. Há muito que não via o pai, a não ser de passagem. Toda a sua vida se desenrolava em Lisboa. Produziu então muito livro, desde a colecção de teatro às edições de Cesariny, Lisboa e Herberto. Tinha muita volta a dar só à conta da editora; havia as provas para levantar e deixar, os livros para distribuir, os orçamentos, a expedição postal, os pagamentos e o dinheiro a receber nas livrarias da Baixa. Era um rol infindável de tarefas e mesmo nestes anos, os mais activos da editora, ninguém o ajudou. Fazia tudo a sós — produção, distribuição, expedição. Helena deixara Bucelas, onde só ia ao fim de semana prestar serviço ao sogro, e trabalhava agora no Hospital dos Capuchos. Realizara o sonho e tinha os filhos no Liceu Francês como qualquer senhora. Mudara-se com os filhos para o andar da Rua Almirante Barroso, alugando mais dois quartos à senhoria. Tinha uma criada para lhe tratar das roupas, da comida e das crianças — gaiata nova, pouco experiente, chegada da província, que se contentava com uns tostões de féria, bastando-lhe cama, comida e chão seguro. Assim conheceu Luiz José, na Primavera de 1957, uma rapariguita espevitada chamada Maria do Carmo Matias, acabada de chegar da freguesia do Troviscal, concelho da Sertã. Fizera 15 anos em Março e era a bem dizer a primeira vez que deixava a aldeia.
Coxeava por causa de doença infantil, o que chamou as atenções de Luiz José, que logo teve motivo de conversa. A miúda prendeu-se às graças do míope que era o patrão, espécie exótica nunca avistada pelo Troviscal. Maria Helena, escaldada com o caso de Emília no quarto de Palhavã, percebeu os avanços e despediu a rapariga.
Desfecho muito distinto teve o caso com Maria Eugénia Soares Barbosa, a filha da senhoria. Era uma criancinha quando Luiz José chegou ao andar da Rua Almirante Barroso. Mal se reparava nela, tímida e apagada. Era a Geninha, que a mãe e uma tia velha que vivia lá em casa, a D.9 Maria, apresentavam às visitas. Nem dois anos passavam e já a menina era outra. De um dia para o outro fez-se desenvolta, opulenta e atrevida. Luiz José espantou-se com a transformação. Quase nem reparara nela e agora não conseguia despegar dela os olhos. Ela percebeu-lhe a surpresa e caprichou. Aparecia propositadamente à saída da casa de banho para se mostrar em pijama. Outras vezes, esperava por ele na marquise das traseiras, onde Luiz José ia espairecer. Com a desculpa do calor, vestia blusa fina de alças, com os limões duros a quererem saltar fora. Espreguiçava-se ao Sol da manhã, que nessa época do ano batia ali quase de chapa, e punha à mostra o pêlo do sovaco, encaracolado e rijo. Entrançara o cabelo em duas grandes tranças negras, que lhe caíam pelos ombros e se perdiam atrás das costas. De olhos fechados, ali se deixava estar, de braços ao alto, a fingir que apanhava o sol da manhã. Outras vezes aparecia-lhe com um cheiro carregado, que só podia querer dizer que por baixo da saia estava peladinha e sem nada.
Luiz José desnorteou-se. Inquieto e dividido, queria acreditar na inocência da rapariga, que era pouco mais do que uma criança, sem nenhuma experiência de vida. Tudo acontecia por mera ilusão da sua cabeça e dos seus sentidos sempre despertos para coisas de sexo. Por outro lado, cada vez que a via em posições provocadoras no corredor, à porta da casa de banho, na marquise, convencia-se que havia ali um jogo de sedução aberto e sem receio. Andou nisto algum tempo, sem saber que fazer. Retinha-se com medo de se enganar e por outro excitava-se mal a sentia. Bastava o cheiro para enlouquecer. Procurou fugir-lhe, evitando ocasiões de contacto. Em lugar de ir para a marquise, saía. Fumava o cigarro no jardim do Matadouro, procurando distrair-se com os miúdos do liceu. Na casa de banho era tal a pressa e a horas tão inesperadas que furava as voltas da moça. Evitava também as jogatanas de cartas com os filhos a que ela tinha por hábito juntar-se. A fuga deixou-o à beira de um nervoso insuportável. Durante o dia, nos afazeres da rua e do serviço, o pensamento fixava-se na rapariga numa obsessão sem descanso; na cama quase não dormia com os sentidos despertos, a imaginação aguçada a delirar com um sem-número de histórias, todas com sexo bravo. Não viu outra solução senão reaproximar-se. Ainda pensou que a menina desta vez fugia amedrontada, mas não. Via-se-lhe no brilho dos olhos satisfação, quando dava com ele na marquise das traseiras a chupar um cigarro pachorrento e manhoso, a olhar vagamente a mentira azul do céu; percebia-se-lhe na cor a excitada palpitação, quando ele se demorava pela casa de banho às horas vulgares, matreiro e à espreita.
Atravessou então Luiz José períodos de loucura. Só pensava em se atirar à rapariga na primeira ocasião em que a apanhasse só. Estudava todas as hipóteses. Precisava de furar a vigilância da mãe, da tia e de Maria Helena. Tinha de despistar todas as possibilidades de ser apanhado. Queria ainda os filhos longe, de modo que pudesse ter nas mãos, com fúria, aquela Geninha de endoidecer. Depois via que tudo aquilo era uma rematada loucura. Voltavam-lhe os receios de estar enganado quanto aos propósitos da gaiata. Se lhe deitasse os dedos, o mais certo era em pânico ela gritar por socorro. Arranjava escândalo com a mãe e acabava tudo na rua, com Helena a queixar-se ao pai do seu comportamento irresponsável. Andou nisto alguns dias, esvaído e doido, até que um dia em que não havia ninguém por perto lhe deitou as mãos às mamas. Foi impulso espontâneo, não planeado, meio desenfreado. Temeu logo que a rapariga desatasse para ali numa berraria. Pôs no gesto a intensidade do sofrido desejo em que andara e que só naquele instante, e a que preço, teria ocasião de se saciar. A miúda em vez de disparatar chegou-lhe com um leve e sabido abanão de ombros o peito todo à mão; pôs cara de alívio, os olhos negros e pestanudos a bailar de exaltação, como quem há muito andava à espera, a rondar, e não via meio da hora chegar.
Luiz José foi incapaz de acrescentar fosse o que fosse ao gesto. Nem um beijo, nem uma carícia, nem uma palavra. Afinal a miúda sabia muito bem o que queria e desde há semanas que andava à espreita. A surpresa paralisou-o e a cena desfez-se. Quando se viu só, ficou radiante. Não cabia em si de alegria. Tinha perspectivas nunca antes sonhadas; a partir dali sabia que Geninha só esperava a ocasião de se encontrar com ele a sós, ansiosa que ele lhe mexesse. Não tinha mais dúvidas. A desenvoltura com que ela lhe atirara para as mãos as mamas deixava-o sem pinta de juízo. O mesmo para o ar descarado de alívio e desafio com que o encarara bem de frente no momento do ataque. Percebia que tinha de ser prudente, porque na casa, que nem era assim tão grande, havia muitos olhos de polícia à espreita. Os filhos, duas crianças distraídas, eram o menos. Pior eram a mãe e a tia, duas olharudas de bigodaça, sempre à procura de escândalos. Havia ainda os olhos de Maria Helena e os da gaiata de serviço, sendo estes os que menos importavam. Resguardou-se nas idas à casa de banho e à marquise para não dar nas vistas. Pensou na melhor estratégia para se encontrar com a rapariga mas sem se dar conta enredou-se logo com ela em jogos de mão por baixo da mesa, no momento em que se sentavam os quatro — ela, ele e os dois filhos — para jogarem as cartas ou as pedras do dominó. Ela poisava-lhe a perna em cima do joelho. A saia descaía e ele sentia por cima do tecido da calça a perna nua da miúda, absorvida no jogo. Toda a atenção parecia concentrada no pano e nas jogadas. Sem pressas, chegava a perna à frente e com os dedos nus do pé tacteava por ali à procura do caralho. Tocava-lhe por fim e pressionava, vitoriosa por encontrá-lo grande e duro. Ao contacto daquela pressão doce e furiosa, logo ele, em contracções rijas e prolongadas, explodia todas as luzes do mundo.
A táctica da mesa, uma mesa de quatro pessoas, protegida a toda a volta por um pano que constituía segurança contra a indiscrição de quem chegasse, tornou-se durante algum tempo o vício dos dois. Exploraram-lhe todas as possibilidades. Ela aparecia sem cuecas, sentava-se a seu lado ou em frente, passava-lhe o pé pelo colo à procura da braguilha ou puxava-lhe para a saia, onde estava tudo ao léu, a mão livre, que Luiz José deixara descair como se a fosse apoiar na anca ou na coxa. Ele mexia-lhe então na pintelhuda farfalha, encostava-lhe os dedos à greta molhada, acariciava-lhe as coxas redondas e polidas, passava-lhe a ponta dos dedos molhados da greta pelo cu. Era uma loucura em que Luiz José se deixava enredar, cada vez mais apaixonado e preso àquela rapazona, que não hesitava em violar todas as regras, em ir além de todas as fronteiras para se lhe entregar. Nunca tivera paixão tão sexual como esta. Maria de Fátima ao pé daquela fogueira era lume brando. Não sonhava agora com outra mulher senão com Geninha, que passou a ser para ele a expressão de toda a sua paixão.
Não tardou que os encontros à mesa fossem curtos. Queriam estar sós, sem as crianças ao lado, um diante do outro. Espremiam-se por se beijar. Arriscaram então novos encontros na marquise, em horas discretas em que os filhos estavam para a escola, Maria Helena no hospital e as velhas metidas na cozinha. Tinham porém de ser comedidos e discretos. Do outro lado dos pátios, ficavam as varandas das traseiras da Rua Actor Taborda. Havia quem viesse esfumaçar à varanda, deitando o olho para os prédios da frente; havia ainda quem viesse estender as roupas nos estendais. Não se podiam beijar nem tão-pouco abraçar. Criaram no entanto um esquema erótico de arrepiar. Ela trazia uma cadeira, que encostava à parede e onde se sentava a fazer de conta que cosia. Ele chegava de óculos, abotoado num roupão, todo nu por baixo, de livro na mão. Voltava-se de costas para as marquises fronteiras, punha ao alto o livro e abria a parte de baixo do roupão. Logo o caralho teso e duro lhe saltava. Ela abocanhava-o discretamente, beijava-o, lambia-o, chupava-o, até que o bichinho lhe explodia na boca. Imperturbável, ele seguia a leitura, voltado para a parede. Quem o visse diria que estava ali um contabilista, burocrata de cara rapada, entradas folgadas nas frontes, lábios finos de papel, cabelo sempre penteado para trás e óculos pesados de míope com armação preta de massa. Se não tivesse aquele ar respeitável de guarda-livros de 30 e poucos anos também passava com aquela armação preta nos olhos por um corredor de automóveis, o que não era assim tão despropositado. Em 1958 ainda ele era colaborador do jornal O Volante, onde estava desde 1955, e foi em 5-6-1957 que a sua fotografia apareceu no jornal como repórter.
Andaram semanas nisto até que se começaram a meter juntos na casa de banho. Escolhiam os momentos mais sossegados. Sempre à espreita desses pequenos intervalos, davam sinal e metiam-se os dois na casa de banho. Era a loucura. Beijavam-se, despiam-se, apalpavam-se sempre atentos ao movimento da casa e a qualquer sinal de perigo. O encontro não durava muito tempo. Bastavam-lhe uns rápidos minutos para fazerem juras de amor e se comerem de beijos. Com esses momentos a sós, escondidos num recanto escuro da casa de banho, a pressão do desejo fez-se mais intensa. Alongaram então as estadias, correram riscos, esqueceram quase a segurança. Já não tinham ouvidos senão um para o outro. A paixão deixava-os cegos para o que estava à roda. Uma das vezes ela quis trancada a sério; estava perdida por se ver furada. Encostada à parede, entregou-se-lhe mas ele não se ajustou à diferença de alturas e, com o espeto nas pernas dela, mexendo-lhe no rabinho, rebentou os fusíveis e ficou às escuras.
Não tardaram a ser descobertos. Quem deu o alarme foi a criada de Maria Helena, uma raparigota chamada Joana, que naquela cadeia de olhos policiais era o ponto de menos perigo. Desconfiou do enlace e pôs-se no escuro à espreita, surpreendida e depois matreira, mordida talvez por um cortante ciúme do desplante da rapariga da casa. Sem que eles notassem que andavam já espiados, confirmou duas ou três vezes o escaldão e percebeu que aquilo era pior do que julgara. Indisposta, decidiu tramá-los. Chamou um dia Maria Helena para lhe dizer um aparte e contou-lhe tudo, sem lhe omitir nada do que ouvira. A rapariga, com 27 anos, não queria acreditar. Rara era a manhã em que não dava uma espetada com Luiz José. Muitas vezes era Manuel de Lima que os vinha arrancar da função, batendo-lhes à porta do quarto. Ela despachava-se então para levar as crianças à escola, deixando o Lima a escrever em cima de uma cómoda alta as críticas das óperas que vira na noite anterior. Estava grávida e nada dissera ainda a Luiz José, hesitante no caminho a tomar. Depois de João Miguel ficara cheia duas vezes e das duas fizera desmanchos sem dizer bebé vai. Sabia-o teimoso nesse ponto. Era contra. Queria todos a verem a luz ou a escuridão do mundo. Nada o horrorizava como um desmancho. Era um pândego que a seu modo amava a vida e nenhum comércio queria com a morte. O azul era aldrabice e o negro era a cor da vida, mas a morte, essa, não tinha cor.
Maria Helena aproveitou o ponto. Seria ele a escolher desta vez. Pôs-lhe tudo em pratos limpos. Sabia o que se passava e estava grávida. Fizera antes dois desmanchos e voltava a fazer outro caso ele quisesse Geninha. Se queria o filho havia de ter juízo e ficar com ela. Luiz José saiu amarrotado da conversa. Sentia-se incapaz de deixar Geninha, a quem estava doidamente ligado. Nunca experimentara tal perturbação carnal. Mas tudo faria para que um filho seu pudesse ver a escuridão da vida. Garantiu que tudo seguiria como dantes. Queria o filho. Por dentro sabia porém que não largava Geninha. Além da paixão carnal, não podia trair a ousadia da gaiata. Esta dera-lhe tudo, confiara nele, desejara-o, batera-se por ele, enfrentara de uma forma exemplar todos os polícias que estavam ao redor. Era um bicho superior que não merecia uma felonia. Nem a Teresa Albuquerque do Amor de Perdição! Queria ter na vida o que lhe cabia por direito: um corpo inteiro sem cortes; rebelava-se contra o valor da geração anterior que atirara ao lixo o mais precioso dom da vida. Tinha pois que aguentar ambos os lados. Receber o filho com uma salva pronta de escarolada alegria e dar a Geninha tudo o que ela merecia.
Percebeu que aguentar um tal ajuste era impossível. Mais tarde ou mais cedo teria de escolher. A situação não tinha outra saída. A escolha recaía em Geninha. Desagradara-se de Helena, que fizera do casamento um trampolim social. Adventícia da burguesia, pouco ou nada havia já em comum entre os dois. Ele a querer libertar-se da educação que tivera; ela a barrar-lhe o caminho. Havia ainda a paixão carnal que tinha por Geninha e que o punha doido. Nada que se parecesse ao sexo enfadonho que tinha com Helena. Para salvar o filho, decidiu adiar o desenlace. Precisava também de proteger a rapariga, evitando-lhe o conflito com a mãe. Estava agora esta ao corrente da situação. A menina negara tudo, falando das intrujices de Joana, mas a vigilância da mãe e da tia reforçou-se, cheia de desconfiança para com o hóspede. Luiz José falou com ela e pediu-lhe um intervalo de sossego para que o filho nascesse e ele pudesse pensar numa saída para o caso.
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