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1.
Dizem que a função que desempenho há vinte e cinco anos — ser vigilante num museu — é completamente inútil; eu não acho, pelo menos não o será completamente, e isto porque quase tudo neste mundo precisa de ser vigiado, pelo menos às vezes. Não me refiro apenas aos presos na prisão, aos doentes no hospital ou aos loucos nos manicómios (tudo gente que tem de ser vigiada), mas também às feras no jardim zoológico — que de alguma forma são vigiadas —, às crianças na escola — que é costume receberem mais vigilância do que educação — e, é claro, aos trabalhadores de qualquer empresa — a quem é frequente encontrar a perder tempo quando não são vigiados. Penso também nos adolescentes que frequentam parques de diversões, onde fazem as suas tropelias se não forem vigiados. E nos leitores das bibliotecas públicas, que têm tendência a apropriar-se dos livros do Estado, sobretudo quando pensam que ninguém está a vigiar. Ou, por fim, nos lactentes nos seus berços, que, se não forem vigiados sem descanso, podem dar os desgostos mais terríveis. O revisor do comboio controla os passageiros do seu comboio, assim como o condutor do autocarro controla os utentes do seu autocarro; as hospedeiras de voo vigiam os passageiros do voo; os pais, os seus filhos; o veterinário, os seus animais; o enfermeiro, os seus pacientes; o marido, a mulher, e esta aquele, e assim sucessivamente num jogo de vigilantes e vigiados que parece não ter fim.
O ser humano tem uma tendência inata — eu diria que é inata — para vigiar, mas não é a mesma coisa vigiar crianças e passageiros, ou visitantes de museu, para dar só alguns exemplos. De entre tudo o que precisa de vigilância neste mundo, assim como de todas as circunstâncias que o homem pode atravessar suscetíveis de serem vigiadas (a infância, a viagem, a visita cultural...), prefiro a de visitante de museus, uma situação com características muito particulares.
Com efeito, o visitante de museus, em geral, não é alguém que se interesse por museus, alguém que se interesse apenas por arte. Como toda a gente sabe, não se vai aos museus por prazer, mas sim para se dizer que se foi lá. Mais ainda: visitar um museu é, em princípio, uma verdadeira experiência funerária. Nem pode ser de outra forma, dado que, num certo sentido, qualquer museu é um cemitério da cultura. Visto assim, os vigilantes somos como os coveiros, e os guias do museu são os pregadores e charlatães das exéquias. Por isso, a atitude dos visitantes de qualquer museu não é muito diferente da dos visitantes dos cemitérios. Melhor, é idêntica: andam de um lado para o outro, compungidos e desorientados, e depois vão-se embora, para não voltarem durante anos. O desassossego que os museus produzem é semelhante ao provocado pelos cemitérios quando os familiares do morto deixam as flores sobre a campa depois do enterro. Temos de reconhecer: as pessoas não têm vontade de ir ao museu; ir ao museu não é um programa agradável para uma manhã de fim de semana. As pessoas que ainda vão aos museus são gente estranha: esquisitos, inadaptados, solitários, doentes... Mas eu sempre me interessei por pessoas assim; eu mesmo sou um inadaptado, um solitário e um doente. Sou irremediavelmente um deles; quem quer que me conheça, e até quem não me conhece, pode testemunhá-lo.
Se é verdade que a cultura ocidental está prestes a morrer, então eu quero estar no lugar da sua morte: o museu. Porque é no museu que as pessoas aprendem a desprezar a cultura — isto é um facto —, até a odiá-la ou, pelo menos, a ser indiferentes a ela, a compreender imediatamente que se trata de um lugar exótico e irrelevante.
Na realidade, as pessoas mais interessadas em arte são, com frequência, as que menos visitam os museus. Pelo que observei nestes últimos vinte e cinco anos ocupado a vigiar algumas salas do Museu dos Expressionistas da minha cidade natal, o visitante habitual não passa a maior parte do tempo da visita a contemplar as obras de arte, mas sim a observar os outros visitantes. O visitante comum costuma muitas vezes olhar para os seus próprios sapatos, bem como para os dos outros e, é claro, para as unhas das suas mãos, as quais, eu apostaria, são muito mais observadas quando se visita um museu do que em qualquer outra circunstância. Se um homem passar diariamente um a dois minutos a olhar para as suas unhas — estabeleçamos esta média —, esse mesmo homem duplicará, e até triplicará, essa marca no dia em que visita um museu, no qual chegará a investir quatro e até cinco minutos a olhar para essas mesmas unhas. Mas, juntamente com as unhas e os sapatos, próprios e alheios, o visitante esporádico também dedica um tempo considerável a olhar para os candeeiros ou para o teto, ou para os estores, ou para o ladrilhos, ou para os bancos — nos quais muito gostaria de se sentar, se estivessem livres —, ou, enfim, para o regulador da temperatura, que é sem dúvida, juntamente com o extintor de incêndios, um dos objetos mais observados.
O tempo que se gasta a ler o que está escrito na cartela do quadro é superior ao usado na contemplação do próprio quadro. Por alguma razão, o que realmente interessa à maioria dos visitantes é saber por quem e quando a pintura foi pintada, muito mais do que a pintura em si, e informar-se sobre as suas dimensões exatas, bem como outros pormenores da tela: materiais utilizados, museu de origem, ano de aquisição... O visitante comum quer saber tudo sobre o quadro que vai ver, mas depois não quer vê-lo, a verdade é essa.
Sim, o mundo é feito de vigilantes e vigiados, e todos somos alguma vez — muitas, regra geral — vigilantes e vigiados. Passei a vida a vigiar obras de arte para que ninguém as roubasse ou danificasse, e a vigiar os visitantes do museu para que não danificassem ou roubassem essas obras que me recomendavam que vigiasse. No entanto, também eu fui vigiado (e não só pelo pequeno senhor Kriegemann, que dava os seus passeiozinhos a todo o comprimento e largura do museu para controlar os colegas e, portanto, também a mim). Além do judeu Kriegemann — a quem, pela vigilância apertada a que me submeteu durante anos, não posso deixar de me referir nestas páginas —, fui vigiado pela minha mulher, que todos os dias abre a mala para verificar se não me esqueci do farnel; e que também me vigia todas as noites, quando durmo, para se certificar de que ainda não morri.
2.
Durante os seus últimos anos de vida, o defunto marido de Gabriele, o chamado vigilante Münter, disse todos os dias à sua mulher — agora a minha — que estava prestes a morrer. Não era de estranhar, pois desde a reforma que o tal Münter tinha passado longos meses internado num hospital. Era um milagre (isto dizia ele, ou isto dizia ela que ele dizia) que ainda continuasse vivo, vigiado dia e noite por um grupo de enfermeiras. Perante estes avisos contínuos sobre a iminência da sua morte — fruto do pânico de Paul Münter de que esse momento ocorresse sem ele estar consciente e, por conseguinte, pouco preparado para essa passagem —, não surpreende que Gabriele pensasse que Paul poderia mesmo morrer no momento mais inoportuno. Por esta razão, a minha Gabriele ficou com o costume de se aproximar todas as noites do seu Paul, quando pensava que ele estava a dormir, para verificar se ele ainda não tinha expirado.
Como Gabriele supusera, e como o seu defunto marido quase tinha desejado, Paul Johannes Münter morreu enquanto dormia na sua cama de grades metálicas. De repente, sem tempo para se preparar para aquela passagem (ele chamava aquele momento assim: «passagem»), o que fora antes de mim o vigilante da sala Klee remexeu-se entre os lençóis numa ligeira convulsão, quase impercetível, e expirou. Aquela que a partir desse momento seria a viúva Münter ouviu com toda a nitidez o último suspiro de Paul. Apesar da sua íntima convicção de que esse fora precisamente o último suspiro, a minha Gabriele, na altura ainda a sua, aproximou o rosto do de Paul Johannes para se certificar da sua morte, como tinha feito, noite após noite, durante os últimos dez anos. Segundo me descreveria um ano depois de estarmos juntos, Gabriele ficou surpreendida com o facto de, tendo estado o seu marido vivo todas noites ao longo dos dez anos em que ela verificara se estava vivo, agora estivesse morto na noite da sua morte, tão temida como anunciada.
Gabriele não conseguiu erradicar comigo o enraizado costume de aproximar o rosto do de Paul, para verificar se ele tinha expirado, apesar de eu ser nove anos mais novo do que ela e não estar doente. Mas é das torturas voluntárias que nós mais dificilmente prescindimos, por isso Gabriele continuou a tratar-me, pelo menos nesse ponto, como se eu fosse «o seu Paul» (ela referia-se assim a ele: «o meu Paul») e não «o seu Alois» (também usava o pronome possessivo quando se referia a mim). Uma prática repetida dia após dia durante dez anos não pode ser eliminada sem mais nem menos, aleguei quando por fim falámos do assunto. No entanto, não tivemos esta conversa quando me apercebi de tudo isto, mas sim depois de longos meses de convivência.
Com medo de que este seu costume me aborrecesse, ou de que eu o quisesse erradicar por considerá-lo doentio ou prejudicial, Gabriele não quis dizer-me nada a este respeito. Por isso, continuou a vigiar clandestinamente o meu sono — ou tentou fazê-lo — desde que fechou a sua casa da Weininger Strasse e veio viver para a minha, que eu não estava disposto a abandonar apesar de ser mais pequena e incómoda do que a sua. Digo que tentou fazê-lo, mas não conseguiu, porque verifiquei imediatamente que, quando eu tinha os olhos fechados — às vezes assim que os fechava —, era frequente ela aproximar-se de mim e ficar silenciosa ao meu lado durante alguns segundos. Assegurava-se de que eu ainda não tinha passado para o outro mundo. Como é natural, eu não sabia na altura que era esse o objetivo daquela proximidade respeitosa. Desejoso de averiguar o motivo da sua atitude, compreendi que não podia abrir os olhos enquanto ela me observava, pois, se o fizesse, ela veria que eu não estava a dormir, e era exatamente isso que eu não queria.
Cheguei a andar obcecado com o facto de a minha mulher aproximar o seu rosto do meu poucos minutos depois de eu fechar os olhos para dormir; e até cheguei a pensar, com alguma ingenuidade, que ela fazia aquilo para cheirar em segredo a minha fragrância — pela qual confessara sentir especial predileção — ou porque queria dar-me um beijo e não se atrevia ou, simplesmente, por sentir vontade de me examinar mais de perto, o que não é assim tão raro entre os que estão apaixonados.
Por fim, a minha curiosidade foi mais forte do que a vontade de manter o sigilo, e uma noite, sem abrir os olhos, exatamente no momento em que ela aproximava o seu rosto do meu, fiz-lhe a pergunta que andava há meses a querer formular.
— O que é que estás a fazer?
Ela demorou a responder-me.
— Nada — disse, finalmente.
Mas eu sabia que «nada» não era a resposta, e que o seu constante escrutínio não podia obedecer a um simples comportamento caprichoso ou casual. No entanto, não quis perguntar mais nada naquela noite.
*
Durante algum tempo, receosa de que eu lhe fizesse outra vez aquela pergunta (o que é que estás a fazer?), Gabriele deixou de aproximar o seu rosto do meu quando eu fechava os olhos e fingia estar a dormir. Foi naquela época, a única da nossa vida em comum em que ela não vigiou os meus sonos —, ou, pelo menos, como tinha feito até então —, que eu me apercebi de quanto gostava das atenções e, em última análise, da vigilância com que a minha mulher me brindava. Como sempre, assim que me deitava, fechava os olhos para me inebriar com o cheiro dos lençóis (cujo perfume, quando estão limpos, prefiro a qualquer outro), mas ela — ai! — não se aproximava de mim. Esta sua distância deixava-me numa solidão até essa altura desconhecida. Porque ninguém tinha vigiado o meu sono desde a infância, pelo que me tinha esquecido do que significava vermo-nos privados desta atenção amorosa e solícita. Foi assim que comecei a sentir a falta das noites em que Gabriele aproximava o seu rosto do meu (eu conseguia ouvir a sua respiração, sentir o seu calor a acariciar a minha pele) e que cheguei a compreender que desejava ardentemente que ela vigiasse o meu sono e se interrogasse, como é próprio interrogarmo-nos quando há amor, se o meu coração continuava a bater.
Naquelas longas e desoladas noites de espera, sem o rosto de Gabriele junto ao meu, respirei e ressonei ruidosamente para simular que o sono me vencera e assim apagar qualquer dúvida que ela pudesse ter. Acariciava o desejo secreto de algum dia, alguma noite, ela voltar a aproximar-se de mim para me vigiar com a sua delicadeza habitual. Confiava que o amor que ela sentia por mim fosse maior do que o receio de uma nova censura da minha parte. Os factos eram incontestáveis: prudente como nunca até então, quase desconfiada, Gabriele não me vigiava de tão perto, o que me fez sentir como um órfão naquela escuridão expectante.
Naquelas trevas, sem ousar abrir os olhos — não fosse ela descobrir o meu fingimento —, imaginava Gabriele em camisa de dormir, a andar de um lado para o outro do quarto, a fechar as cortinas, a afofar a almofada, a deixar os chinelos no tapete, um ao lado do outro, a abrir a cama e a humedecer os lábios com um golinho de água. Imaginava os seus movimentos devido aos sons, quase inaudíveis, que chegavam até mim. E, apesar de eu lhe dizer sem palavras «Vem», ela nunca vinha; ou talvez sim, mas sem me presentear com o consolo da sua respiração próxima e quente na minha pele. É claro que eu lhe podia ter dito: «Não me importo que me vigies de noite.» Ou até mesmo mais abertamente: «Gosto de que te certifiques se continuo neste mundo.» Mas admitir uma coisa assim era como ver-me privado do prazer que me proporcionava o segredo da minha vigília.
Durante aquelas expectativas eternas, com os olhos fechados, à espera da proximidade clandestina da minha mulher, pensei muito em Paul, o primeiro marido de Gabriele. Talvez ele também estivesse acordado quando ela o vigiava, dizia eu para mim mesmo, e esforçava-me por reprimir o sorriso que este pensamento desenhava nos meus lábios. Deve ter sido assim: também Paul, como eu, terá ouvido a respiração trémula da sua mulher; também ele, como eu, terá sentido a carícia morna dessa respiração feminina e terá fingido estar a dormir para se certificar, através deste pequeno gesto, de que era amado.
É agradável saber que alguém vela por nós; é bonito constatar que algum ser humano manterá os olhos abertos quando nós os fecharmos; é reconfortante ter a certeza de que não vamos estar totalmente sozinhos na hora do último suspiro.
Na noite em que Gabriele voltou a aproximar o seu rosto do meu (ainda não tão perto como outrora, mas certamente muito mais do que nas semanas anteriores), tive a certeza de que aquela mulher gostava de mim como ninguém. Nessa noite tão doce (e as seguintes foram-no mais, pois ela foi-se aproximando de mim pouco a pouco, até chegar à proximidade desejada), tive a certeza de que a vida era justa comigo ao oferecer-me o mesmo que eu lhe tinha dado, porque durante vinte e cinco anos eu vigiara os outros: agora, por fim, era a mim que vigiavam. Com o zelo que dá o amor ao nosso ofício, durante vinte e cinco anos vigiara os quadros num museu; agora, já quase um velho, era eu o vigiado com a abnegação característica que só se pode oferecer ao ser amado.
Foi naquele preciso momento, com os olhos fechados e com a respiração de Gabriele ainda quente na minha pele, que decidi escrever estas memórias. Poucos dias antes, num dos bancos do Schwarzenberg — o jardim romântico da minha cidade natal, de onde se divisa com toda a nitidez uma das fachadas do museu —, ela tinha-me dito: «Tens de contar tudo isto que viveste»; comentário a que eu sorrira com indulgência, como quem tem uma sabedoria demasiado doméstica, porventura incomunicável. Sorrira vaidoso, pois alguém me dizia pela primeira vez com aquelas poucas palavras que a minha vida, ainda que modesta, podia aspirar a uma certa posteridade. «Tens de contar tudo isto», tinha-me dito Gabriele depois de ouvir as minhas histórias tão quotidianas e insignificantes. E foi assim que comecei a ver que era grande o que até então considerara pequeno.
Ela vigiava-me de noite para saber se eu não tinha morrido; eu escrevia durante o dia para que o mundo soubesse que eu tinha vivido. Agora já sei que só escrevemos para dizer que estamos vivos; sei que escrevemos para que nalgum lugar da Terra alguém abra os nossos livros à noite e sinta a nossa respiração perto, como uma brisa morna na pele.
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