O primeiro volume, que inclui as suas primeiras coletâneas de contos – “Tanta Gente, Mariana” (1959) e “As Palavras Poupadas” (1961), esta última vencedora do Prémio Camilo Castelo Branco -, chegou hoje às livrarias.
A aposta na obra desta autora é da Almedina, que, através da chancela Minotauro, se prepara para lançar, até ao final do próximo ano, seis volumes que incluem a obra completa de Maria Judite de Carvalho (1921-1998), considerada pela crítica uma das escritoras mais proeminentes da literatura nacional do século XX, não obstante ser pouco conhecida do público em geral.
Apelidada por Agustina Bessa-Luís como “flor discreta da nossa literatura”, Maria Judite de Carvalho, também jornalista, dedicou trinta anos da sua vida à carreira literária, durante a qual publicou 13 livros, privilegiando as novelas, as crónicas e os contos, e escreveu sobre a solidão, histórias sombrias da vida quotidiana que observava.
A editora apercebeu-se de que a escritora “já estava na sombra há demasiado tempo”, e aproveitou o facto de alguns contos terem surgido nos manuais do ensino secundário, embora a maioria continue fora do mercado e das livrarias há muito tempo.
“Decidimos que seria a altura ideal, 20 anos após a sua morte, para fazer renascer a sua obra, e para apresentá-la a esta nova geração de leitores, que começa a ler Maria Judite de Carvalho na escola e que nas livrarias não iria ter acesso a toda a sua escrita em vida, portanto estamos a querer juntar toda a sua obra em seis volumes”, disse à Lusa Sara Lutas, editora da Almedina.
A editora entrou em contacto com Isabel Fraga, filha de Maria Judite de Carvalho e do também escritor Urbano Tavares Rodrigues, que lhe apresentou toda a obra da mãe.
Dona de uma personalidade “recatada” e “zelosa da sua privacidade”, Maria Judite de Carvalho nunca gostou de se expor, e “a obra dela sempre falou por si mesma”, explica Sara Lutas, que decidiu, por isso, respeitar essa vontade e não dar grande destaque à figura da escritora, que é apresentada na badana dos livros “de forma discreta e bastante lírica”.
A obra vai ser publicada cronologicamente, e a autora vai “envelhecendo” nas fotografias escolhidas e nos retratos que ilustram as capas e os separadores dos livros, revelando outra faceta da escritora: o desenho e a pintura.
“As capas, em vez de ter em grande plano a autora, são quadros dela, que também pintava, e decidimos dar uma roupagem diferente às obras dela através de uma Maria de Judite de Carvalho pintora”, explica Sara Lutas.
O próprio marido de Maria Judite de Carvalho conhecia o seu jeito para o desenho, antes de descobrir o seu talento para a escrita, o que aconteceu quando ela lhe leu “Tanta Gente Mariana”.
Inês Fraga, neta da autora, recorda que Urbano Tavares Rodrigues “era um leitor extremamente generoso, hiperbólico no elogio e que amava profundamente a literatura”, e que foi graças à leitura dele que Maria Judite de Carvalho publicou, porque “ele disse ‘este livro é maravilhoso, tu tens que publicar isto, isto é genial'”.
Este episódio reflete aquilo que foi a personalidade da própria Maria Judite de Carvalho, “uma pessoa e autora quase etérea”.
“Era fácil, numa era em que cada vez mais a escrita está ligada à promoção da imagem do indivíduo – para além do que escreve, do indivíduo que escreve -, que com uma personagem tão etérea, a própria obra se começasse a desmaterializar, e creio que foi por isso, embora tenha sido profundamente reconhecida no seu tempo, que não chegou ao grande publico”, afirma.
A projeção de Urbano Tavares Rodrigues e o recato a que se remetia Maria Judite de Carvalho têm levado a que se julgue que a autora teria sido sempre colocada na sombra do marido, o que a família nega.
Não só foi sempre o seu primeiro leitor — a filha era a segunda –, como foi “o grande promotor da obra dela”, e embora possa ter ficado conhecida como “a mulher do Urbano”, isso “não influiu na projeção que teria ou não”, porque a verdade é que Maria Judite de Carvalho “foi educada para a discrição”, conta a neta.
Maria Judite de Carvalho foi educada por três tias, numa “atmosfera escura e sombria”, como descreveu certa vez Urbano Tavares Rodrigues.
Essas tias eram “mulheres muito sensatas e antiquadas”, e quando Maria Judite de Carvalho ponderou ir para Belas Artes, a ideia foi afastada, porque “uma mulher séria não ia para Belas Artes, ia para Letras”, afirma Inês Fraga, explicando que o gosto e a prática do desenho e da pintura ficaram sempre, mas como um prazer e um passatempo, já que sempre os desvalorizou em termos de qualidade.
No entanto, estes desenhos que fazia, em circunstâncias tão banais como a conversar ou a falar ao telefone, refletiam o seu universo interior que era o mesmo que projetou na escrita, o universo feminino, povoado por mulheres “muito diferentes e muito iguais nessa diferença”.
“As mulheres nos quadros são uma outra abordagem às personagens femininas e à sua imobilidade. Portanto, na literatura, as mulheres da minha avó, da Maria Judite de Carvalho, surgem fechadas naqueles retângulos que são as janelas que as protegem do exterior, nas suas casas, nessas redomas, nos seus pequenos castelos, que são as suas casas, e aqui aparecem também pautadas pela imobilidade, estáticas, dentro daqueles retângulos que são as molduras dos quadros ou até a própria folha de papel”.
A editora Sara Lutas especifica, por sua vez, que as temáticas tratadas, “a forma como as suas personagens pensam e agem na vida teriam sempre esta postura de reclusão e de silêncio”.
A escrita é “acutilante”, “muito atenta à sua realidade, que permanece”, e “convoca imenso o leitor, porque só nos diz até um determinado ponto, o outro tem de ser o leitor a desvendar”, descreve Inês Fraga.
Outras singularidades da escrita de Maria Judite de Carvalho são a atenção ao pormenor do quotidiano e “as personagens, para as quais se calhar não olharíamos duas vezes, não só personagens femininas, mas personagens urbanas, as mais diversas, desde o homem que trabalha na loja, ao que abre a porta de um hotel”.
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