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A minha mulher é um corpo defunto, uma porção decomposta da massa humana, um bocado de gente numa cadeira de baloiço, a baloiçar; uma ideia repetida que se arrasta num balanço consistente, relógio de pêndulo, certinho, a bater; é uma forma putrefacta de olhos cinzentos, vítreos, especados, botões de rosa a abrirem e a fecharem, pétalas pardas que caem. A minha mulher; a boca fria, gélida. Tem frio. Ponho-lhe uma manta sobre as pernas; o radiadorzinho de ferro; os joelhos macerados; aqueço-a. Tem frio. Tanto frio. Tão corpo velho, macilento, moído, tão corpo morto. O rosto dantes papudo agora covas; chupada, drogada; pós, venenos e peçonhas várias; do ouvido um líquido; substâncias medicamentosas; não mastiga e engole; e, ainda assim, o pêndulo continua, certo certinho a bater, uniforme e catártico, nem de corda, nem de relógio, apenas pêndulo, corpo rígido que gira em torno dum ponto fixo, um complexo sistema cronográfico a medir o tempo e a conservar a unidade, seguindo. As mãos depostas, cruzadas sobre os joelhos; por vezes, estico-lhe os braços para que não faça trombos, um pouco de ginástica, mas os membros pesados, inamovíveis, não se mexem, porque os trombos, porque a obstrução dos vasos, porque como pétalas que caem para um pratinho recetáculo. Os coágulos; mastiga e não engole; os membros pesados; corpo morto e pesado. Estico-lhe os pés
— Anda
não pode, a cadeira de baloiço a chiar; a cadeira de baloiço, a baloiçar.
Tocam os relógios, a medirem intervalos; uma badalada. São três relógios nesta casa e dois estão atrasados em relação ao primeiro, mas se tocam de conjunto o primeiro adiantado em relação aos outros dois. São já nove as badaladas e é hora da ginástica, os bracinhos esticados ao ar, a cadeira a chiar, baloiça; então, as pétalas a sujarem porque para fora do pratinho recetáculo. Tenho de limpar e cuidar dos braços ao ar. Varro e estico, ora para cima ora para baixo, ora para junto do pratinho do vaso. Dois relógios atrasados, um dos três adiantado. São nove horas. Uma cadeira de baloiço como um barquinho
(barquinho, barco, barqueta, a nau catrineta)
e estico-lhe também os pés
— Anda
não pode. Nesta posição e os raios de sol, as covinhas papudas
(nunca teve covinhas)
mais junto da janela
— Posso chegar-te para mais junto da janela
onde os arrulhos, um som pela frestazinha; também as rolas de olhos vítreos e cinzentos; os ninhos; novamente as rolas a arrulharem, novamente os raios de sol, o som por uma frestazinha; se um ventinho
(se mais um diminutivo)
e nas covas papudas quase descubro as covinhas a despontarem em dias assim, de sol. Depois, uma mantinha
(outro)
porque os matizes cobertos pelos caixotes desorganizados que se erguem como prédios e os prédios como caixotes, encavalitados; as portas todas iguais, as aberturas todas iguais; a fuligem das chaminés; e janelas invulgarmente pequenas para tetos altos, caixotes e caixotes, vulgares. São nove horas e a luz do sol das nove às onze; depois caixotes, depois encavalitados, depois prédios
— Nunca deveríamos ter comprado esta casa.
De resto, uma sombra fria, uns lábios duma boca gelada, e eu só com uma manta para a minha mulher; o radiadorzinho de ferro; a medir quatro passadas do baloiço até ao quarto deste tê qualquer coisa
o baloiço é a sala toda
— Não vos fica caro, por este preço não encontram melhor
(repito:
— Nunca deveríamos ter comprado esta casa).
Se cansado, faço seis passadas; subi quatro andares; o elevador avariado; e no quarto
— Vem deitar-te
mas não pode, não consegue; e eu estendido na cama; as marcas da humidade, o barulho dos automóveis pela frestazinha da janela do quarto
— Silvina, vem deitar-te, filha, anda, meu amor.
E não vem.
O sol magro por duas horas, das nove às onze, não sei no inverno apenas das oito às nove porque depois mudam a hora, mas, enquanto isso, enquanto não lhe leva o sol as covas papudas, o rosto aquecido, a carne pútrida mais morna, a pele tépida ligeiramente mais brilhante
— Aquece-te, meu amor, tens a cara fria
mas se uma manta para o rosto frio e não covinhas. Está tão fria.
A minha Silvina é um corpo sonolento que habita esta casa numa saleta que dá por tardoz, ao passo que eu estendido no quarto a observar as rachas da humidade, a pensar nos preparos para a ginástica da manhã, os exercícios, a física dum pêndulo, dum corpo rígido que gira em torno dum ponto fixo; os bracinhos ao ar; eu a varrer; o vaso, as pétalas, os botões de rosa como os bracinhos, abrem e fecham, e a minha mulher aquiescida, um vitral de matizes das nove às onze, não sei se também no inverno (porque depois mudam a hora; porque depois sombra).
Tocam os pêndulos, dois atrasados, um adiantado. A minha mulher um ar brutal: morto, pesado, tão velho morto e pesado, custa a levantar; os membros ora para cima ora para baixo se não trombos (já disse já disse), e às onze horas, inverno verão ou estação, já de novo fria, de novo escuro. A luz terminada pelos caixotes, os prédios corridos, as persianas de baque, e ainda as rolas a arrulharem porque não têm relógio
(bate aos sessenta minutos a cada hora, um adiantado a cada hora).
Persistem as voltas no baloiço; as danças paradas.
A minha mulher é um corpo que dança imobilizado, roda parado no negrume concedido pelas silhuetas dos caixotes que tapam o sol, onde só às vezes se alegra por um candeeiro vagaroso como as horas que chegam atrasadas, aceso apenas para não deixar de a ver, e todavia ela aqui, na saleta, parada, como numa dança amorfa, enquanto eu e as rachas da humidade, enquanto o elevador, o contador elétrico, enquanto não das nove às onze horas quando não inverno, um borrão de sombra na parede, e se um pouco de estuque, um pouco de cal, melhor a mancha da sua fisionomia, mais definida, a casa mais quente, as paredes mais límpidas, o seu rosto mais papudo, os olhos menos cinzentos, mais dantes. Porém eu aqui, a ter de ter-me aqui, sem poder ausentar-me, porque se tem fome, se tem sono, se tem sujidades, se tem que tem que eu sempre aqui. Mas não me queixo. Não estou a queixar-me. Apenas digo que se por umas horas me ausentasse compunha as rachas da humidade
— A dona Silvina não diz nada, não acha que vale o preço?
— Não sei, o que achas, António?
Eram apenas três ou quatro horas do nosso tempo, mas melhor que fique aqui, já vão sendo horas da ginástica, horas de comer, horas. Já não vou
(e ela:) — Vem deitar-te.
Amanhã o dia amanhece. É sempre assim; que maçada. E pelas nove o sol a raiar nas suas covinhas, é quando fica mais quente, ainda que morna mais quente, e deixa esse corpo gelado e frio, moribundo e macilento, em que um beijo e um abraço tão menos do que as nossas horas, tão menos do que o nosso tempo. Só queria arranjar as rachas da humidade. Vou ficando. A minha Silvina, menos do que um corpo adiado ou do que uns joelhos macerados, menos do que as mãos cruzadas sobre uma manta a tocarem pêndulos que batem certo, posta no seu ar, assim: um retrato.
A minha mulher é um corpo acabado, um pedaço desfeito que às onze horas tem a carne já menos morna, e, depois, não é um candeeiro vagaroso que a aquece, a manta que lá fica, o radiadorzinho de ferro, o contador elétrico; e eu estirado na cama a pensar na meia hora que demoro a comprar o estuque, uma lata de tinta, a trincha a pintar, os ombros despidos, a manta caída, o xaile lilás. Puxei um pouco, puxei um pouco mais, puxei e um fio de linha, um buraquinho duma agulha, as suas orelhas mucosas; do ouvido continua o líquido.
— Queres que te cubra, meu amor?
Se uma manta para o rosto quando não há horas de sol, quando já passa das onze, e mesmo que para lá do estuque, da lata de tinta e da trincha, para lá da sombra desgrenhada, se eu e a minha mulher apenas mais meia hora, um tempo do nosso tempo
— Aquece-te, não te quero ao frio
— Bom, se os senhores concordarem, deixo aqui a papelada
servindo um cálice do nosso armário onde as nossas louças, mais duas passadas até à cozinha, um tê um mais qualquer coisa, também por tardoz, e dois cálices, sirvo dois, sirvo dois golezinhos
— Anda, ajuda a aquecer-te
mastiga e engole.
Também tenho frio, não como a minha Silvina, mas tenho frio, a humidade a abrir rachas; a minha mulher pesada e morta
— Meu amor
dois cálices ajudam a aquecer, e vento neste louceiro, este armário do tempo que não tenho, da meia hora do nosso tempo, porque não quero deixar de ouvir a sua cadeira a chiar, a baloiçar, onde a minha mulher, corpo rígido que gira em torno dum ponto fixo (é um pêndulo).
Varro, arredo as pétalas enquanto as janelas se fecham, as persianas corridas, o barulho dos automóveis
apita a catrineta
e o sol põe-se enquanto não voltam a ser nove horas a amanhecerem, enquanto baloiça, enquanto o tempo é o duma mulher disposta como morta na saleta duma casa rodeada de caixotes, a tocar como pêndulo dum relógio que não toca senão das nove às onze horas.
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