Indo direto ao assunto: para mim, o mundo, no que aos filmes diz respeito, mudou no início do verão de 1999. E nada teve que ver com o facto de meses antes ter assistido à vitória gorda de A Paixão de Shakespeare nos Óscares com o Resgate do Soldado Ryan na contenda ou à ameaça do bug de 2000 prometer acabar com a sociedade que não chegou a causar uma pandemia informática digital. O momento está relacionado, sim, com a estreia de The Matrix.
Há um antes e um depois do filme. Ali, tudo serve de alimento aos globos oculares e à alma: história, enredo, efeitos visuais, personagens de inúmeras camadas, banda sonora capaz de ainda hoje estar mais fresca do que uma alface 20 anos depois de ser lançada. Ou seja, roubado desavergonhadamente a frase a este artigo da Vox, a sensação com que fiquei… foi como se nenhum outro filme tivesse existido até então.
Mas estou longe de estar num grupo restrito. Inúmeros realizadores sentiram igual apelo. Darren Aronofsky (Cisne Negro, A Vida Não É um Sonho) explicou que as Wachowskis pegaram nas melhores ideias de ficção científica do século XX e fizeram uma "sandes cultural que todos no planeta devoram", Quentin Tarantino colocou o filme na sua lista de filmes favoritos de 1992 a 2009, James Cameron (Avatar, O Exterminador Implacável) considerou o filme como uma lufada de ar fresco de ficção científica, Christopher Nolan descreveu-o como sendo um fenómeno mainstream que fez as pensar se vivíamos num mundo real ou numa simulação.
Não é que sinta que o filme de grandes apoios ou apresentações, mas fica sempre bem dar conta que quem percebe do ofício também gostou e que não é só a opinião de um marmelo que escreve coisas. No entanto, antes de se aprofundar o assunto, duas questões:
Porque estou a ler isto?
Bom, para além do óbvio requinte na hora de escolher leituras / newsletters, porque há um novo Matrix nas salas de cinema portuguesas (e no mundo). É o quarto filme da saga, dá pelo nome de Resurrections e na Acho Que Vais Gostar Disto achámos engraçado teres uma ideia do que significou em 1999 a estreia do original que deu origem à trilogia. Numa espécie de vénia antes da ressurreição.
Porquê um quarto filme?
De acordo com a própria realizadora e argumentista, porque estava a passar por um período de luto devido à morte dos pais e a maneira de lidar com todo o processo foi materializar uma ideia que se lhe invadiu a mente: a do regresso de Neo e Trinity.
"O meu cérebro encontra sempre de maneira de chegar à minha imaginação e uma noite, enquanto estava a chorar e não conseguia dormir, de repente, o meu cérebro explodiu toda esta história", explicou Lana Wachowski durante o festival Literário Internacional de Berlin.
No entanto, ao contrário da trilogia inicial, que realizou e escreveu com a irmã Lilly, a nova história nasce a uma só mente porque "ela queria processar a sua dor de outra maneira" e encontrava-se a percorrer "um caminho diferente" do seu.
Noutra nota, Lana confirmou também (noutra entrevista, em 2020) aquilo que a jornalista Emily VanDerWerff (escreve para a Vox, The Guardian, Slant, entre outros) já vinha a sublinhar nos seus ensaios e artigos há vários anos: Matrix trata a experiência do que é ser transgénero. "Era a intenção original, mas o mundo não estava totalmente preparado", defendia VanDerWerff, ela própria uma mulher trans. Agora, sabemos que deixou de ser teoria e a intenção foi confirmada. Matrix é uma metáfora-tans. No entanto, foi mal interpretado e está a servir como alma de arremesso da extrema-direita.
Lana Wachowski assumiu-se como mulher trans em 2010 (embora os rumores sobre sua identidade de género já venham desde o lançamento de Matrix Reloaded em 2003, altura em que a imprensa não foi particularmente cuidadosa nem amigável com essa informação). Já a irmã, Lilly Wachowski, só se assumiu publicamente como mulher trans mais tarde, em 2016.
A realidade de Matrix
O mundo sagaz de Matrix bebe de várias fontes que vão do cyberpunk de William Gibson (que chegou a dizer que Neo era a sua personagem favorita de ficção científica), à anime japonesa, à filosofia, religião, amor, crença. Tudo isto misturado num caldeirão de ideias que transportou os millennials mais antigos para um Mundo Novo por descobrir. No fundo, à época, parece que era demasiado bom para sequer ser verdade. E, acima de tudo o resto, durante 139 minutos, falou comigo e criou um elo com este que vos escreve como nenhum outro.
Só que falou só um pouco mais tarde. Longe de ser um prodígio com apetrecho para a intelectualidade, aos 11, 12 anos de idade, altura em que saiu o filme, aquilo que ficou na cabeça ao primeiro visionamento são os efeitos especiais, o espetro técnico do filme, a vontade de virar pirata da internet e em saber mais sobre computadores porque pelos vistos essa sabedoria vai fazer com que uma hacker roliça se apaixone por nós à boleia de uma profecia. A outra componente ("O que é real?", "Conhece-te a ti mesmo") só atracou no cérebro depois quando saíram as sequelas.
A verdade é que The Matrix conseguiu fazer aquilo que os meus professores — que muito se esforçaram — não conseguiram: aumentar o interesse sobre a Alegoria da Caverna de Platão, as interrogações e reflexões de Sócrates, o Diabo pouco fiável de Descartes, ou a ler as gordas de "Simulacros e Simulação" de Jean Baudrillard. Tudo isto eram temas fascinantes para uma mente pouco dada ao exercício de leitura deste estilo. Pena foi ser preciso um filme para o mostrar...
Se era algo inteiramente novo? Não necessariamente. Basta recordar as palavras de Aranosky no início do artigo. Até porque o fascínio e reconhecimento por outros clássicos da bacia cinematográfica existem, a apreciação do culto / legado de realizadores ligados à ficção científica como James Cameron, Spielberg, Scott ou Kubrick jamais será esquecida. Só que o filme das Wachowskis conseguiu juntar várias nuances destes mestres todos num estilo único muito próprio. A coreografia de Yuen Woo-Ping que faz tributo às artes marciais e cultura de Hong Kong, as roupas de cabedal de Kym Barrett que há mais de 20 anos tentou imaginar o mundo em que hoje vivemos são adornos que ajudam a completar algo por si só muito mágico.
Há quem escreva que a sensação de ver The Matrix em 1999 foi "quase avassaladora". E eu tendo a concordar. Aquilo que parece não ter nada em comum — filosofia, anime, ação, inteligência artificial, homem vs máquina, consumismo — mistura-se e encaixa na perfeição. Pela voz de Zack de la Rocha, dos Rage Against The Machine, o filme pede à audiência que acorde. A sua mensagem não está escondida, é um alerta bem gigante, uma espécie de quo vadis à sociedade de consumo que dura mais de duas horas.
Se falei pouco do enredo? Sim, porque 20 anos depois parece um pouco redundante escrever que Keanu Reeves é um hacker (na Internet vinga pelo alias Neo), que acaba por descobrir que o mundo em que vive não é real — ele e o resto da humanidade vivem numa simulação chamada Matrix, alimentada pela crueldade das máquinas. Pelo meio, escolhe o comprimido vermelho, aprende kung fu e a coloca a física em xeque com o bullet-time, uma das cenas espetaculares do cinema até então. O resto, como se costuma dizer, é história. Neste caso, do Messias do sci-fi.
Pois, está bem. Mas e as sequelas?
Há algo que os aficionados pela 7.ª Arte parecem estar de acordo: The Matrix é já um clássico da ficção científica cibernética. Mais discutível, todavia, é o consenso sobre as sequelas: The Matrix Reloaded e Revolutions. Os filmes foram rodados em simultâneo e estrearam nos cinemas com uma indiferença de seis meses, quatro anos depois do original, em 2003. Na altura, elogiou-se a ação e desancou-se o guião e sua história. Hoje, parece que já há quem olhe de maneira diferente para as sequelas e se chegue à conclusão que talvez tenha sido um pouco injusto considerar que eram ocos de alma.
É neste sentido que as sequelas do Matrix sofrem um pouco do mal das prequelas de Star Wars (Episódios I, II e III): há um pesado (e apaixonado) legado que as antecede, em que se utilizam todas as novas técnicas digitais que o cinema do início dos anos 2000 tinha para oferecer, mas que ainda assim não conseguem ter o cerne da história original. Há o espetáculo, não há o busílis que apaixonou os fãs. Ou, se há, não de forma tão eloquente e unificadora. No caso de Reloaded e Revolutions, o fascínio acerbado das Wachowskis pela vertente filosófica torna as sequelas n’algo que o primeiro Matrix nunca foi: um pretensioso espalhafato que oferece mais dúvidas do que respostas. Isto, pelo menos, na opinião dos seus críticos.
Em suma, independentemente do que se ache ou deixe de achar, esta é uma ótima oportunidade para explorar novamente os filmes. Com o quarto episódio da saga, The Matrix Resurrections, na calha, dar uma nova espreitadela pode permitir escrutinar algo que pode ter passado (ou confirmar a certeza obtida no primeiro visionamento). Revolutions é certamente o mais fraquinho dos três, embora sem obséquio nem bocejo dê um autêntico frenesim de ação de início ao fim que permite passar um tempo agradável à frente da televisão (ou computador). Reloaded é melhor do que se toma. Não traz a frescura do primeiro, mas certamente que bebe muito dele e não descura em termos do sabor original, funcionamento como uma espécie de cola zero. De início não sabe a grande coisa e depois é capaz de ser a escolha de eleição.
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The Matrix Resurrections estreou a 22 de dezembro em Portugal e as críticas internacionais e nacionais (há quem escreva que a "nostalgia virtual não puxa carroça" e há quem diga que a pirueta de Lana Wachowski "prova que, afinal, sim", vale a pena existir um quarto filme) já andam circulam nas interwebs.
Metacritic: 64% (críticos) em 100 | 4 em 10 (público)
Rotten Tomatoes: 69% | Audience score 69%
IMdB: 6.1
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