AS ÚLTIMAS REUNIÕES DAS ASSEMBLEIAS DO MFA E SUAS DECISÕES

Como este e outros assuntos exigiam a convocação das Assembleias dos ramos e do MFA e dada a agitação política que se vivia em Lisboa propus a Costa Gomes que elas fossem realizadas numa das minhas unidades, na Escola Prática de Engenharia, localizada em Tancos.

Estas reuniões realizaram-se no princípio de Setembro e terminaram com o parecer de não ser aceite a nomeação de Vasco Gonçalves para o cargo de CEMGFA, a manutenção no CR dos conselheiros “suspensos”, o afastamento do brigadeiro graduado Corvacho do comando da Região Militar do Norte (que posteriormente seria substituído pelo brigadeiro Pires Veloso), manutenção dos brigadeiros Franco Charais e Pezarat Correia no comando das suas Regiões Militares, o afastamento dos conselheiros Ferreira de Macedo, Pinto Soares e Ferreira de Sousa (Ex), Miguel Judas e Ramiro Correia (ARM), Pereira Pinto, Costa Martins e Graça e Cunha (FA) e o fim do Triunvirato.

Devo realçar a importância da presença e intervenções do Capitão Vasco Lourenço em todas as reuniões do CR, das Assembleias do MFA e do Exército. O seu espírito combativo, prestígio junto dos militares do MFA e bom senso foram fundamentais para evitar desvios do disposto no Programa do MFA

— Suspenso do CR em 11 de Agosto e não foi afastado do comando da RMC? Não só tal não aconteceu como me parece que se movia com algum à vontade nos campos político e militar.

Tinha assumido a dupla missão de garantir o cumprimento do Programa do MFA e comandar uma RM que tinha de ser colocada em condições de o fazer cumprir.

Actuei naqueles dois campos sempre com o maior cuidado, ponderação, compreensão dos novos acontecimentos políticos, nunca me furtando a qualquer diálogo com civis ou militares. Entendia que, por exemplo, a disciplina militar não deveria ser exclusivamente imposta, mas consentida, que o êxito da missão do MFA assentava numas FA’s conscientemente disciplinadas. De facto consegui adquirir algum respeito na sociedade em que me movia, o que me permitiu aceder, com algum à vontade, aos novos meios políticos e militares procurando, por feitio, furtar-me sempre às luzes da ribalta. As minhas intervenções, na comunicação social, só surgiam quando necessárias ao apoio da revolução e, nunca, para me promover política ou militarmente.

Adquiri, de facto, uma “força” que me permitia actuar, aparentemente, em “roda livre”. 10 dias depois da tomada de posse do 5o Governo, 10 capitães, representantes de 10 unidades da RMN, apoiantes do documento dos 9, reagindo a posições políticas do seu Comandante da RMN, apresentaram-se no meu Quartel-General, em Coimbra, colocando-se sob o meu comando. Corvacho, na sua ânsia de obter informações, sobre a actividade da extrema-direita no norte do país, tinha cometido o erro de manter, na secção de informações do seu comando, militantes do PCP, atitude com a qual os capitães discordavam. E, nesse mesmo mês, dadas as confusões com os desaparecimentos de armas para serem distribuídas a civis, consegui que fossem retiradas todas as culatras das armas ligeiras, existentes no Depósito de Armas do Exército, que foram guardadas numa das unidades da minha Região Militar.

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Mas os problemas vão continuar, com a indigitação de Pinheiro de Azevedo para a formação do VI Governo Provisório e a manutenção, pelo PR, da decisão da nomeação de Vasco Gonçalves para o cargo de CEMGFA. De Coimbra telefonei a Pinheiro de Azevedo e perguntei-lhe se não tinha receio de assumir a direcção do Governo, sendo CEMGFA o general Vasco Gonçalves, dadas as decisões da Assembleia do MFA e as contestações de militares e de políticos. Reagiu mandando-me a Coimbra um helicóptero, para eu comparecer numa reunião que ia ter com Costa Gomes e Vasco Gonçalves.

O helicóptero pousou num dos pátios interiores do palácio de Belém, dirigi-me imediatamente para a reunião, na qual frisei as tomadas de posições das Assembleias Militares, contra a nomeação de Vasco Gonçalves para CEMGFA e as contestações políticas e militares que lhe sucederiam. Costa Gomes desistiu da nomeação, mantendo a acumulação dos cargos de PR e CEMGFA, decisão que considero ter sido muito importante porque só ele reunia as melhores condições para “dominar” os acontecimentos políticos e militares que ocorreram nos meses seguintes.

— Vou ter de o interromper porque fico com a impressão de que tenta “branquear” os acontecimentos militares e políticos que viveu. As fracturas, entre militares do MFA, pareciam ser mais profundas e não podemos ignorar as tentativas da imposição do comunismo, no nosso país, com o apoio de militares do MFA.

Começo por refutar a sua última afirmação pois, quanto a mim, essa tentativa nunca se verificou. Verificou-se, sim, um permanente “namoro” de todos os partidos para adquirirem vantagens políticas. Não nego que ela tenha existido nos pensamentos e desejos de uma pequena parte da nossa população e, possivelmente, de militares, mas essa parte tinha-se revelado, nas eleições do mês de Abril, como representando apenas 12,5% dos eleitores. Eleição que ocorreu com cerca de 8% de abstencionistas, a percentagem mais baixa verificadas em eleições democráticas no nosso país. Mas entre desejos e sua concretização “ia um mar onde se poderia afogar muito boa gente”.

O PCP sabia que uma solução, do tipo dos países do leste europeu, em Portugal, nunca seria permitida, na Península Ibérica, pelos países do Ocidente, mesmo que tivesse o apoio do MFA. Tentá-lo, seria um suicídio político. Um MFA que, ao contrário do que se propalava, se manteve sempre acima de todos os partidos. Um MFA que estava perfeitamente consciente do que se tinha passado em Espanha, antes da II Guerra Mundial. Um MFA que se tinha comprometido, no seu Programa, a respeitar e cumprir os acordos internacionais assinados por Portugal, nomeadamente com a organização NATO.

A “feroz” luta política que vai ser travada, até à aprovação da Constituição, não foi uma luta contra a implantação do comunismo, mas uma luta por ocupação de lugares importantes nas estruturas do Estado, no movimento sindical e na comunicação social. Lugares que tinham sido ocupados pelo PCP e pelo MDP/CDE, logo a seguir a 25 de Abril de 1974. Partidos, que representavam perto de 80% dos eleitores, vão procurar desalojar esses elementos para os substituir por militantes seus. Luta que vai ser camuflada por um intenso anti-comunismo primário, potenciado por acções da extrema-direita. Um regime comunista em Portugal, um país da NATO? Vivendo costas com costas com a ditadura espanhola?

Nem o próprio PCP acreditava em tal possibilidade e a prova é que teve de cortar, do seu projecto político, a ditadura do proletariado. Ditadura do proletariado que, aliás, na própria União Soviética, tinha dado lugar a uma ditadura de minorias altamente privilegiadas.

O PCP aproveitou, isso sim, a oportunidade, que lhe era dada pela revolução, para lutar por melhores condições e dignificação das carenciadas populações das cidades e dos campos. Aproveitou e explorou a disponibilidade que lhe era dada, pelo desejo de jovens militares, para que fossem criadas condições económicas e sociais, que garantissem uma efectiva melhoria da qualidade de vida das classes mais desfavorecidas.

Quanto aos jovens militares do MFA, reafirmo não ter havido fracturas em relação aos objectivos do Programa, apenas ter havido divergências sobre a forma e prazo para os alcançar. Divergências que se tinham alargado aos sectores mais politizados da sociedade civil, “incendiando” o diálogo e a luta política. Sempre considerei – e continuo a considerar – importante as divergentes intervenções políticas dos militares do MFA, naquele ano de 1975, porque elas contribuíram para uma aceleração da aprendizagem política do povo português e para a sua consciente aceitação da solução democrática e pluripartidária que, aliás, viria a ser plasmada na Constituição de 1976.

Foi este intenso diálogo, ao qual o MFA soube subtrair as armas, as forças de segurança, as agências de informação, que tornou único, sui-generis, o nosso processo revolucionário. Processo revolucionário que, num curto prazo de dois anos, conseguiu incomensurável mais do que qualquer das outras revoluções que tiveram lugar no Mundo. E, ao contrário de todas as outras, sem qualquer derramamento significativo de sangue e com um mínimo atropelamento dos direitos fundamentais dos indivíduos.

As aparentes fracturas entre militares do MFA eram, assim, parte daquele diálogo e a prova é que, em 25 de Novembro de 1975, em cumprimento de uma ordem do PR e Presidente do CR, todos os comandos das Unidades militares que, aparentemente, divergiam das directivas do CR, se apresentaram no palácio de Belém. A única excepção foi o comando da Polícia Militar que desrespeitou essa ordem, não porque não quisesse cumpri-la, mas porque não quis abandonar a Unidade nas mãos de subordinados, simpatizantes da extrema-esquerda.

— A ideia que se espalhava, numa parte do país e da comunidade internacional, era que o PR e o CR eram coniventes com militares que tentavam transformar a sociedade portuguesa numa sociedade comunista.

Ideia orquestrada em crescendo pelos apoiantes do sistema político, deposto pelo MFA, à medida que beneficiavam do facto, de sobre eles, não terem recaído represálias significativas pelas novas forcas militares e civis. Apoiantes e simpatizantes da ditadura havia-os nas FA’s, em especial nos escalões mais elevados, no aparelho do Estado, na comunicação social, infiltrados nos recém-criados partidos, enfim, espalhados por todo o país.

E todos os acontecimentos, mais ou menos polémicos que marcaram a evolução da revolução dos cravos, são a maior parte das vezes analisados sem ter em conta aquela oposição, sempre mascarados com o “papão” do comunismo, batuta prioritariamente utilizada pela ditadura e, posteriormente, recuperada não só pelos partidos e comunicação social da direita do espectro político, como pelo próprio PS.

O CERCO À ASSEMBLEIA CONSTITUINTE

E posso referir-lhe o exemplo do cerco da Assembleia Constituinte, em 11 de Novembro de 1975 que, penso, ficou na memória da maioria da população como um acto da responsabilidade do PCP.

Como era normal, quando surgiam situações preocupantes os elementos da Comissão Coordenadora, integrados no CR, por não terem outras missões para além das de conselheiro, deslocavam-se para o Palácio de Belém, colocando-se à disposição do Presidente do CR.

Apesar de ser comandante da RMC, acompanhei em Belém aquele acontecimento. Soube que o 1o Ministro, almirante Pinheiro de Azevedo, também ele sequestrado, havia negado a proposta do general Costa Gomes para o envio de unidades militares, uma vez que ele resolveria o problema.

Desejando esclarecer as razões do cerco de uma manifestação, encabeçada por militares deficientes das FA’s, tentamos que um dos organizadores nos viesse explicar quem a havia convocado e quais os seus objectivos.

Foi-nos explicado que a organização era da responsabilidade de forças da extrema-esquerda e que a principal motivação era exigir que os deputados consagrassem na Constituição, que estavam a redigir, a nacionalização dos solos urbanos.

A falta de habitação nos principais aglomerados urbanos e a necessidade de construção de habitação social, para alojar as classes mais desfavorecidas, exigiam aquela nacionalização.

Pedimos, a seguir, a presença de um dirigente do PCP a quem perguntamos se também faziam parte da manifestação. Disse-nos que não, pelo que resolvemos apelar à capacidade do PCP para controlar manifestações. E facto é que, durante uma noite, a manifestação acabou controlada por militantes do PCP, tornando possível a saída da Assembleia dos deputados, após três dias de cerco. Naturalmente aplaudidos os do PCP e assobiados os que hostilizavam o partido. No entanto, este acontecimento passou a fazer parte dos episódios da luta pelo poder, que decorria entre o PS e o PCP.

— O cerco da Assembleia Constituinte ocorreu em meados de Novembro, e nós recordávamos a suspensão do CR dos conselheiros subscritores do Documento dos 9 e as divisões existentes, entre militares do MFA, que julgo causa primária do Verão Quente de 1975.

Causa primária, não. Discordo em absoluto. As divisões entre oficiais do MFA aparentemente materializadas nos seus diversos documentos como Plano de Acção Política, a Aliança Povo/MFA, o Documento do COPCON, o Documento dos 9, são respostas aos ataques, internos e externos, crescentemente mais violentos, desenvolvidos pelas forças do anterior regime, na tentativa de evitar a concretização dos dois importantes acontecimentos, que não me cansarei de repetir, como eram a elaboração, pelos representantes de 5 forças partidárias, de uma nova Constituição e as independências de Angola e Moçambique, com os quais iriam continuar a perder importantes benefícios políticos, financeiros e económicos.

E, também, resposta às lutas ideológicas que ocorreram entre os diversos partidos políticos. Respostas que visavam apontar caminhos para se conseguir atingir o objectivo, na altura defendido por todos os partidos políticos, presentes na Assembleia Constituinte, a construção de uma sociedade socialista.

De facto, todos os partidos, no início dos trabalhos da Constituinte, apresentaram os seus projectos de Constituição que serviriam de base para, de acordo com uma metodologia definida pelos deputados no Regimento da Assembleia, ser elaborado e aprovado o seu texto final. Penso ser de interesse para a compreensão dos acontecimentos ocorridos no Verão Quente de 1975, saber o que desejavam os partidos, nos seus projectos, para o futuro da sociedade portuguesa:

  • O PS, no arto 1, dizia que “Portugal é uma República soberana, em transição, por via pluralista e no respeito pela vontade popular, para o socialismo, entendido este como o poder democrático dos trabalhadores, com vista à instauração de uma sociedade sem classes”.
  • O PPD, no arto 1o, afirmava que “Portugal é uma República independente e democrática, que se baseia na dignidade da pessoa humana, na solidariedade e no trabalho para construir uma sociedade socialista”.
  • O PCP, no arto 1o dizia que o “Estado Português é um Estado democrático revolucionário que tem por objectivo, num curto prazo histórico, eliminar o poder dos monopólios e latifundiários e abrir caminho para a transição para o socialismo”.
  • O CDS, no arto 1o afirmava que “Portugal constitui um Estado democrático, fundado na soberania popular, na liberdade individual, na solidariedade social e no pluralismo político e orientado pelo respeito da dignidade do Homem na via original para um socialismo português”.
  • O MDP/CDE, no arto 1o dizia que o “Estado Português é um República Democrática que, baseando-se nas grandes camadas da população historicamente oprimidas, promove, pela aliança revolucionária do povo com as suas forças armadas, a instauração de uma sociedade socialista”.

É interessante percorrer as ideias políticas e sociais constantes de todas estas propostas de Constituição e tentar entender as razões que levaram os dois principais partidos, depois que aprovaram a Constituição de 1976, a abandonar princípios fundamentais para ser construída uma sociedade mais igualitária.

Em todas estas propostas de Constituição foram integradas as condições do 1o Pacto MFA/Partidos, o CR, a Assembleia do MFA com os seus 240 representantes (120 do Exército, 60 da Marinha e 60 da Força Aérea) e as respectivas competências. São documentos importantes para analisar como os partidos entendiam a sociedade portuguesa, como a tencionavam gerir, se fossem poder, e como a geriram até aos dias de hoje. Mas penso valer a pena continuar a recordar os acontecimentos ocorridos no Verão Quente de 1975, um dos períodos mais ricos, mais aliciante, da revolução dos cravos, incensado pela esquerda e odiado pela extrema-direita e alguma direita.

A euforia revolucionária inicia-se após o 11 de Março de 1975 com a nacionalização de todas as instituições bancárias e de seguros, com a nacionalização de indústrias base, com a aprovação das bases gerais da Reforma Agrária, a assinatura do 1o Pacto MFA/Partidos, a preparação da campanha eleitoral para a Assembleia Constituinte, com a reformulação dos cadernos eleitorais, com os seus 6 milhões de eleitores, trabalho realizado pelo grupo de colaboradores militares do tenente-coronel Costa Brás as eleições onde, de acordo com o número de votos obtidos, cada partido ficou a saber a sua força, em relação às outras forças do sistema pluripartidário.

Franco Charais
Franco Charais créditos: Âncora Editora

Acontecimento marcante, pois veio contribuir para esclarecer a importância relativa entre o PS e o PCP, no conflito surgido entre eles (no segundo 1o Maio comemorado em liberdade) o que incrementou a luta anticomunista, estreita e permanentemente apoiada pelos partidos da direita e pelo IN.

Como consequência, para além da luta para desalojar o PCP de posições no Estado e na comunicação social, as forças mais à esquerda, desconfiando da possibilidade do PS e do PPD/PSD em alterarem os preceitos constantes das sua propostas constitucionais, porque os sabem infiltrados por figuras importantes do anterior regime, utilizam os meios de comunicação social para os combater.

Tudo isto contribuiu para uma luta interpartidária que “aqueceu” o Verão de 1975 agravada por tentativas, por parte dos partidos, de recorrerem a armas e/ou ao aliciamento de militares, para imporem pela força os seus interesses.

— Depois das reuniões de Tancos como ficou constituído o CR? A temperatura política parece não ter arrefecido, pois estamos ainda no início do denominado Verão Quente?

Com a saída de Vasco Gonçalves (era conselheiro por ser Primeiro-Ministro militar) e dos conselheiros que o apoiavam, o CR passou a ser constituído por Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo, Rosa Coutinho, Carlos Fabião, Lopes Pires, Mendes Dias, Pinho Freire, Franco Charais, Vasco Lourenço, Pezarat Correia, Vítor Alves, Marques Júnior, Sousa e Castro, Melo Antunes, Vítor Crespo, Almada Contreiras, Martins Guerreiro, Costa Neves, Canto e Castro e Otelo. Em síntese, sempre o mesmo poder e os mesmos militares, desde o dia 25 de Abril de 1974.

Dissolveu-se o Triunvirato, mas estavam por resolver a substituição do Primeiro-Ministro e do brigadeiro Corvacho. Costa Gomes decide indigitar o almirante Pinheiro de Azevedo para formar o VI Governo Provisório, Corvacho vai ser substituído pelo brigadeiro graduado Pires Veloso. Pinheiro de Azevedo vai conseguir formar o VI Governo Provisório integrando nele 4 ministros do PS, 2 do PPD e 1 do PCP e, pela dificuldade de nomear personalidades civis, recorrendo ao apoio de vários militares, nomeadamente Melo Antunes, nos Negócios Estrangeiros, e Vítor Alves, na Educação.

Tive a oportunidade de intervir nesta última nomeação porque, na véspera da tomada de posse do Governo, o civil, que tinha aceitado o cargo, desistiu e, perante o desespero de Pinheiro de Azevedo, aconselhei-o a nomear Vítor Alves. Meses mais tarde soube, por professores da Universidade de Coimbra que, nas suas opiniões, Vítor Alves tinha sido o melhor ministro que tinham conhecido.

Mas havia um problema que ficou adiado: o poder popular apoiado por Otelo, por vários militares do MFA e por várias organizações de extrema-esquerda. De facto a temperatura política era elevada, pois 1500 soldados fardados, apoiados por milhares de civis, desfilaram nas ruas do Porto, com slogans contra o governo, o CEME, Carlos Fabião e o comandante da RMC, Franco Charais.

Outras manifestações vão seguir-se em outras cidades do pais e, a complicar a situação, os deficientes das FA’s são “empurrados” e utilizados pela extrema-esquerda para a ocupação de estações de rádio, para que estas sejam postas ao serviço da Revolução e, para outras acções, que vão obrigar ao empenhamento do Regimento de Comandos. No Rossio ocorrem conflitos entre a Polícia Militar e manifestações de retornados.

Estava em marcha a ponte aérea que trouxe para o nosso País mais de meio milhão de retornados, naturalmente ressabiados contra o MFA. Em reacção ao apoio cada vez mais visível da ditadura espanhola ao MDLP e, sob o pretexto da execução de nacionalistas bascos, militantes da extrema-esquerda assaltam e destroem instalações diplomáticas de Espanha em Lisboa, Porto e Évora.

Em pleno ambiente revolucionário, uns julgam em perigo a revolução e que está próximo um golpe de direita e, outros, que está em marcha a criação dum regime comunista. Vão surgir insubordinações em algumas unidades, nomeadamente no Regimento de Comandos, onde Jaime Neves e Otelo são impedidos de entrar. Porque era uma das unidades “de mão” do MFA, militares são passados a disponibilidade, e o CEM do Exército Carlos Fabião decide a sua substituição por ex-comandos voluntários.

Com outros acontecimentos que envolveram confrontos entre militares e civis, o CR confrontava-se com a inadequada utilização de unidades militares pelo que decide retirar ao COPCON poderes de intervenção de ordem pública. Mas o calor político que se verificava em Lisboa, com frequentes manifestações e contramanifestações, numa área onde se concentravam fortes contingentes militares, levaram o CR a colocar, em apoio do Governo Provisório, enquanto este não conseguisse dispor de forças de segurança fiáveis, um Agrupamento Militar de Intervenção (AMI) composto por uma unidade de comandos, duas de paraquedistas e duas de fuzileiros, sob o comando de um brigadeiro do Exército.

Politicamente luta-se, uns contra possíveis golpes de extrema-esquerda, outros contra golpes de extrema-direita, outros contra a instauração dum regime comunista. Vasco Lourenço, porta-voz do CR, designa a situação politica de Processo Revolucionário em Curso, que vem a estar na origem da expressão PREC, designação que acabará por ser adoptada da esquerda à direita.

As rádios e a televisão contribuem para a confusão, pelo que o Governo tenta arrefecê-las, ocupando-as militarmente. As instalações da Rádio Renascença chegam a ser seladas mas, pouco tempo depois, são desseladas por milhares de pessoas.

O AMI intervém com uma unidade de paraquedistas, em apoio à PSP que destruiu, com explosivos, os emissores das instalações.

No Norte, Pires Veloso substitui os apoios políticos de Corvacho pelos apoios do PPD e do PS, partidarizando o seu comando e, sem capacidade de diálogo com as forças mais à esquerda, vai confrontar-se com ameaças de insubordinações de militares, concretizadas no Regimento de Artilharia da Serra do Pilar e que originaram graves confrontos entre militantes do PPD, civis e militares.

— De facto verificaram-se graves perturbações em unidades militares nas RMN e RML que parece não terem contagiado as RMC e a RMS. No seu entender quais as razões?

No que se refere à RMS não me recordo de qualquer perturbação nas suas unidades. Recordo-me de intervenções de Pezarat Correia sobre conflitos na área da Reforma Agrária mas, julgo, sem perturbações nas suas unidades.

Havia, na RMS, uma boa unidade de comando. No caso da RMC, como já lhe referi, tinha um bom conhecimento do que se passava nas minhas unidades pois, em reuniões com oficiais, sargentos e praças, quando as visitava, habituei-os a intervirem para exporem as suas preocupações nas áreas militar e política.

Tendo acesso a quase todos os órgãos de comunicação social, não me era difícil perceber as suas simpatias políticas pela forma como se expressavam. E verifiquei que o mesmo se passava com os capitães e comandantes das minhas unidades que, igualmente, conheciam as opiniões dos seus subordinados e eram por eles respeitados.

Biografia de um Militar
Biografia de um Militar créditos: Âncora Editora

Livro: Biografia de um Militar

Autor: Franco Charais

Editora: Âncora Editora

Preço: 24,00 €

Refiro, como exemplo, o caso do Regimento de Abrantes, para o qual tinham sido transferidos, “despromovidos” por castigo, soldados cadetes de um curso de oficiais milicianos da Escola Prática de Infantaria. O comandante e o capitão do MFA, que com eles mais contactavam, sabiam das suas simpatias e militância no MES, partido muito activo no Verão Quente de 1975 e do qual era um dos dirigentes, o futuro PR Jorge Sampaio. Fiz mais do que uma visita inopinada a esta unidade. De uma das vezes, apareci por volta das 6H30 da tarde e, acompanhado do comandante, percorri todo o quartel. Fiquei admirado por ouvir música nos altifalantes das paradas pois, normalmente, estão avariados, mas o comandante elucidou-me que eram os seus revolucionários que tratavam deles. Por vezes, deixava-os ir a Lisboa (sem dispêndio para a fazenda nacional), procurar peças (que pagavam do seu próprio bolso) sempre que surgia uma avaria. Era clara a sua intenção de ser ouvida, nas paradas do quartel, fora das horas de serviço, a revolucionária Rádio Renascença.

Um dia, “farto” de ouvir, nas reuniões, intervenções que identificava como esquerdistas, pedi ao coronel Seco que me conseguisse um encontro com representantes do PS, reunião que se realizou em sua casa. Perguntei aos representantes daquele partido se, nas unidades da minha RM, não havia militantes do PS e, se os havia, porque se acobardavam e não expunham abertamente os seus problemas. E constatei que, pouco tempo depois, as intervenções tornaram-se mais pluralistas. Mas em todas as unidades deixei sempre claro que, sob a direcção do CR, as FA’s tinham por missão assegurar o cumprimento do Programa do MFA, não lhes competindo interferir nas decisões do Povo, que seriam definidas na Constituição que estava a ser escrita, por representantes seus, na Assembleia Constituinte. Podiam, livremente, ser – ou não – apoiantes ou militantes de qualquer dos partidos eleitos para aquela Assembleia. Senti-me sempre seguro no meu comando, não temido mas respeitado.

Já próximo do 25 de Novembro, os sargentos do meu QG pediram autorização para realizar, em Tancos, uma reunião de sargentos dos três ramos das FA’s, convidando-me para assistir.

Disse-lhes que, devido aos meus afazeres, seria difícil aceitar o convite mas, à última hora, estando disponível, resolvi aparecer sem aviso prévio. A reunião realizava-se no auditório da Escola Prática de Engenharia. Os sargentos interromperam os trabalhos e convidaram-me para a mesa da presidência, pedindo-me para proferir algumas palavras. Fui duas vezes interrompido por um sargento paraquedista que, em nome dos seus colegas, se insurgiu pela presença dum brigadeiro na reunião de sargentos e, perante a opinião contrária da presidência da mesa, os sargentos paraquedistas abandonaram a reunião. Aceitei pedidos de desculpa de sargentos da Força Aérea que, vivamente, repudiaram o comportamento dos camaradas de Arma (afirmando que eles tinham a mania que mandavam na Força Aérea e não mandavam nada).

Refiro este incidente pois, pouco tempo depois, irei acompanhar a revolta dos paraquedistas com a certeza de que não teriam qualquer apoio dos outros sargentos dos três ramos das FA’s.

Tinha a maior confiança nos militares do meu Quartel-General, no meu 2o comandante, o brigadeiro Videira, oficial paraquedista que tinha sido o primeiro comandante da primeira unidade de paraquedistas, criada em Portugal, e também no meu CEM coronel Seco. Nas forças de segurança tinha estreito apoio do comandante da PSP, major Leste Henriques, indefectível apoiante do MFA e uma boa relação com o comandante da GNR.

No respeitante à RMN esperávamos, como elementos do CR, que Pires Veloso resolvesse os problemas. Pessoalmente sabia das dificuldades que ele iria enfrentar e tive o cuidado de, em determinada fase aguda do seu percurso como comandante, ter combinado com outros 2 conselheiros um almoço no seu QG que, como esperava, foi largamente comentado pelos jornais do Norte.

Em Lisboa as coisas eram mais complicadas. Otelo comandava a RML (unidades do Exército) e o COPCON, mas com problemas. Mas Vasco Gonçalves, com as suas convicções políticas sobre a forma de conduzir a Revolução e da necessidade de a furtar à crescente ofensiva da extrema-direita, tinha criado fortes apoios não só em alguns capitães do MFA, como em largos sectores da população civil. Como mais notórios eram os casos do RALIS (onde Diniz de Almeida tinha adquirido, com o 11 de Março, fortes apoios militares e civis), da PM e da Escola Prática de Administração Militar.

E o MFA enfrentava outro problema, resultado das generalizadas intenções dos jovens capitães ao negarem quaisquer recompensas pelas suas acções no campo militar e civil, que geraram um novo tipo de brigada do reumático. Ao recusarem promoções revolucionárias e optarem por graduações, quando alguns dos seus elementos tinha que desempenhar funções de oficial general, iam sendo promovidos aos postos superiores das FA’s oficiais que pouco ou nada tinham a ver com a Revolução ou, mesmo, militares que, no seu íntimo, eram visceralmente contra ela, contra o MFA, contra a descolonização.

E era este o dispositivo militar com que contava o MFA, nos fins do Verão Quente de 1975, para fazer face à crescente ofensiva da extrema-direita e das forças ligadas ao general Spínola, e para intervir, se necessário, nos conflitos que opunham partidos políticos. Com o incremento da cruzada anticomunista (a que aderem os partidos PS, PPD/PSD e CDS), com a convicção de que não lhe seria difícil obter apoio nos quadros superiores das FA’s, com a ofensiva pelo norte do país do movimento financiado por Spínola, cresce na extrema-direita a possibilidade de inverter o curso da Revolução, interromper o funcionamento da Constituinte e a independência de Angola, onde iria perder vultuosos interesses.

De facto nos primeiros dias de Outubro tropas sul-africanas entraram no sul de Angola para apoiar a UNITA, o MPLA recebia no território tropas cubanas e, mais tarde, surgirão tropas da UPA comandadas por oficiais conectados com a extrema-direita portuguesa. A complicar a situação, são detectadas reuniões entre o clero de Braga e elementos do MDLP, sinal da possível aderência da Igreja à campanha anticomunista. A guerrilha entre os partidos PS e PCP intensifica-se e a estratégia da extrema-direita é favorecida porque, na opinião pública, vai ser envenenada com boatos de que o PCP, com a ajuda da União Soviética, estaria a preparar a implantação do poder comunista, no nosso país.

— E não estaria? Compreendo que a missão de um conselheiro militar não tenha sido uma tarefa fácil tendo de tomar decisões sem o apoio de um serviço eficaz de informações. Continuava a apoiar-se nas notícias dos órgãos de comunicação social, como atrás referiu?

Evidentemente que não estaria, era solução que não interessava nem ao PCP nem à própria URSS e aquele sabia bem os perigos duma solução deste tipo numa Península Ibérica em que o maior país, Espanha, estava sujeito a uma forte ditadura militar de direita. Seria o seu fim como partido ou teria de voltar à clandestinidade. Aliás o PCP, após a queda do V Governo Provisório, também sabia que não poderia contar com o MFA. Quanto à missão de um conselheiro militar não era tarefa nada fácil como aliás também não era para qualquer dos militares do MFA a quem eram distribuídas tarefas civis.

Os assuntos a tratar, militares e civis, sucediam-se uns aos outros e eu tinha que me desdobrar, viajando com intensidade entre as minhas unidades e Lisboa. E aqui também não havia lugar a descanso. Reuniões do CR para tratar assuntos relacionados com o Governo Provisório, votação de leis, análise de decretos-leis, verificando se respeitavam o conteúdo do Programa do MFA, analise e votação de decretos-leis do âmbito das FA’s, conselho do Presidente da República. Ficávamos com conhecimentos actualizados sobre a actuação do Governo e sobre as relações do nosso país com o exterior. E não era tudo. No Verão Quente de 1975 todos conspiravam. Civis e militares.

O Grupo dos 9 tinha adquirido responsabilidades acrescidas pelo que, praticamente, estava em reunião permanente. Recordo um dos nossos locais de reuniões, a residência dum oficial de marinha, o comandante Gomes Mota, onde eram definidas tácticas e estratégias a defender no CR. Em todas estas actividades não dispensávamos a contribuição da imprensa nacional e internacional com todas as suas qualidades e defeitos, defendendo interesses próprios, financeiros e políticos. Com efeito, alguns órgãos de comunicação social, editados por empresas praticamente estatizadas, não se limitavam a criticar objectivamente a Assembleia Constituinte, o Conselho da Revolução, o Governo e as Forças Armadas – o que seria construtivo e útil – mas, sistematicamente, hostilizavam aqueles órgãos do MFA em termos de intolerável subjectivismo partidário. Evidentemente que esta atitude, assumida pelos principais jornais, teve notória influência sobre a agitação social que envolveu o país em 1975. Era neles que se anunciavam propósitos da instauração de regimes de extrema-esquerda, comunista, de direita ou de extrema-direita em Portugal, notícias que tinham repercussões em jornais de outros países, transmitidas por afluxos de jornalistas estrangeiros na “esperança” de testemunharem o nascimento, neste canto do sul da Europa, de uma nova Cuba, de um novo estado satélite da URSS ou de uma nova ditadura militar.

Mas pondo de parte a análise de “prós e contras” penso que é de justiça abrir aqui um parágrafo para, apesar dos seus defeitos, realçar o papel extremamente positivo que os jornalistas e órgãos de comunicação social tiveram na Revolução de Abril e em todos os acontecimentos subsequentes.

Movendo-se com extraordinária fluidez entre militares e políticos, contavam e denunciavam à opinião pública os seus actos e, mesmo, as suas intenções. Foram sempre de grande importância as suas notícias, os seus artigos, mesmo os de opinião, desde a extrema-esquerda à extrema-direita. E os seus escritos e intervenções na rádio e televisão voavam pelo país e pelo estrangeiro. Para nós, MFA, foram de extrema utilidade para não dizer, mesmo, vitais. Eu considerava-os o meu serviço de informações. No exterior, tiveram grande influência nos acontecimentos que vão seguir-se em várias regiões do mundo. Em Espanha, com certeza, facto que ainda hoje é reconhecido por políticos daquele país.

Recordo que um dos seus embaixadores (tinha já acabado o CR), por altura das comemorações do 25 de Abril e durante a sua estadia em Lisboa convidava, para um jantar em sua casa, alguns ex-membros do CR e os jornalistas espanhóis que reportaram os acontecimentos, ocorridos durante a nossa revolução, para nos dirigir algumas palavras de agradecimento pela nossa acção pois, devido a ela, Espanha havia conseguido uma transição da ditadura para um regime democrático, também sem perdas significativas de vidas.

Recordo, também, o interesse com que éramos abordados por diplomatas dos mais diversos países, para conhecerem ou deduzirem das nossas intenções. E nós, membros do CR, naquele Verão Quente de 75, nunca nos escusámos em dar, a todos os órgãos de comunicação social, todas as entrevistas que nos fossem solicitadas.

Tínhamos as informações suficientes para sabermos que, em plena “guerra fria”, integrados na NATO (acordo reafirmado pelo PR na Conferencia de Helsínquia e por Vasco Gonçalves, 1o ministro, numa reunião da NATO), com dificuldades financeiras resultantes da sabotagem económica dos antigos detentores do poder económico, paredes meias com uma ditadura tolerada pelo Ocidente, só este nos poderia ajudar.

Aliás em visita de Estado à URSS no mês de Outubro do PR, Costa Gomes, Brejnev confidenciou-lhe que Portugal, enquanto houvesse blocos, não tinha escolha, teria que permanecer na NATO e ligado ao bloco ocidental. Portanto, para mim, toda a agitação política, dado o apoio que PS e PPD, os dois partidos mais votados na Constituinte, pareciam dar à campanha anti-comunista, conduzida pela extrema-direita, engrossada por retornados, tinha como consequência o cerrar de hostes, do PCP e dos partidos mais à esquerda, pela defesa do que consideravam as conquistas da revolução.

Os intensos ataques ao MFA, visando selectivamente os seus dirigentes e a sua fragmentação, poderia desembocar numa guerra civil, com claras vantagens, não para qualquer dos partidos democráticos, mas para a extrema-direita. Como o poder militar estava nas mãos do CR este tinha que resolver o problema e este só poderia ser resolvido, ou à força, ou privilegiando soluções democráticas. E foram estas as privilegiadas pelo CR. Tendo o apoio do PR, general Costa Gomes, com o problema da RMN resolvido, o CR vai exercer os seus esforços na RML, procurando substituir, no seu comando, Otelo por Vasco Lourenço, um militar que tinha apoios na maioria das unidades dos três ramos das FA’s. Como na região de Lisboa convergiam e se chocavam as políticas do Governo Provisório, dos partidos, os trabalhos da Constituinte e a ofensiva da extrema-direita, apoiadas por agressivas manifestações a favor e contra, greves em importantes sectores da actividade económica, era necessário retirar as unidades militares do caldeirão político.

O Governo e, até, a Constituinte, apelavam para a intervenção dos militares e políticos faziam esforços para conseguir o seu apoio. O próprio COPCON, sujeito a pressões de partidos defensores do poder popular, nas suas intervenções em conflitos de trabalho, em vez de os dirimir, actuava partidariamente pelo que lhe teve de ser retirado o poder de intervenção em ordem pública. Todos estes acontecimentos eram o alimento dos órgãos de comunicação social que os divulgavam, de acordo com os interesses partidários de quem os financiava.

— Nas suas recordações estamos nos princípios do mês de Outubro de 1975, praticamente a um mês do 25 de Novembro. Como conseguia, através dos jornais, descortinar no meio da barafunda daquele Verão Quente, as verdadeiras intenções políticas dos partidos e os ataques da extrema-direita?

Não me era difícil visto que cada partido tem a sua linguagem própria, com que apregoa os seus ideais políticos. A comunicação social, que é manuseada por seres humanos tem, também, o seu ideal político e partidário. Mesmo que tente afirmar-se independente dos partidos ou dos interesses económicos, nunca o consegue. Como exemplos mais flagrantes daquela época, os casos do jornal República e da rádio Renascença, uma disputando os escritos do PS e do PCP e outra ligada à Igreja e ocupada por esquerdistas, casos que inflamaram as disputas políticas de então (e que continuam até aos nossos dias).

Evidentemente que não eram casos únicos, existiam outras rádios e jornais, uns financiados por particulares ligados a partidos da direita e ao anterior regime e, outros, praticamente nacionalizados, porque os capitais emprestados pelos Bancos eram largamente superiores aos capitais próprios. Praticamente “mordiam a mão do dono” atacando o Governo provisório e alinhando em políticas de direita e extrema-direita, que visavam a fracturação dos militares do MFA.

Pessoalmente gostava desta aparente confusão, porque sendo sinal de total liberdade de expressão, os golpes e contragolpes eram nítidos, para quem os soubesse ler e ouvir. Evidentemente que o CR possuía os meios necessários para corrigir a maioria das situações que considerava erradas mas procurou, desde o dia 25 de Abril de 1974, cumprir o prometido à população de entregar ao Governo Provisório, a conduta dos provisórios assuntos políticos do país.

Franco Charais: "Até hoje o poder económico continua a dominar, e nós andamos aqui, de mão estendida, à espera da bazuca"
Franco Charais: "Até hoje o poder económico continua a dominar, e nós andamos aqui, de mão estendida, à espera da bazuca"
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Mas a nossa sociedade, acordada de uma letargia, de quase meio século, abria-se para uma nova realidade caracterizada por amplas liberdades que, para as viver em plenitude, lhe exigirá a prática de alguns anos. E a nossa imprensa, de ontem como a de hoje, nunca soube definir prioridades, isto é, o que é mais importante para o presente e o futuro da nossa sociedade.

Hoje, por exemplo, quando estamos envolvidos numa guerra mundial contra uma pandemia que mata e espalha o desemprego e a fome, e não sabemos onde arranjar os meios financeiros para lhe fazer face, 8 telejornais da 01H00 da tarde de 8 televisões abriram com a mesma notícia, devidamente televisionada e relatada por vários aspirantes a jornalistas. Hoje os nossos jornalistas são licenciados ou doutorados em Universidades, ao contrário dos de 1975, mas o seu apetite, por figuras ou notícias mediáticas, é o mesmo.

Através dos artigos de opinião e forma como as notícias são apresentadas não nos era difícil, naquele Verão Quente, deduzir estratégias dos partidos, principalmente as do nosso principal inimigo. E íamos seguindo os seus movimentos através da comunicação social, nossa e estrangeira, preparando-nos para o momento em que teríamos de fazer face ao seu ataque que, em meu entender, teria que ocorrer antes de 11 de Novembro de 1975, data prevista para a independência de Angola. A partir desta data, o IN perderia todos os privilégios que tinha adquirido com o apoio à ditadura. No entanto, teríamos que contar com a continuação da ofensiva de Spínola, cuja data limite seria a aprovação da nova Constituição.

Os acontecimentos que antecederam o dia 25 de Novembro de 1975 foram, de facto, férteis em grandes manifestações, umas apoiadas pelos partidos de esquerda, outras por partidos da direita, principalmente no Porto e em Lisboa. As de esquerda contra o avanço das forças da extrema-direita e de apoio a unidades militares que consideravam revolucionárias e, as de direita, contra estas unidades e de apoio a Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro e a Pires Veloso, comandante da RMN.

Também em Coimbra fui alvo de manifestações, da esquerda e da direita, às quais sempre evitei assistir. Uma vez que defendia a importância de todos os partidos, principalmente os que tinham conseguido os votos necessários para estarem presentes na Constituinte, tive sempre o cuidado de não me deixar colar a qualquer deles. A actividade política era intensa, movimentava grandes massas de população o que, em meu entender, era o povo a aprender e a praticar política. Mas o que mais nos preocupava, no meio de toda aquela aparente confusão, era descortinar se haveria, ou não, a mão do IN apoiando os movimentos de Spínola, fora e dentro do país, e o apoio de oficiais superiores das FA’s e de civis dos partidos mais à direita e, também, a intensidade do apoio que recebia do regime franquista.

Sem serviço de informações próprias de um Estado consolidado, era na leitura dos jornais que procurávamos discernir o “golpe do dia seguinte”, os esforços que eram feitos contra unidades do MFA, visando a sua insubordinação.

Como foram os casos do RASP e do CICAP, na RMN, insubordinadas contra o comandante, brigadeiro Pires Veloso, do Regimento de Comandos, contra o seu comandante, Jaime Neves, depois de a unidade ter intervindo em acções políticas desenvolvidas pelos deficientes das FA’s, que resultaram em prisões e alguns feridos. E refiro, também, o caso do RALIS que, após os ataques de que tinha sido alvo, em 11 de Março de 1975, tinha-se tornado numa unidade revolucionária, com o trânsito de civis, altamente aguerridos, no interior do aquartelamento.

Estes acontecimentos transmitiram para o exterior dos quartéis e para o exterior do país, sentimentos de indisciplina que, como atrás referi, criaram grandes entraves à revolução conduzida pelo MFA e deram força às estratégias do IN. Embora o MFA dispusesse de força suficiente para resolver qualquer problema civil ou militar, mas sabendo que o Governo Provisório não dis- punha, ainda de forças militarizadas e de um serviço de justiça devidamente saneado, optou por continuar a resolver todos os problemas com paciência, em vez de aplicar, com violência, a força que detinha.

Entretanto, para intervir em situações extremas, foi criado o AMI, uma força de intervenção preparada para actuar à ordem do CR, ou a pedido do Governo, em qualquer ponto do território nacional.

— Mas não era o AMI uma duplicação do COPCON? Por que razão teve uma duração efémera? Com a forma como relembra os acontecimentos eu tenho que concluir que, perante as ameaças que o CR parecia enfrentar, só poderiam ser resolvidas a tiro. E qual o papel dos partidos e do Governo Provisório?

O AMI foi constituído com unidades de comandos, fuzileiros e paraquedistas, retiradas do comando do COPCON e podia ser utilizado à ordem do PR ou do Primeiro-ministro.

Mas antes de relembrar as razões da sua efémera duração gostaria de falar nas acções do Governo Provisório no decurso deste período revolucionário, com destaque para a acção do ministro dos Negócios Estrangeiros, major Melo Antunes, que havia reunido, entre países europeus e os USA, os apoios externos necessários para o financiamento das nossas actividades internas, como o apoio da ponte aérea que permitiu acolher no nosso país cerca de 600.000 retornados, o seu alojamento e apoios necessários para sua integração nas actividades económicas do país e, também, a consolidação da nossa posição entre as democracias europeias. E a vinda dos retornados tinha trazido ao PREC preocupações adicionais. Alguns deles, revoltados com o que consideravam a sua expulsão de um território que consideravam seu, culpando o MFA por não continuar a obrigar os seus conterrâneos metropolitanos a irem combater os povos africanos que lutavam pela independência dos seus territórios, alinharam nas teses anticomunistas reforçando, intencionalmente ou não, a estratégia da extrema-direita. E os retornados vão enveredar por manifestações contra o MFA, ataques à Casa de Angola e à sede do MPLA em Lisboa.

Os esforços da extrema-direita vão estender-se aos Açores e à Madeira, empurrando partidos como o PSD para a criação de autoproclamados movimentos de libertação. Tudo sob o slogan, “libertar Portugal do comunismo, das garras de Moscovo”. Evidentemente que PS e PPD/PSD também sabem que tal não seria viável mas alinham nesta estratégia da extrema-direita, porque temiam o radicalismo dos partidos da extrema-esquerda e o apoio que o PCP lhes poderia prestar.

Mário Soares e Sá Carneiro, pela mão de Melo Antunes e Frank Carlucci, já tinham desfilado perante Kissinger e, o primeiro, já tinha obtido apoios financeiros para revigorar o partido e fomentar a criação de uma nova central sindical, a futura UGT.

Estava afastada a vacina anticomunista, anteriormente propalada, pois os USA entenderam a impossibilidade de os militares colocarem no poder o PCP. No entanto, a agenda mediática estava a ser marcada pelo PCP, pela extrema-esquerda e pela extrema-direita, por intermédio dos movimentos ligados a Spínola. O PS e o PPD, sentindo em perigo o seu poder negocial na Constituinte e os seus futuros como partidos mais votados pela população, alinham a estratégia da separação do CR do Governo Provisório e das estruturas superiores da FA’s.

Entretanto, o IN e o velho sonho de Spínola vão ser derrotados em Angola. As duas colunas, uma vinda do Sul e outra do Norte, envolvendo tropas da UNITA, da FNLA, oficiais portugueses e mercenários sul-africanos ficam às portas de Luanda e o MPLA, em 11 de Novembro, proclama a Independência de Angola.

No dia seguinte, no nosso país, inicia-se a greve dos operários da construção civil, a que se segue o cerco do Palácio de S. Bento, por cerca de 100.000 operários e militares deficientes das FA’s, que sequestram o Governo e os deputados da Constituinte, cerco que irá durar 36 horas. Em Belém a Comissão Coordenadora, reunida com o PR, toma conhecimento da recusa da oferta do PR ao Primeiro-ministro para uma intervenção militar e, tendo colhido informações de que o cerco estava controlado por organizações da extrema-esquerda, conseguiu resolver o assunto, com o apoio do PCP. Mas a agenda mediática continua a ser marcada pela extrema-esquerda, levando a reboque o PCP. A extrema-direita, derrotada no exterior do país (perdendo apoios nos USA, em outros países europeus e pela ditadura franquistas) e em Angola, resta-lhe apoiar a organização político-militar de Spínola para, internamente, defender os seus últimos interesses financeiros, “dissolve-se” nos partidos da direita.

Desembaraçada da pressão da tomada do poder pela extrema-direita, a direita portuguesa procura alcançar o controlo da situação política, concentrando no Norte a estratégia de divisão do CR e enfraquecimento dos partidos da esquerda, visando a eliminação do PCP da vida política ou, no mínimo, enfraquecer a sua acção.

Em 15 de Novembro o Grupo dos 9 reúne no palácio das Laranjeiras os militares que lhe eram afectos (na qual também compareci) entre os quais Ramalho Eanes, Costa Brás, Jaime Neves, Salgueiro Maia, Tomé Pinto, Loureiro dos Santos e comandantes das bases aéreas, reunião que seria presidida pelo general Pinho Freire e membro do CR.

Foi decidido ter chegada a altura de Vasco Lourenço assumir o comando da RML, a necessidade de disciplinar o funcionamento de alguns órgãos de comunicação social, de reforçar o poder militar do Grupo dos 9 e de consolidar o funcionamento do VI Governo. Mas os partidos mantinham “na rua” a luta pelo poder, luta que se continuará a materializar por grandes manifestações dos dois blocos, então formados, algumas atingindo volumes de centenas de milhares de pessoas e que passarei a designá-los por bloco de esquerda e bloco de direita.

Otelo recusa-se a abandonar o comando da RML e apoia, com mensagens, as grandes manifestações do bloco de esquerda e os militares paraquedistas, abandonados por mais de uma centena dos seus oficiais e sujeitos a ordens contraditórias do CEMFA, general Morais Silva. Os sargentos e praças do Regimento de Paraquedistas, possivelmente influenciados por partidos da extrema-esquerda, pelas suas intervenções no 11 de Março e nas operações à ordem do AMI, insubordinam-se contra os seus Comandos. O CEMFA decide transferir todos os oficiais para a Unidade Cortegaça, deixando apenas um oficial superior na Unidade e ordena passagem de licenças registadas, ou de passagem à disponibilidade, de pedidos a sargentos para apresentarem requerimentos para serem transferidos para o Exército, ou para a Força Aérea, ordens que serão liminarmente recusadas por sargentos e praças.

O bloco da direita envereda por acções contra o PR com acusações de não pôr cobro aos actos indisciplinados das FA’s, ameaças materializadas com saídas dos seus representantes do Governo Provisório, ameaças de mudanças do Governo e da Constituinte para o Porto (aproveitando o acolhimento que lhe é dado por Pires Veloso), como clara intimidação aos mais altos responsáveis militares. O chefe do Governo, Pinheiro de Azevedo, com um pé no CR e outro no Governo, com as manifestações do bloco de esquerda, apoiados por algumas unidades da RML, como o RALIS, a EPAM e a PM, teme que tudo desemboque numa guerra civil, pelo que também adopta uma atitude de indecisão.

O AMI, com a unidade dos comandos a ser reestruturada com ex-comandos e com os paraquedistas revoltados, vai ser extinta. Preocupado com todos estes acontecimentos políticos e militares vou certificar-me se influenciaram a minha Região Militar, visitando unidades e reunindo-me informalmente com capitães, confirmando que o poder continuava na mão dos Movimento dos Capitães, ou seja, que Vasco Lourenço teria o apoio suficiente dos capitães para resolver o problema militar da RML. Para tal e, enquanto durasse o conflito com Otelo, o Grupo dos 9, com o conhecimento de Costa Gomes, encarregou Vasco Lourenço para constituir, sigilosamente, um agrupamento de forças para intervir contra qualquer insurreição armada e desrespeito, na região de Lisboa pelas decisões do CR.

Pouco tempo depois, recebi um telefonema de Vasco Lourenço, pedindo-me para receber dois militares encarregados da constituição do agrupamento de forças. Os oficiais eram o tenente-coronel Ramalho Eanes e o coronel Garcia dos Santos que me confirmaram estarem a organizar um pequeno grupo militar para actuar contra qualquer tentativa de tomada de poder, por parte de militares e/ou civis, na área da RML.

Estavam conscientes dos apoios que receberiam das Regiões Militares RMC e RM mas a RMC poderia ter de ser utilizada para as ligações entre as Bases Aéreas da Região de Lisboa e a Base de Cortegaça onde se concentraram os oficiais paraquedistas da Base de Tancos. Pediram-me, que lhes fosse facultado o acesso aos códigos secretos das transmissões do Exército. Como o pedido foi feito pelo Garcia dos Santos, o oficial de transmissões do posto de comando da Pontinha, em 25 de Abril de 1974, imediatamente anui. Disse-lhes que poderiam contar com o apoio das unidades da RMC, mas com a condição de actuarem sob o meu comando.

No dia 20 de Novembro, o VI governo decidiu suspender as suas actividades até que o Presidente da República lhe garantisse as condições indispensáveis ao exercício das suas funções. Pinheiro de Azevedo, o homem que no dia do sequestro da Assembleia dizia, pelo telefone, ao Presidente que não precisava de qualquer auxílio, que dominou os incidentes numa manifestação no Terreiro do Paço, estava a ser “encostado à parede” pelos partidos PS, PSD e CDS.

Na noite do mesmo dia, uma grande manifestação convocada pelo PCP e FUR, frente ao palácio de Belém, exigia a demissão do VI Governo. Porque assisti a esta manifestação, lembro-me de Pinheiro de Azevedo dizer, na sua voz forte e imperativa, que os Presidentes não podiam hesitar, tinham a obrigação de assistir a todas as manifestações que reunissem mais de 10.000 pessoas.