Se me pedissem para escolher uma razão pela qual optaria por Coimbra em relação a outra cidade portuguesa, não conseguiria eleger uma só. Começando pelo aspecto da centralidade, é inegável que Coimbra goza de uma boa localização geográfica. Entre Porto e Lisboa, com o Atlântico aqui perto e com um caminho bastante direto para a Beira Interior (se bem que a precisar de requalificação), só mesmo o baixo Alentejo e o Algarve é que ficam mais afastados. A juntar a isto, é uma cidade servida de bons acessos rodoviários e ferroviários. E para aqueles que gostarem de voar, bem, esses terão de esperar mais um tempo – ou se calhar não muito...
A verdade é que Coimbra é uma cidade de visita obrigatória no nosso país, com um património histórico e cultural riquíssimo, de fazer inveja a muitas capitais de distrito. Curiosamente, parece que não temos essa percepção. A cada dia que passa, esta que chegou a ser uma das capitais do Reino de Portugal entre o século XII e o século XIII, vai perdendo a sua essência e a sua aura. Não se conseguiu consolidar a tradição de uma cidade que se desenvolveu em torno da Universidade e que agora se vê cada vez mais partida e com a sua ligação à Universidade mais enfraquecida.
O que significa afinal ser de Coimbra no tempo presente? Se acharmos que Coimbra é só a sua Universidade estamos muito enganados, porém, não podemos dissociar a matriz cultural desta cidade do estabelecimento de ensino que a fez crescer. A título de exemplo, quando andava no ensino básico lembro-me de que no dia do Cortejo da Queima das Fitas a cidade parava, qual feriado municipal. Os estudantes universitários ‘forçavam’ a entrada nas salas das muitas escolas conimbricenses e ao som de tambores, tachos e panelas de alumínio libertavam os alunos do seu penoso jugo educativo. Com a família assistia-se a mais de uma centena de carros alegóricos que passavam em algumas artérias da cidade e se despediam tristemente para lá do rio. Um percurso de folia e alegria que para uma criança era sinónimo de uma tarde bem passada e de uma saca de chocolates e guloseimas recolhidos que dava para muito tempo (uns poucos dias, entenda-se). Entretanto o dia do Cortejo passou a ser ao domingo, práticas como esta desapareceram e muitas outras coisas mudaram.
Ainda assim, o que importa é ter saúde, não é verdade? E para isso as muitas instalações hospitalares de Coimbra costumam dar boa conta do recado. O pior é se estivermos sem carro e precisarmos de fazer exames em sítios diferentes. A rede de autocarros nem sempre nos conseguirá ajudar e aí só nos resta ir a pé. Contudo, na pacatez segura da cidade do Mondego, quase qualquer hora do dia é boa para caminhar. Até ver, ainda não tive razões de queixa.
Fazendo uma ponte de Santa Clara com a temática da mobilidade, dá para entender que os SMTUC (Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de Coimbra) já tiveram melhores dias. Os atrasos e a pouca frequência diária nalgumas paragens são os principais problemas apontados. Estas podem igualmente ser as melhores desculpas para quem quer um motivo que legitime andar sempre de veículo próprio, contribuindo assim para um forte congestionamento da circulação nas horas de ponta. Seja como for, já se consegue vislumbrar alguma luz ao fundo do Arco da Almedina. O relevo acidentado não permite grandes aventuras em meios de transporte alternativos como a bicicleta. Todavia, surgiu um percurso de ciclovia. A ideia é que este troço ciclável possa estender-se a outras zonas da cidade e, caso haja pedalada, ligar Coimbra a terras vizinhas.
Andemos por onde andarmos, contudo, sentimos que falta coesão e unidade. Nota-se que Coimbra perdeu hegemonia e entusiasmo, e ‘pormenores’ como, por exemplo, a descida de divisão da Académica, só vêm “ajudar à festa”. Nos últimos anos instituiu-se uma certa inércia económica, com muitas empresas a abrir falência, outras a sair da cidade e outras que nem sequer chegaram a instalar-se por cá. Falta de investimento, redunda em falta de modernização que por sua vez leva à falta de oportunidades. Neste clima de maior desânimo muitos decidiram mudar de ares e talvez não regressem.
A cidade assemelha-se a um tronco de uma árvore que foi atacada por uma doença. Por fora parece-nos saudável, mas o seu cerne está a apodrecer. Coimbra tem crescido na periferia, mas tem-se esvaziado no seu interior, com as consequências de abandono e perda de identidade cultural associadas a esta transformação.
As zonas da Baixa, Alta e Sofia (declaradas como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO) conseguem disfarçar a sua apatia com a presença dos muitos estudantes que ‘vão habitando’ as ruelas e becos históricos, principalmente nas terças e quintas à noite. É caricato reparar que em muitas noites académicas se regista o dobro ou o triplo de cidadãos presentes nestas mesmas zonas históricas, do que em equivalente período diurno. Coimbra tem mesmo muitos estudantes de fora, mas isso não chega para esconder por debaixo da capa a perda efetiva de habitantes que se têm registado e o progressivo envelhecimento da população – algo que afeta o país como um todo.
Apesar de nascerem cada vez menos bebés, podemos ficar tranquilos — nascem supermercados, famílias deles até (o Minipreço Family é um exemplo). Em Coimbra existe praticamente uma vintena de supermercados, representativos das marcas presentes em Portugal (só não existe nenhum E.Leclerc). Já não somos mais a cidade dos estudantes, somos a cidade dos folhetos promocionais e a guerra dos códigos de barras está ao rubro. Isto é preocupante, pois estamos a perder a nossa identidade urbana e estamos a arrumar o pequeno comércio tradicional (que dava vida ao centro histórico) na prateleira do esquecimento.
Este texto tardaria em acabar, tal é o número de assuntos a abordar. Ora, conforme prometera na introdução, gostava só de fazer uma última referência a uma parte que também me toca. A cultura e tradições estudantis estão progressivamente a ser trocadas por uma lógica de consumo rápido, de festival, da ‘cultura de copo na mão’ que é visível a todos. A vivência da Academia tem ganho uma vertente mercantilista e os órgãos de associativismo académico têm perdido influência e importância. Sem esquecer que Coimbra é eminentemente uma cidade de estudantes e para os estudantes, torna-se essencial perceber que mudanças (e não falo em rotundas) são necessárias a fim de criar uma cidade mais dinâmica a partir da Universidade e do seu núcleo estudantil.
Não existem soluções óbvias, mas estamos certamente a deixar escapar muito talento, potencial e força de intervenção por entre as frinchas da Porta Férrea. Mais um ano, mais uma Queima das Fitas e é a cidade que fica a chorar de saudade. As lágrimas entornam-se ao som do fado e as mágoas afogam-se num brinde de ‘valores’, com mais um ‘pénalti’. É da praxe. Muito ainda poderá ser feito para trazer à capital da Região Centro a alegria e a magia de outros tempos. Depende de nós, cidadãos, devolver alguma esperança a Coimbra, caso contrário, continuaremos a dar ‘Machadadas’ no futuro desta cidade.
Afonso Paiva tem 23 anos, é ex-estudante e aspirante a humorista. Em casa também aspira. Faz diversas tarefas domésticas e é qualificado. Tem grau universitário, mas gosta de vinhos com pouco grau. Agora a carta de condução tem um sistema de pontos, por isso há que ter cuidado. E quem conta um conto, acrescenta um ponto – é uma das coisas que gosta de fazer, acrescentar pontos. Como este.
A Minha Terra é uma rubrica especial do SAPO 24 em que várias pessoas são convidadas a falar da sua terra, "à boleia" das eleições autárquicas do próximo dia 1 de outubro de 2017.
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