Logo pela manhã, a arena já está ocupada por técnicos e funcionários, encarregues de garantirem que tudo está pronto para a grande estreia. As luzes vão ligando e desligando, e há testes de som. Nos intercomunicadores ouvem-se os próximos passos a dar para poder levantar as cortinas nessa mesma noite.

O Corteo é um espetáculo do Cirque du Soleil criado em 2005, em Montreal, e estreou ontem em Lisboa, uma das paragens da tour europeia do grupo. O espetáculo conta com a participação de mais de cem artistas e vinte colaboradores, todos de nacionalidades diferentes, que se vão cruzando sem chocar num dia de aparente calma.

De facto, todos pareciam saber perfeitamente o que fazer, e não havia margem para fugir aos horários dos ensaios. Além da visita habitual ao guarda-roupa, e dos alongamentos individuais nos tapetes dos bastidores, todos os artistas passaram pelo palco para ensaiar o seu número.

Fábio foi o primeiro a preparar-se, um ginasta brasileiro de 38 anos, que durante as duas horas de espetáculo não parou de entrar e sair de cena, numa troca ágil de personagens, passando também pela de palhaço, o Augusto, um amigo de Mauro, a personagem principal. Augusto "segue as aventuras do Mauro, mas acaba por só fazer 'cagada", ri.

Tendo já uma carreira longa de palco, Fábio é quem coordena os ginastas do grupo, ao ritmo das peripécias do Cirque du Soleil. Passados 15 anos a trabalhar no Corteo, o que mais o entusiasma é também o que mais lhe custa: as maratonas criativas, as rotinas intensas e as viagens “saudosas” não lhe permitem estar o tempo que gostaria com o filho de 10 anos, que vive no Brasil.

Antes de entrar em cena, conta ao SAPO24 que gosta de estar tranquilo, “bem leve, conversar e mandar uma piadinha”, mas no momento de pisar o palco, aquele "olhar de caçador — de foco e trabalho", toma-lhe o rosto, e o ginasta entra em ação. Não antes de "um cafezinho e um pastel de nata", que o fez encantar por Portugal.

Durante a conversa, os adereços estavam espalhados pelo recinto - tubas, bombos, chapéus, ligas, balões e cordas, que eram roubadas e devolvidas numa organização invejável. Fábio agarrou numas pegas e colocou-as nas mãos, para seguir para o ensaio de barras.

Nos bastidores, a cumplicidade e concentração

Ao mesmo tempo, Monize, uma ginasta brasileira, aquecia as articulações enquanto estudava a sua performance aérea, num televisor que passa vídeos de ensaios anteriores. O rigor e a exigência são característicos deste lugar, que vai ganhando vida pelos abraços e incentivos trocados quando dois amigos se cruzam em caminhos com direções opostas.

A ginasta levantou-se e juntou-se a um enorme candelabro, feito de aço e arcos de metal. É aquele o instrumento de trabalho da atleta brasileira, o Lustre, "um aparelho muito louco e especial, que marca o número de abertura do show", exclama.  "Somos quatro ginastas a apresentar-nos no Lustre, uma em cada lateral, e duas ao centro", calhando às mais leves estar sempre penduradas.

O truque só funciona porque "todas confiam muito umas nas outras e estão treinadas e preparadas, sabem o que fazer", diz. Em entrevista ao SAPO24, Monize destaca ainda o "envolvimento do artista além das acrobacias", que torna este espetáculo "especial" e um dos seus favoritos do Cirque du Soleil.

Os próximos a ensaiar foram os trapezistas, mas desta vez nenhum falava português. No entanto, a língua não foi entrave para o grupo mostrar a sua admiração pelo país, e pela seleção nacional. São vários os artistas que passeiam pelos bastidores com camisolas de clubes de futebol portugueses e com referências à capital. O pastel de nada parece continuar a ser o preferido.

Durante o treino aberto aos jornalistas, o grupo experimentou um novo truque, que prontamente decidiu incluir no espetáculo. Duas ginastas, penduradas pelos braços, trocaram entre si e voaram por cima da rede, que nunca precisou de as amparar.

Um circo sobre a morte e a leveza da saudade

Na noite de estreia, o nervosismo já se sentia pelos corredores. Num equilíbrio entre o distópico e o encantador, o espetáculo conta o funeral de um palhaço, que se despede da vida, e do palco, até aceitar finalmente o seu destino. Uma despedida "alegre", animada pelas memórias de Mauro, que "acrobatas, palhaços e músicos" recriam, refere Olaf Triebel, diretor artístico do Corteo, ao SAPO24.

Os momentos mais simples da sua infância - como saltar na cama e brincar com marionetes - são recordados como fantásticas atuações de alguns dos ginastas mais preparados do mundo. Muitos deles atletas olímpicos, que encontraram no Cirque du Soleil um novo desafio.

Das mais de 23 nacionalidades representadas neste elenco, Fernando Cardoso é português. Em entrevista ao SAPO24, o chefe de áudio conta que já fez quatro espetáculos para a companhia, mas reconhece que "este, para fazer uma tournée, é o melhor show".

O Corteo faz 20 anos em abril, e ainda hoje continua a conseguir deixar o público "sem respiração", comenta. A paragem em Lisboa, segundo Fernando Cardoso, era ansiada por muitos artistas, que agora aproveitam para passear pela costa e provar as iguarias da cidade.

Sobre voltar a casa, o técnico mostra-se orgulhoso: "Apesar de infelizmente não sermos muitos portugueses na equipa, é bom trazer o espetáculo e poder mostrar à família, especialmente à minha sobrinha, de quatro aninhos, que vai finalmente perceber porque é que o tio está fora tanto tempo", sorri.

À "história bonita", e "acrobacias cativantes", Fernando Cardoso acrescenta a capacidade de o Corteo falar sobre saudade de um forma "fácil de entender", uma palavra portuguesa, que neste espetáculo ganha outro significado.

A arena cresceu com o Cirque du Soleil e "todos viram coisas diferentes"

De acordo com Olaf Triebel, este é "um espetáculo pensado para toda a família". O cenário foi adaptado para arenas, e para um palco 360º, que roda, permitindo que as acrobacias e ilusões sejam vistas de todos os ângulos. Assim, a história é contada para dois públicos, que estão frente a frente e conseguem ver-se.

Esta estrutura "permite que todos estejam perto do palco, o que não era possível com uma disposição convencional, com todos a olhar de frente para a cena", explica. E acrescenta: "Todos viram coisas diferentes. De onde quer que se esteja sentado, tem-se uma visão completamente distinta de cada acrobacia, o que torna a experiência mais interessante".

A contracenar estão sete músicos, dois cantores e seis atores, além de "todos os tipos de acrobatas, acrobatas no chão, malabaristas, pessoas a girar em grandes arcos, a voar pelo ar", nota o diretor artístico. No fundo, "o importante é que se divirtam", lembra, entusiasmado pela noite que o espera.

Ainda antes de entrar em palco, Fábio disse acreditar que, naquele estreia, o público seria "transportado para o mundo do circo, podendo ver acrobacias do alto nível, e rasgar um sorriso". Agarrados ao balde de pipocas, muitos dos que assistiram estavam emocionados. Já à saída, comentavam as atuações "impressionantes" que tinham visto, e lembravam a bonita história de Mauro.

"Para este espetáculo, quero que pais e filhos se sentem a conversar sobre o funeral deste palhaço, cada um vai ter opiniões completamente distintas, e isso é que é bonito", termina Olaf Triebel, deixando um convite a todos os portugueses para que se juntem à família do Corteo, em Lisboa até ao dia 20 de abril.