Se hoje, uns dias antes de descer a Avenida da Liberdade, me encontro sentada à secretária, rodeada de livros (observa-me um de capa bem vermelha, com letras contrastantes que escrevem “Dicionário da Crítica Feminista”), a escrever este texto, devo-o ao 25.
Vinte e cinco minutos depois de o relógio marcar a meia note de quinta-feira, 25 de Abril de 1974, ouve-se, na Rádio Renascença, a canção que confirmava o arranque da Revolução. É com a referência à “Grândola Vila Morena” que Samuel P. Huntington abre o seu livro, The Third Wave — havia começado a terceira vaga de democratização no mundo moderno, e o golpe de partida tinha sido dado em Portugal.
Quarenta e sete anos depois, a homenagem à conquista democrática prova-se mais importante que nunca. O que esteve em causa, durante os 47 anos, 10 meses e 27 dias que passaram desde o golpe militar de 28 de Maio de 1926 até à Revolução dos Cravos, foi a liberdade — ausente na ditadura, confusa durante a transição, presente em democracia. O que está em causa, hoje, findos 47 anos desde a Revolução, é novamente a liberdade. É a conservação da Democracia Liberal, que se vê crescentemente ameaçada por toda a Europa.
“O Corona Vírus mata a sua primeira democracia”, declarava o Washington Post em Março do ano passado, depois de o Parlamento Húngaro ter dado a Viktor Órban a autoridade para governar por decreto, em nome da guerra contra a Covid-19.
É certo que a pandemia de Covid-19 tem vindo a agravar as desigualdades. A classe média, reconhecida por vários teóricos políticos como um dos principais garantes da estabilidade dos regimes democráticos, está a diminuir a olhos vistos. O encerramento das escolas veio agravar desigualdades sociais entre os mais novos, catapultando muitas crianças para o insucesso escolar. Mas falar-vos-ei, hoje, de um outro grupo que é muitas vezes esquecido aquando da análise do impacto das políticas públicas tomadas neste ano que passou.
Antes do 25 de Abril, as mulheres eram vistas pela lei e — como causa ou efeito — pela sociedade como sendo inferiores aos homens. O outro sexo. Obedecer sempre, deixar-se violentar, governar a casa enquanto o homem governava o país. Hoje, sabemos que a pandemia veio desacelerar o caminho em direcção à igualdade de género. Sabemos, hoje, que existe mais uma geração que terá de pagar o preço da disparidade.
Se é certo que a Covid-19 se tem comprovado mais letal para os homens, é também certo que as mulheres têm sido as principais vítimas das medidas de contenção da pandemia. Na linha da frente do combate, 76% dos 49 milhões de profissionais cuidadores na União Europeia são mulheres. Nos EUA, em termos líquidos, as mulheres perderam 156 mil postos de trabalho. Os homens ganharam 16 mil. Na Europa, o Parlamento Europeu verificou já que a quarentena afectou principalmente os sectores da economia que têm uma sobrerrepresentação feminina, como é o caso da hotelaria, do trabalho doméstico, do retalho.
No plano da economia informal (trabalho não remunerado), as mulheres portuguesas passam cerca de 4h30 por dia em tarefas domésticas, que é mais do dobro do tempo despendido pelos homens a cuidar da casa e dos filhos. A desigualdade de género, no que diz respeito às tarefas domésticas, atira Portugal para o fim da linha dos 36 países da OCDE. O cenário só é pior na Turquia. Claro que, com o confinamento, a pressão sobre as mulheres disparou.
Cerca de 50 mulheres são assassinadas, vítimas de violência doméstica, todas as semanas na União Europeia. Com a pandemia, o número aumentou — as restrições impostas dificultaram também os pedidos de ajuda. Mais de 15 milhões de mulheres são vítimas de violência doméstica a cada 3 meses de confinamento. A ONU diz que é a pandemia na sombra.
O 25 de Abril permitiu que o nosso país iniciasse por fim a construção de um regime democrático. E um dos preceitos essenciais para a preservação de uma democracia liberal é algo que se gritava já desde anos setecentistas: a igualdade de todos perante a lei. A emancipação feminina, a libertação da mulher do papel a que era remetida durante o regime salazarista, tem a sua expressão inicial na Assembleia Constituinte de 1975, em que enfim se positivava a igualdade de facto entre homens e mulheres.
Quarenta e sete anos depois, é crucial que olhemos para os efeitos da pandemia na vida real: vivemos há um ano no confinar-desconfinar, receando o vírus, numa adaptação à nova realidade, e, nesse período, as consequências caíram de forma desproporcional sobre as mulheres. Não há aqui guerra nenhuma. Há só um grupo de indivíduos que está a sofrer mais e que merece especial atenção. Pensar a liberdade neste 25 de Abril significa também reagir aos efeitos das políticas públicas sobre a mulher, pois a democracia, um bem frágil, não sobreviverá sem uma igualdade de todos reconhecida na lei e na sociedade.
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