É fácil fazer o comentário, mais fácil ainda julgar a vida alheia. Ficamos paralisados por segundos, a ver a criança morta nas margens do Mediterrâneo, as imagens do Darfur, as casas destruídas em Alepo. A banalização do mal é certamente isto: ver com alguma dimensão de choque (parece-me cada vez menor, tenho de dizer) por dois segundos, afastar o olhar, ter a noção de que existe, mas como está longe da vista o resto do tempo, está longe do coração.
É assim com os imigrantes em Odemira (vivem mais de 9.500 imigrantes no concelho de Odemira, de acordo com o SEF), é assim com os mariscadores no Tejo que apanham amêijoas (vejam a reportagem no jornal Público de terça-feira da semana passada). As autoridades sabem, o Governo diz que está a monitorizar e tal. Actos concretos para perceber como vivem essas pessoas? Não se vislumbram. Existem pessoas a viver em condições sub-humanas em Portugal e nós não dizemos: “Não, vamos acabar com isto”. Não há um movimento da sociedade civil que venha para as ruas, para a frente da Assembleia da República, dizer: “Façam o vosso trabalho, acabem com as lacunas nas leis”.
O que mais choca é saber que os diversos governos, direita e esquerda, visitaram, em várias ocasiões, as quintas onde estas situações se prolongam e... nada. Não aconteceu nada. É um problema complexo, dizem. Estão a monitorizar. O SEF diz que, na região do Alentejo, no ano de 2018, foram detidas mais de dez pessoas, foram constituídas arguidas 14, e 11 empresas. No mesmo ano, foram sinalizadas 134 vítimas de tráfico de pessoas para exploração laboral. Em 2021, neste momento que vivemos, estão a decorrer 32 inquéritos na região do Alentejo, seis desses decorrem em Odemira. Os inquéritos visam crimes de tráfico de pessoas, de angariação de mão-de-obra laboral ilegal e esquemas ilegais de imigração.
Vivemos num país de voyeuristas, pois, e de cuscas. Não vivemos num país onde a dignidade da vida humana tem um limite abaixo do qual não vai. Isso não temos. Há sempre uma alma a recordar-me que, num país nórdico qualquer, isto nunca aconteceria. Nada de ilegalidade, de exploração laboral, de tráfico de pessoas. Quero lá saber, francamente, o que me importa é o que andamos nós a fazer. A ver passar a miséria dos outros? E isso faz de nós o quê, exactamente? Na Cantata de Paz Sophia de Mello Breyner Andersen escreveu: “Vamos, ouvimos e lemos/ Não podemos ignorar”. Afinal, parece que podemos. Durante uns dias falamos de Odemira, falamos de condições paupérrimas de vida e depois partimos para outra direcção. Como se não fosse importante manter a mão na ferida, como se não fosse crucial resolver.
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