1. Em Dezembro de 2016 comprei uma pilha de romances brasileiros recentes. Aterrara no Rio de Janeiro depois de uma queda que me imobilizou em Lisboa. Já não precisava de muletas, mas ainda não era bom caminhar muito. Ia aproveitar para fazer uma coisa que não fazia há séculos, desde o tempo em que existiam férias: ficar estendida a ler romances. Além disso, estavam uns quarenta graus lá fora. Era bom ler no pino do calor, correndo um pouco as persianas, com a ventoinha a fazer de conta que bastava, porque detesto ar condicionado. Era bom ler noite fora, como se o mundo não estivesse a acabar, como se o resto é que fosse o intervalo. E nesses grandes intervalos havia a cidade, os amigos: o Rio de Janeiro. Ou havia o Rio de Janeiro ainda.
Larguei um romance muito premiado às primeiras páginas, outro um pouco mais adiante. Mas certa noite abri este e li:
“No começo, nosso planeta era quente, amarelento e tinha cheiro de cerveja podre. O chão era sujo de uma lama fervente e pegajosa.
Os subúrbios do Rio de Janeiro foram a primeira coisa a aparecer no mundo, antes mesmo dos vulcões e dos cachalotes, antes de Portugal invadir, antes de Getúlio Vargas mandar construir casas populares. O bairro do Queím, onde nasci, é um deles.”
E pronto, já estava. Um pouco como num encontro de carne e osso, quando o coração não sabe se pára, se dispara. Segui pelas 153 páginas seguintes num espanto progressivo. De onde vinha aquela aventura, aquela frescura? Aquela invenção (do subúrbio do Rio de Janeiro, do país, da língua, da literatura)? Era uma obra-prima. Mas não apenas: obra-prima de um rapaz.
Foi esse rapaz que morreu anteontem aos 29 anos. Não me lembro, no meu tempo de vida, de outro cometa assim na prosa de língua portuguesa (e não apenas prosa). Chamava-se Victor Heringer.
2. Isto não é um obituário nem a memória de uma amiga (não chegámos sequer a conversar ao vivo). Jornalistas, críticos, editores, os próximos estão a fazer tudo isso, no Brasil. Será só a crónica de um encontro que tive, e em grande parte continua, porque é independente da morte aí desde a Mesopotâmia, onde nasceu o primeiro épico daquele “que viu o abismo”.
E esse encontro continua a poder acontecer a qualquer um, consoante a sua circunstância, a partir deste mês de Março de 2018 em que Victor ia fazer 30 anos.
3. Há leituras que largamos por, vá lá, incompatibilidade de génios. Outras, só porque nos aconteceu isto ou aquilo, não estamos capazes (e a maior parte das vezes não estamos). Muitos livros perdem-se assim, tal como pessoas se perdem assim. Mas o oposto também é verdadeiro, embora mais raro: porque nos aconteceu isto ou aquilo estamos de peito aberto, venha daí a flecha.
Naquele derradeiro Verão carioca, torcer um tornozelo ajudou-me a ler romances em série. Mas havia ajudas anteriores, incluindo uma perna. Eu passara tanto tempo sentada a escrever um romance que a perna esquerda entrou em greve. Enfim publicado o dito, escrever era tudo o que eu não queria, e romances o que menos lera entretanto, sobretudo contemporâneos. Portanto, ao aterrar no Rio pus-me a lê-los como uma convalescente: do tornozelo, da perna e do juízo, depois do destrambelhamento que é passar uma data de tempo a viver vidas que só existem na nossa cabeça. Algo que só acontece com o romance, mesmo. Nos dias da graça será incorporação, mas em todos os outros anda perto de estar lelé da cuca.
Posto isso, depois disso, era impossível ler romances da mesma maneira. De certa forma, era como se um filtro tivesse desaparecido, ou alguém tivesse tirado a rede da janela. Lugares, personagens, linguagem, engenharia, onde pôr o coração, tudo parecia saltar da página, nítido. Foi nesse momento que o encontro com o Victor se deu.
E ele ainda veio com dois abracadabras, logo no começo: o romance passar-se no Rio e o narrador dizer “antes de Portugal invadir”. Ao segundo parágrafo eu já estava lá dentro. Pois era mesmo daí que eu vinha.
4. Esse romance de Victor Heringer chama-se “O Amor dos Homens Avulsos”. Não o comprei por causa do título, mas porque ouvira falar do autor, amigo de amigos.
Ontem uma amiga desencantou umas fotografias de 2012 no Rio de Janeiro em que estamos todos no mesmo átrio de museu, depois no mesmo boteco, mesas contíguas, mas não me lembro do Victor. Nas fotografias é aquele rapaz alto, de camisa, cabelo arrumado, sem tanta pinta de carioca, ou do festivo clichê. E era de facto carioca, com avôs no subúrbio. E de facto sem clichê em tudo o que escreveu, tão supernovo. Em 2012, fazia parte de um círculo de poetas performers cariocas, ainda não publicara o seu primeiro romance, “Glória”. Tinha só, caramba, 23 anos. Então, ouvi falar do que escrevia apenas depois de “Glória”.
Mas quando voltei ao Rio, e comprei a pilha de romances, não achei “Glória” na livraria. O que havia era o segundo romance, saído havia pouco, este “O Amor dos Homens Avulso”. E isso foi a ajuda extra ao nosso encontro. “Glória” (que depois li) já é um acontecimento, mas talvez o esforço lhe pese. “O Amor dos Homens Avulsos” parece que apareceu. Não era só um livro, era uma literatura.
Além destes dois romances, Victor Heringer publicou a colectânea de poemas, “Automatógrafo”, e um par de livrinhos pequenos. Há também uma quantidade de crónicas, textos avulsos, poemas visuais, entrevistas que foram saindo em blogues, revistas, regularmente na revista “Pessoa”. E tudo espanta pelo vivo que está. Victor leu imenso, isso era claro, tinha muito passado. Mas sobretudo não estava parado, ia em várias direcções, praticando essa ampliação de identidades que associo tanto ao DNA do Brasil, desde a cosmogonia indígena aos terreiros de candomblé e umbanda. Lendo coisas soltas dele agora, acho as referências à escrita como incorporação, a uma espécie de canibalismo em que tudo é digerido no estômago do livro, e percebo ainda melhor o encontro com ele.
Ao aterrar no Rio no fim de 2016, a imagem de um terreiro onde baixam os espíritos, e os vivos dançam com os mortos, era a que me parecia mais perto de um romance. E do Rio fui para a Bahia, já levando o terreiro do Victor, aquele subúrbio carioca mítico-real, aquele amor desarmante entre dois meninos, aquela língua tão viva, traquina, trágica, não dando tréguas.
Ele não estava interessado em achar um estilo. Era o seu estilo, sempre em deslocação. Não por acaso, aliás, Victor foi um viajante.
5. Tantas vezes quem escreve (canta, filma, etc) não chega a saber o que aquilo fez diferença a quem leu (viu, ouviu, etc). Pode ser uma diferença decisiva. Quando acabei de ler “O Amor dos Homens Avulsos”, fiz um pequeno post de Facebook sobre essa alegria, tagando o nome do autor, 16 de Dezembro de 2016, 12h15. Passado um tempo, Victor apareceu a agradecer, com aquela gentileza de que tanta gente fala. “Ganhei meu Natal :-)”, escreveu ele, metido a nada. Os brasileiros têm esta palavra, metido. Em Portugal, diríamos convencido, com a mania. O Victor parecia saber que estava para além disso. Não precisava de fazer de conta que não era óptimo gostarem dele. Claro que é óptimo. A tragédia é que não chega.
Tragédia será a palavra, a toda esta distância do Atlântico, lendo que o corpo dele foi encontrado por baixo da janela onde morava, em Copacabana. Namoro firme, emprego novo, enfim respiro financeiro, beleza, juventude, dom sem tamanho, reconhecimento crítico e de todos, como tudo pode não bastar. Tragédia também nossa, é o que parecem dizer os deuses. Porque se tudo não bastava para Victor, dotado de tanta graça, como bastará para nós?
6. Essa é a parte do encontro que não pode continuar, a do diálogo. No dia 21 de Dezembro escrevi-lhe uma mensagem a agradecer um pouco mais “O Amor dos Homens Avulsos” e a dizer que já tinha “Glória”. Ele respondeu com a mesma alegria de não-metido a besta, ponto de exclamação, bonequinho a sorrir, mandando uma foto de onde estava: “O segundo pico mais alto do estado do Rio”, Pico da Caledónia. Era o solstício de Verão, reparo agora.
Há um poema visual de Victor em que ele fala de como é preciso guardar tudo contra a morte, contra o “varejão das almas, do coração e da cabeça!”. Ainda bem que é possível guardar também estas palavras, estas imagens. Foi a primeira pista que tive de como Victor era de trilhos, escaladas, viagens longas. Estava naquele bifurcação, que me soa familiar, entre ter de sentar para escrever e ter mesmo de partir. Citava aquela frase de Neruda: muito melhor ser carteiro, escritor é muito barrigudo.
Completamente verdade. E suspeito que Victor — que escreveu um poema fulminante chamado “Por que não sou poeta” — também sabia como é preciso não ser barrigudo. Quer dizer, sentar demais.
7. O fim não só está próximo, como sempre esteve, só o fim nos une, diz ele nesse poema visual. Foi sempre contra a morte que cantámos. A tragédia tem a ver com a vida, como tudo não basta. Mas ele escreveu o bastante para, agora que já cá não está, ter escrito imenso. Escreveu imenso para o que viveu. Talvez demasiado para o que era possível viver. “É a vida comum que tem que morrer, diz n’ “O Amor dos Homens Avulsos”.
Ninguém sabe onde viverá esse “monstro que pesa o coração dos homens depois que morrem”. Mas sabemos o que Victor nos disse para fazer depois que ele morresse: “Diga que eu era alegre escrevendo. Sou feliz escrevendo, assim como só sou feliz em viagem, em trânsito. Deslocável. A alegria de encontrar um novo modo de dizer, um novo processo textual ou um novo personagem é a mesma de descobrir uma mesquita num beco impronunciável, um amigo de albergue ou uma trilha de montanha onde torcer o tornozelo.”
Foi a convalescer de um tornozelo que o encontrei. Não posso mais trocar mensagens com ele, tenho os livros. A última coisa que fiz antes de voar de volta a Lisboa, em Janeiro de 2017, foi ir comprar à própria editora “Automatógrafo”, a colectânea de poemas do Victor. Assim me despedi do Rio, até hoje. Todo o leitor tem os livros. Que o único luxo da literatura seja não depender da morte.
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