É difícil dizer em que “sector” do mundo globalizado circulam as maiores quantidades de dinheiro. Muito dinheiro - mesmo muito, para lá da nossa imaginação - implica sempre uma certa dose de discrição, mas há “business” que naturalmente são fiscalizados por diversas entidades reguladoras, como são os casos da energia (petróleo e gás, sobretudo) das chamadas empresas tecnológicas (software, videojogos, etc.) e dos investimentos legais (fundos, bancos, empresas de investimento).
Não quer dizer que não existam transações secretas, como é o caso do petróleo russo, ou depósitos em paraísos fiscais em que é impossível detetar os verdadeiros donos; contudo, pode ser impossível para o grande público e a comunicação social levantar as quantias envolvidas, mas existem agências governamentais e inter-governamentais, algumas delas também bastante discretas, que lá conseguem ter algum sucesso neste jogo de gato e rato. O mesmo se pode dizer da indústria de armamento, onde circulam vários mercados paralelos (quer comprar mil kalashnicov? No problem!) e as autoridades fiscalizadoras e de espionagem dos diversos países conseguem manter uma contagem muito aproximada, muitas vezes em competição umas com as outras.
Há ainda os mercados que não é de todo possível detetar os volumes: as drogas, certamente, as apostas online, os piratas informáticos que vivem de resgates, a dark web e, como diria o Ricardo Araújo Pereira, “tudo e mais não sei quê”.
Falta aqui, nesta lista em que com certeza me esqueci de alguns sectores, o mercado secreto da Arte. Existe um mercado não secreto, constituído pelos marchants, galerias e museus, que é conhecido e, supostamente, declarado aos impostos. (O “supostamente” é porque, embora se saiba o valor de uma peça milionária, pode não se saber quem a comprou e, sobretudo, onde é que esse comprador arranjou o dinheiro.) É um mercado conhecido, no sentido em que sabemos que o quadro “Salvator Mundi”, de Leonardo da Vinci, foi comprado por Mohamed bin Salman por 450 milhões de dólares.
Há uma lista, extensa, de obras de arte catalogadas, que aparecem em leilões, ou são negociadas por marchands de reputação lendária. No princípio do século passado o mais famoso era Joseph Duveen, tão famoso que quando um quadro estava na sua posse dizia-se que era “um Duveen”. Hoje, o mais cotado é Larry Gagosian. E é impossível esquecer Leo Castelli, o galerista que colocou a arte contemporânea (pop e hiper-realista) no mapa.
Dentro da legalidade e com pin no Google Maps estão também as casas Christie’s e Sothebyy’s que competem nos leilões mais exorbitantes do mundo da arte. Há a acrescentar marchands por conta própria, no género de Duveen, que andam por todo o mundo a comprar e a vender. Em todos os casos, existe sempre um cuidado muito especial na legitimidade das obras. Quer dizer, as esculturas de Henry Moore estão todas catalogadas, mas uma peça grega da Idade Clássica pode ser uma falsificação impecável, ou pode ser verdadeira e ter uma proveniência duvidosa - roubada pelos nazis ao legítimo dono, por exemplo.
(Nem vou entrar aqui na questão da arte roubada pelos europeus na época colonial, que hoje é objeto de grandes disputas se deve ser devolvida aos países de origem. Foi saqueada, de facto, mas, argumenta-se, os países que agora as reclamam nem sequer eram países nessa altura, e se não tivesse sido levada para o Louvre, o British Museum ou o Deutsch Museum teria provavelmente desaparecido, destruída, ou escondida em coleções particulares.)
Então, chegou a altura de falar do “mercado secreto” da Arte. Existe, porque a Arte hoje tem um valor colossal: é mais seguro investir num Rubens que ninguém conhece do que em ações e obrigações soberanas ou de empresas que estão na berra agora e falidas amanhã. A Arte, se for legítima, boa e, sobretudo, rara, é um valor mais garantido do que o ouro ou o imobiliário. (E também mais fácil de esconder e transportar…)
Como é que se esconde uma peça? Nas caves da mansão familiar, por exemplo. Mas como é que se escondem centenas, milhares de peças, mantendo-as ao mesmo tempo ignoradas - como se nunca tivessem existido, ou desaparecidas há muito? Uma boa opção é o “Porto Livre de Genebra”, fundado em 1888 e que consiste num conjunto de edifícios do tamanho dum bairro, onde qualquer pessoa pode guardar um valor sem declarar às autoridades. Diz-se, por exemplo, que estão lá guardadas milhares de garrafas dos vinhos mais caros do mundo, zilhões de carates de diamantes em bruto, dezenas de milhares de peças de arte antiga, clássica e moderna.
Segundo a especialista Marie Maertens os armazéns climatizados e superseguros contêm cerca de 1,2 milhões de obras de arte, com um valor estimado em 100 mil milhões de dólares. A título de comparação, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque tem cerca de 200 mil obras de arte.
Que se saiba, há também um bunker atómico nas montanhas Catskill, um cofre gigantesco algures em Paris e vários outros armazéns climatizados e protegidos contra tudo em várias partes do mundo.
Então, já sabemos que é fácil guardar, ou melhor, esconder, obras de Arte (e garrafas de champanhe, barras de ouro, etc) em sítios especialmente dedicados a essa função, com garantias oficiais de que ninguém vai perguntar o que lá está e a quem pertence. Claro que as entidades que gerem estas instalações garantem que está tudo catalogado, só que o catálogo não é público, só pode ser obtido por meios judiciais - e é preciso saber especificamente o que se está à procura, uma tarefa difícil, não sabendo o que lá está…
É interessante constar que uma peça pode ser comprada e vendida várias vezes sem nunca sair do armazém. Trata-se de um investimento, portanto, e não um objeto para ser apreciado pelo seu valor estético. O objetivo destes negociantes é ganhar dinheiro, não promover as artes.
Uma parte desta historia sombria veio à luz do dia precisamente por causa da principal razão para ganhar e ter muito dinheiro: a ganância.
Um dos grandes protagonistas deste mercado - são poucos - é a família francesa Wieldenstein. Desde a segunda metade do século XIX que cinco gerações acumularam uma coleção incrível, que inclui obras de Caravaggio, Fragonard, Manet e muitos outros pintores e escultores.
O primeiro Wieldenstein, Nathan, começou a comprar arte da época napoleónica (pense em Ingres, ou Fragonard) numa época em que os franceses, fartos de imperadores, não apreciavam o estilo. O segundo Wieldenstein, Georges, comprou impressionistas, numa altura em que o Impressionismo era considerado má arte. E assim por diante. Estes senhores sabiam em quem apostar. Compravam barato numa geração e vendiam caro na geração seguinte. Calcula-se que em 1978 a família possuía dez mil obras de arte.
Como convém, os Wieldnstein valorizavam particularmente a discrição; fora do mundo da Alta Arte (os bilionários que podem comprar e os negociantes que querem vender, tudo sem que o público saiba) ninguém os conhecia e não tinham uma grande vida social que os colocasse nas páginas dos tabloides. Viviam em mansões imensas e discretas, com um estilo de vida que inclui criados de libré a servir o almoço.
Aqui entra a ganância. Daniel Wieldenstein (1917-2001) casou e teve dois filhos, Alec e Guy. Posteriormente divorciou-se e voltou a casar com uma modelo muito mais nova, Sylvia, que alindava a mansão, gostava de cavalos e não sabia assinar um cheque.
Quando Daniel morreu, os dois filhos, que poderiam muito bem deixar Sylvia viver com uma pensãozinha de uns milhões de dólares (ou euros), resolveram espoliá-la e fizeram-na assinar “uns papéis” que ela, já velha e sempre tonta, não sabia bem o que eram. Resultado: Sylvia viu-se na rua, sem dinheiro para comer, sem cavalos, sem nada.
Para azar dos dois irmãos, uma advogada, Claude Dumont Beghi, interessou-se pelo destino de Sylvia e começou uma investigação sobre os bens da família. Resultado: um processo judicial que levou a público toda a história da família. Descobriu-se que Guy, entretanto falecido, tinha feito o mesmo com a sua mulher, Liouba Stoupakova, outra modelo linda e que também não sabia assinar um cheque.
Alec, agora com 77 anos, de repente viu todo o secretismo familiar exposto na praça pública. A questão é que, atrás dos tais documentos que os irmãos fizeram a madrasta assinar, foi preciso levantar o espólio da família, avaliado em milhares de milhões. Isto em mansões, ecuries de cavalos, um rancho no Kenia e outras amenidades - porque o valor das tais milhares de obras de arte está por avaliar. Possivelmente nunca o será, uma vez que estão nos tais cofres na Suíça e nos Estados Unidos, além de outros paraísos fiscais por detetar.
Os procuradores franceses alegam que os Wildensteins são responsáveis pela “mais longa e mais sofisticada fraude fiscal na história contemporânea francesa”, por meio de um complexo de empresas registadas nas Bahamas e numa ilha britânica no Canal da Mancha. E as Finanças, que se interessam sempre por estes casos, dizem que Alec lhes deve 250 milhões de euros.
Moral da história: invista em Arte, que é o melhor negócio, mas não tente roubar a sua madrasta. As pessoas enganadas podem ser vingativas!
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