O exemplo de coragem de desobediência civil vem de uma China que ainda não é completamente China: Hong-Kong tem por mais 28 anos um alto grau de autonomia na gestão dos assuntos internos. Mas quem governa em Hong-Kong é uma mulher do aparelho de poder de Pequim. A rua, comandada pelas novas gerações, forçou essa chefe do governo a um inédito recuo com pedido de desculpa, e, agora, está a exigir-lhe ainda mais, que se demita. O regime chinês de Xi Jinping está confrontado com um complexo desafio: o equilíbrio entre a afirmação de autoridade e a especificidade democrática de Hong-Kong, dentro de um sistema tradicionalmente repressivo.

Muitos dos que agora desfilam no centro político e de negócios de Hong-Kong já tinham feito parte das cerca de 500 mil pessoas que há duas semanas também se juntaram para celebrar a geração anterior que há 30 anos ousou clamar por liberdade na Praça Tiananmen, em Pequim.

O sistema colonial britânico deixou instalada uma cultura democrática no território que agora está em processo de retorno à China.

Em 2014 já tinha havido a revolta dos chapéus de chuva, instrumento que serviu não só para os proteger da chuva, também foi escudo frente às granadas de gás lacrimogéneo. Nesse protesto de há cinco anos, milhares de pessoas – uma vez mais, maioria jovem – montaram acampamento nas principais avenidas da Baixa de Hong-Kong. O que o movimento Occupy Central, exigia, em atmosfera ora romântica, ora exaltada, era a realização de eleições livres: obter o direito a eleger por sufrágio universal aqueles que governam, em vez de ser Pequim a designar os seus comissários. Para decidir por eles. Pequim não cedeu. Ao 79º dia entrou em cena a polícia e multiplicaram-se detenções. Alguns dos contestatários foram levados para julgamento na China continental.

As manifestações de agora começaram por ser pela exigência de que isso não possa voltar a acontecer: que nenhum detido em Hong-Kong possa ser extraditado para julgamento e prisão na China continental. Essa lei que o governo de Hong-Kong pretendia aprovar expunha os locais à perversão do sistema judicial chinês, sob controlo judicial do partido único, que não hesita para reprimir advogados, artistas, jornalistas, ativistas das redes sociais ou gente de negócios que assuma algum modo de contestação política ao regime.

Desta vez, face à imensa pressão da rua, o poder político chinês viu-se obrigado a recuar. Este protesto de agora volta a usar símbolos, como é costume nas culturas orientais. Depois dos chapéus de chuva de há cinco anos, agora, flores brancas: crisântemos, lírios e margaridas. As flores brancas também remetem para o luto por Leung, o manifestante que apareceu morto no fim de semana, junto a andaimes de obra. Ao lado de uma inscrição onde se lia “Make love No shoot! No Extradition to China.” A polícia de Hong-Kong considera a morte um suicídio, mas muitos dos manifestantes desconfiam. A morte de Leung terá contribuído para ampliar o número de manifestantes que o respeitado diário South China Morning Post estima em cerca de dois milhões de pessoas.

Leung tornou-se um mártir para o movimento que denuncia a invasão de Hong-Kong pelo autoritarismo do regime comunista de Pequim, em violação do compromisso de “Um país, dois sistemas”, até 2047, conforme consagrou o acordo que enquadrou o retorno de Hong-Kong à China, em 1 de julho de 1997. Os ativistas deste movimento democrático sentem-se fortalecidos: depois de terem conseguido a retirada da lei de extradição, reclamam a demissão da chefe do governo.

Está anunciado que as manifestações vão continuar, sempre como flores brancas – símbolo, também, de protesto pacífico. Está para se ver se não vão ter de enfrentar brutalidade policial.

Hong-Kong tem a fama de ser uma bolsa de liberdade na Ásia. A tradição de protesto é um pilar da vida política em Hong-Kong, há mais de meio-século. No tempo da administração britânica houve muitas manifestações, sobretudo no tempo das complexas negociações sobre a transição. Mas também por reivindicações económicas impensáveis na China: em 1966, após o anúncio de aumento de preço do bilhete dos “ferries”, quatro dias de revolta atiraram 26 pessoas para o hospital e uma veio a morrer. No ano seguinte, o anúncio de fecho de uma fábrica com perda de centenas de postos de trabalho, desencadeou protestos violentos, até à bomba, que causaram 51 mortos.

A tradição de manifestações em Hong-Kong continuou nas décadas seguintes, com modos pacíficos. Em 21 de maio de 1989, milhão e meio de pessoas – um quarto da então população de Hong-Kong – desfilou em apoio ao movimento pela democracia que então se levantava a partir da capital chinesa. Duas semanas depois aconteceu o massacre em Tiananmen. Desde então, todos anos, em 4 de junho, centenas de milhar de habitantes em Hong-Kong junta-se em vigília de celebração dos que combatem pela liberdade. Muitos dos manifestantes passam a noite deitados sobre o asfalto, a evocar os esmagados em Tiananmen.

A eleição, em 2012, de Xi Jinping para secretário geral do PC chinês, passando, portanto, a ser o homem todo-poderoso do regime, foi celebrada pelo movimento democrático de Hong-Kong como uma vitória. O discurso de Xi sugeria tolerância democrática e atenção às reivindicações das jovens gerações. Xi tem cultivado as relações internacionais e apostado em grande abertura das fronteiras da China.

A primeira deceção veio em 2014, quando Pequim rejeitou as eleições livres em Hong-Kong. Muitos ativistas foram detidos e 17 ainda estão presos.

Um finalista de um curso de comunicação numa das universidades de Hong-Kong comentou por mail nesta segunda-feira que “há grande liberdade económica em Hong-Kong como na China continental, mas o sistema de poder controla tudo, é muito restritivo sobre os media e sobre os meios universitários; nestas áreas, a liberdade é condicionada.” Este mesmo jovem quase licenciado assume impaciência, mas ao mesmo tempo confiança: “Não vão conseguir travar a resistência democrática em Hong-Kong, por isso Hong-Kong vai continuar a ser como sempre foi nestas últimas décadas.”

Este jovem de Hong-Kong avisa que já está a combinar com vários companheiros o lugar de encontro para a próxima manifestação. Vão todos erguer lírios brancos e gritar palavras de ordem que têm em fundo o ideal de Liberdade.

VALE VER:

Nas principais cidades espanholas entrou em funcionamento uma geringonça com orientação política oposta à portuguesa: os socialistas foram primeira força política em quase todas aquelas cidades mas os três partidos da direita juntaram-se para governar grande parte dos municípios. Há muito incómodo entre eleitores PP e Ciudadanos pelo braço dado aos ultras do Vox.

Há Trump nos EUA. Putin na Rússia. Xi na China. Merkel está de saída na Alemanha. Macron em dificuldade em França. Salvini pujante como Orbán italiano. Como será o Reino Unido com Boris Johnson como primeiro-ministro?

Que lástima que um diário onde todos os dias encontramos jornalismo de excelência, como acontece em The New York Times, escolha posicionar-se do lado do medo e deixar de publicar cartoons políticos.

Dois jornais feitos em território chinês: o SCMP, feito em Hong Kong, tem este site; o Renmin Ribao, em Pequim, tem esta primeira página.