A notícia caiu como uma bomba.
Primeiro, os judeus, que foram vítimas de um dos maiores genocídios da História (talvez o maior, se se pudessem verificar os números de todos eles), estarão a fazer com os palestinianos o que os nazis fizeram com eles?
Segundo, porque é que foi a África do Sul, um país com uma história de racismo institucionalizado e não tem qualquer relação com os palestinianos, a apresentar a queixa?
Genocídio é um crime perfeitamente definido no Direito Internacional: extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso. Foi legalmente caracterizado em 1948 e adotado na fundação do Tribunal Penal Internacional, em 2002, reconhecido por 123 países. (É interessante notar que as sete nações votaram contra o projeto (EUA, China, Israel, Iêmen, Iraque, Líbia e Qatar) e outras 21 abstiveram-se.)
Se a definição é simples, o conceito rapidamente se complica, como tudo o que é legalês: há os Crimes Contra a Humanidade: “atos cometidos no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil”, e os Crimes de Guerra: atos cometidos que violam as leis e costumes aplicáveis em conflitos armados (por exemplo, as Convenções de Genebra).
Sem entrar nos floreados jurídicos, qualquer pessoa percebe o conceito de genocídio puro e simples, seja em tempos de guerra ou de paz. Convém salientar que na grande maioria dos textos sobre genocídio, aquele cometido pelos nazis contra os judeus é sempre apontado como o exemplo mais flagrante, isto porque o genocídio como política oficial de um Estado é muito mais hediondo. (Há casos de genocídio nunca assumido pelo Estado infrator, como, por exemplo, o dos arménios pelos turcos.) Este ponto é importante, porque a queixa da África do Sul considera que este caso corresponde ao primeiro modelo, usando como prova afirmações públicas de membros do Governo de Israel.
Embora não sejam citados na queixa, os Estados Unidos são considerados cúmplices e, tal como Israel, consideraram imediatamente o caso “sem mérito (sem fundamento, em legalês), contra produtivo e sem quaisquer bases factuais”. O Governo de Israel mostrou-se ultrajado e alegou a mesma coisa.
Nas 84 páginas da queixa, a África do Sul é bastante minuciosa, citando afirmações de dirigentes israelitas, nomeadamente Netanyahu, insistindo que os israelitas se lembrem do Antigo Testamento sobre o massacre de Amalek: “Não poupem ninguém, matem igualmente homens e mulheres, crianças e bebés”; o ministro da Defesa, a jurar que Gaza nunca mais voltará a ser o que era “porque eliminaremos tudo”; o ministro da Energia e Infraestruturas, a afirmar que "eles não irão receber uma gota de água ou uma única bateria até deixarem este mundo”. Como mencionou a jornalista Megan Stack, do New York Times, “ao falar abertamente na destruição de Gaza e dispersão dos seus residentes, os líderes de Israel afirmaram publicamente aquilo que noutros casos de genocídio sempre foi escondido ou negado”.
O espanto internacional não é somente pela queixa, que terá de ser provada legalmente; é pelo facto, já de si chocante, de haver matéria suficiente para considerar que os judeus possam ser genocidas — um povo vítima de várias genocídios e que faz questão de o lembrar a toda a gente em todas as oportunidades. Há incontáveis livros, filmes e outros suportes a contar em pormenor o que os judeus sofreram, “para que nunca seja esquecido”, como eles próprios insistem.
Mesmo entre os judeus — tanto os que vivem em Israel como no resto do mundo, especialmente nos Estados Unidos — há um grande mal-estar, quando não oposição declarada, ao que o Governo de Netanyahu está a fazer em Gaza. Claro que os judeus norte-americanos, mesmo percebendo o chocante das ações da IDF (Forças de Defesa de Israel), não deixam de levar o executivo americano a apoiar incondicionalmente Israel, numa altura em que, com eleições à vista, não convinha nada a Biden uma escalada de violência na região. Para os árabes e muçulmanos, os dois países são a mesma coisa, igualmente “demoníacos”, injustos, brutais, etc. Os norte-americanos até há pouco tempo limitavam-se a subsidiar e enviar equipamento e munições para os israelitas, mas agora estão cada vez mais envolvidos no processo, com as suas bases noutros países a ser atacadas por grupos islâmicos radicais e com o bloqueio do Houthis ao Mar Vermelho. Para nós, europeus, é fácil distinguir os dois países, Israel e EU., mas para o “eixo de resistência” montado por Teerão, são iguais. E mesmo para países muçulmanos que não pertencem ao “eixo”, como o Egipto ou a Jordânia, os norte-americanos são tão odiosos como os israelitas.
Inicialmente houve, no mundo em geral, uma certa simpatia pelos israelitas, por causa dos bárbaros ataques e sequestros do Hamas a 7 de outubro. Contudo, à medida que o tempo passa e as IDF fazem Gaza voltar à Idade da Pedra, matando indiscriminadamente toda a gente, o mundo em geral está a mudar de perceção. Por um lado, toda a gente já percebeu que não é matando habitantes de Gaza aos milhares que se conseguem libertar os cento e tal israelitas ainda reféns do Hamas; por outro lado, também não tem qualquer justificação os colonos israelitas da Cisjordânia agredirem e matarem os seus habitantes muçulmanos; e, finalmente, tem-se lembrado a história da criação do Estado de Israel e do que isso implicou para quem lá vivia. Já ficou claro que a única solução possível para o conflito — a criação de Dois Estados — não está nos planos de Netanyahu e do seu governo ultra-direita, aliás ele próprio afirmou-o com todas as letras. (Os Estados Unidos têm tentado convencê-lo, mas como não podem obrigá-lo, dando menos armamento, por exemplo, por causa do lóbi judaico já mencionado, não serve de nada.)
Não parece haver dúvidas da intenção de genocídio em câmara lenta, pelo menos desde que os famosos acordos de Oslo (que estabeleciam os Dois Estados) foram abertamente abandonados, não ficando outra hipótese de uma Gaza e Transjordânia sem governo próprio, ocupadas pelos israelitas e isoladas do mundo. Pode levar 10, 20, 100 anos, mas, se os planos da ultra-direita israelita não se alterarem, os palestinianos acabarão inevitavelmente por morrer de fome, falta de medicamentos e assassinatos casuísticos.
Quanto ao facto da caracterização de genocídio implicar a vontade expressa dos opressores, também já não há dúvidas.
A primeira questão perplexante é, portanto, como as vítimas de ontem se tornaram os genocidas de hoje. A segunda é porque é que foi a África do Sul que tomou a iniciativa.
Note-se, entre parêntesis, que uma decisão do TPI é apenas moral, não tem efeitos práticos. Aliás, as Nações Unidas já condenaram Israel em dezenas de ocasiões, sem resultado. É o país que mais moções de censura recebeu na Assembleia Geral, de longe. (Nós, portugueses, recebemos algumas na época das Guerras Coloniais, mas não se compara.)
Muitos observadores consideram que a África do Sul tomou esta iniciativa por três razões. Uma, seria para o Governo de Cyril Ramaphosa desviar as atenções dos problemas internos do seu próprio país. Outra, seria porque a África do Sul, tendo sofrido barbaridades nos tempos do Apartheid, que marcar que já não vive nesses tempos. A terceira, mais vaga, mas provavelmente mais forte, é que o país está a servir de ponta de lança para aquilo a que se chama “o Sul Global”, os países ao sul do Equador, na África, Ásia e America que foram sempre desprezados nas relações internacionais e que agora se querem afirmar como um bloco com interesses específicos. Até têm um nome próprio, os BRICS. Não existem formalmente, no sentido da União Europeia ou da Associação Ásia-Pacífico de Economia Aplicada, mas caminham para uma política internacional mais em uníssono.
Pode ver-se o que se está a passar no Médio Oriente sob muitos ângulos: a expansão do Irão, que pretende dominar a região; o ódio visceral dos muçulmanos aos judeus, os cordelinhos da China ou da Índia, cada uma tentando superar a outra em influência; e mais outras teorias, provavelmente todas com algo de verdadeiro.
Mas o que é indiscutível é que Israel passou de país cercado de inimigos para país agressor dos seus vizinhos mais fracos. O julgamento no TPI pode levar anos e não chegar a conclusão nenhuma; além disso, a conclusão não tem efeitos práticos. Mas o facto de os judeus, agora também israelitas, serem acusados de genocídio é uma demonstração horrível de que o mundo está a mudar, e não é para melhor.
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