AFRODISÍACO. Eu sei, eu sei: a letra A devia ser a letra de «árvore de Natal», mas deu-me para isto. Porquê? Porque, há uns tempos, descobri isto: o mês de Setembro é o mês em que nascem mais bebés. Fazendo uma simples conta em marcha-atrás, percebemos que a única explicação é esta: o Natal é afrodisíaco. São os bolos, o aconchego, o frio lá fora, a lareira a crepitar – talvez mesmo uma compulsão religiosa para cumprir a ordem divina do «ide e multiplicai-vos»… Ir, não vamos. Ficamos em casa. Mas multiplicamo-nos.
BOLOS. O que também se multiplica – e não é pouco – é a cintura de cada um de nós, atropelados como somos por doces e pelo engano do «é Natal, ninguém leva a mal» (é assim, não é?).
CRISTALIZADA (FRUTA). Sem sair do tema dos bolos, há um mistério que me apoquenta há anos: não conheço uma única pessoa que afirme gostar da fruta cristalizada do bolo-rei. E, no entanto, ela lá continua. E os bolos continuam a ser comidos. Mistérios de Natal.
DESEMBRULHOS. Muito se desembrulha no Natal: os presentes, em alegres sinfonias de papel rasgado – e (ver a letra A, acima) a roupa da nossa companhia nocturna. Dizem – que eu cá, depois da Consoada, vou dormir.
EMBRULHOS. Ah, o belo prazer de embrulhar com esmero uma prenda só para ver o embrulho amarfanhado por mãos sôfregas de ver o que lá está dentro. O esforço que fazemos para que o embrulho fique perfeitinho, sem pontas feias, com a fita-cola muito bem disfarçada. E, depois, sorrimos quando ninguém repara no brio do embrulho. Sorrimos, porque é mesmo assim que são as coisas.
FILHOS. O Natal é importante enquanto somos crianças. Depois, começamos a entrar naquele árido período da vida em que achamos tudo muito aborrecido, ocupados como estamos a fingir-nos de adultos. Quando, por fim, surgem os filhos – lá vem o Natal de novo bater-nos à porta.
GUERRA. Não há família que não tenha tido umas guerras à mesa da Consoada. É quase inevitável. Faz parte. Sem isso, o Natal não seria Natal. Se alguém precisar de desculpa, aqui fica uma sugestão para a guerra deste ano: como se escreve o plural de «filhós»? Depois, façam um brinde e riam, felizes, que as guerras familiares são coisas de gente sã – o Natal não é o Facebook!
HISTÓRIA. O Natal é também uma boa história. A família à procura de abrigo para o nascimento do filho. As portas que se fecham. A manjedoura. Os Reis Magos. Uma história que não perde o encanto, mesmo contada milhões de vezes. Parece as histórias que ouvimos pela milésima vez aos avós, pais, irmãos – da nossa própria boca – e que contamos de novo, porque estamos juntos.
IRRITAÇÕES. Todos nós nos declaramos, mais tarde ou mais cedo, irremediavelmente irritados com o Natal. Escadas rolantes, vendas ambulantes, centros ululantes… Mas chegamos à noite, àquela noite, e as irritações passam logo.
JESUS. Lembro-me de ouvir, muito novo, quem se queixava por haver gente que, não sendo crente, celebrava o Natal. Ora, eu acho lindo que a festa se alargue, se torne confortável para todos e que, acreditemos ou não nas mesmas coisas, partilhemos a mesma mesa. Não será certamente o aniversariante que se vai importar com isso…
LUZES. A coisa às vezes descai-se para um certo kitsch. Mas o kitsch, no Natal, é quase obrigatório. Não faz mal, é Natal, ninguém leva a mal (já tinha dito isto, não tinha?). O certo é que as luzes de Natal são (para lá de excelente negócio para a EDP) uma boa desculpa para ir passear para os centros das nossas vilas e cidades.
MUNICIPAL (ASSEMBLEIA). Ah, e por trás das tais luzes, acredite o leitor que estão horas e horas de discussão – e quilómetros de actas – em agitadas sessões de centenas de assembleias municipais em que os deputados treinam a retórica para decidir quais as ruas e rotundas que merecem as melhores iluminações. São tradições de que ninguém fala – mas existem!
NOITE DE NATAL. Andamos a correr a comprar e a embrulhar prendas – será apenas para nos queixarmos do consumismo? Não: também é para chegarmos bem aviados à noite mais fria e mais quente do ano: a Noite de Natal.
OUVIR. Ouvir o que os outros dizem sentados à mesa. Ouvir a rolha a sair para um bom vinho de Natal. Ouvir as canções de Natal. Ouvir as vozes dos filmes inevitáveis a dar numa televisão que, por uma noite, poucos vêem. Ouvir os sons das notificações das mensagens a chegar ao nosso telemóvel a trazerem-nos palavras sempre iguais e sempre deliciosas de muitas paragens. Ouvir o clique das fotografias que tiramos sem parar. Ouvir as vozes da família a conversar. Ouvir o crepitar da lareira. Ouvir o rasgar do papel. Ouvir o riso das crianças e, por fim, noite feita, ouvir as conversas sussurradas nessa noite longa – e, lá muito ao longe, os sinos no pescoço das renas a voar por aí.
PAI NATAL. Há quem se queixe da invasão do Pai Natal no território do Menino Jesus. Mas, vá, aceitemos a verdade objectiva: sem o Pai Natal, não teríamos o genial sketch do Herman Enciclopédia escrito por Nuno Markl em que Pai Natal e Menino Jesus se apresentam em tribunal para decidir, afinal, quem é quem no mundo do Natal.
QUERMESSE. Porque será tão viciante comprar papelinhos enrolados? Não será certamente pelos prémios: talheres desirmanados, chávenas lascadas, molduras sem vidro. E, no entanto, queremos ganhar aquilo tudo! O certo é que a palavra é curiosa. Sabe o leitor de onde vem? Do holandês! De «kerk misse», ou seja, «missa da igreja». Como duma missa chegámos ao sorteio de coisas em geral – não faço ideia.
REIS. Aqui mesmo ao lado, são os reis que trazem prendas – e trazem-nas depois do Natal, nos inícios de Janeiro. Mas a terrível invasão de tradições estrangeiras tem convencido alguns espanhóis a dar prendas também na Noite de Natal. As crianças, essas, não dizem que não.
SMS. Ainda alguém se lembra da velha tradição – que durou uns bons cinco anos – de enviar SMS a todos os amigos? Ah, velhos tempos. Hoje, as Boas Festas dão-se por WhatsApp. Em 2019, o que estará a dar serão Boas Festas por Instagram. Ou será que já estou desactualizado?
TEATRO. Não é bom ver os teatrinhos da escola, onde todos são óptimos actores, pelo menos perante os pais embevecidos de amoroso telemóvel na mão? Não vejam aqui sarcasmo. As tecnologias vão e vêm – e a cegueira paterna perante a falta de talento filial continua. Não é coisa de comover?
UNIÃO. Não consigo fugir ao clichê. O raio da letra é difícil. Cocei a cabeça, pensei e repensei: e só me sai «união». União dos povos? União das famílias? Enfim, é Natal, deixemos passar estes desejos vagos por dois segundos. O mundo continua amanhã.
VACA. E o burro, claro. Por estes dias em que se fala por aí que os animais devem sair, ordeiramente, dos nossos provérbios, não sei se sobreviverão nos nossos presépios. Imagino que sim – afinal, ali ninguém os trata mal. E também confio que os provérbios vão sobreviver à loucura da semana.
X-MAS. Esta é a forma como alguns falantes de inglês escrevem «Christmas». É apenas uma abreviatura – embora, segundo outros, seja uma forma de retirar «Christ» do «Christmas». E, pronto, está armada mais uma guerra de Natal. Não faz mal… No fim, sentamo-nos todos à mesa numa bela trégua de Natal!
ZEBRA. Bolas, a culpa não é minha. A verdade é que já é tarde e não consigo pensar numa boa palavra para fechar o alfabeto. Só consigo lembrar-me da bela zebra, o animal menos natalício que existe. Será muito mal se propuser a zebra como o novo ajudante do Pai Natal? Assim como assim, servirá para as renas descansarem.
Bom Natal!
Marco Neves | Tradutor, professor e autor. Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu livro mais recente é o Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.
Comentários