Vivemos num mundo muito individualista e, apesar de estarmos melhor do que em qualquer outra fase do mundo, olhamos cada vez para o nosso umbigo e vivemos cada vez menos em comunidade. Não sabemos o nome dos vizinhos, conhecemos muita gente, mas são poucos aqueles com os quais podemos contar e aos quais daríamos um rim ou partilharíamos dados móveis de Internet.
Somos uma espécie capaz de cooperar para tentar resolver grandes problemas do mundo e criar coisas incríveis, mas não somos bons uns para os outros nas questões realmente importantes: por exemplo, nunca avisamos um desconhecido que tem a braguilha aberta. Talvez por ser estranho essa pessoa perceber que os nossos olhos passaram pela virilha dela, talvez porque gostamos de ver outras pessoas piores do que nós para nos sentirmos bem connosco, não sei. O que é certo é que só o fazemos quando essa pessoa é nossa amiga, caso contrário, deixamos passar e esperamos que ela dê conta antes de passar vergonha. Acontece o mesmo quando vemos alguém na rua com etiqueta ainda presa à roupa. No outro dia, vi uma rapariga com a etiqueta no vestido que dizia “saldos”, pensei ir lá avisar, mas quem sou eu para me meter na vida dela? Se calhar é o estilo dela, se há homens a usar calças rasgadas nos joelhos a achar que têm swag, também isto da etiqueta poderia ser uma nova moda que me ultrapassa. Prefiro que a outra pessoa passe vergonha do que eu ter de passar por desconhecedor das novas tendências de moda.
Não avisamos alguém que tenha um macaco no nariz nem um resto de feijão preto nos dentes. Olhamos, vezes sem conta, e a pessoa até pensa que estamos interessados por estarmos constantemente a fitar-lhe a zona dos lábios, mas não, estamos apenas a pensar “Parece que tem um dente podre” ou “Tem um caracol ranhoso a sair-lhe do septo nasal”. Sabemos que a pessoa se vai sentir embaraçada e não queremos ser nós quem espoleta esse sentimento, preferimos deixar para outro ou para quando ela chegar a casa e, ao espelho, se aperceber que andou o dia todo a parecer que tem uma casota de lesma no nariz. Já tive uma reunião, no meu antigo trabalho, com uma cliente que tinha uma lapa gosmenta a espreitar de uma narina e fui incapaz de lhe dizer. Foi mau para todos: para ela que, mais tarde, percebeu e para mim que não me consegui concentrar porque parecia que estava a ver o National Geographic.
Às vezes, mesmo entre pessoas próximas, temos pudor em apontar-lhes algo errado para que tentem melhorar. Já tentaram dizer à vossa namorada que cheira mal da boca? Já sabemos que vai ela vai ficar de trombas, apesar de não termos culpa nenhuma, pelo contrário, continuámos a beijá-la mesmo com boca de esgoto. Temos de dizer! Pode ser sinal de uma cárie e é melhor avisar para tratar o quanto antes. Não dizemos a um amigo que faz daquela espuma no canto da boca. Talvez porque é algo involuntário e que ele não pode mudar, mas devíamos dizer. Vai ele tentar abordar uma rapariga na rua e tem aquela boca gourmet com espuma de clara em castelo? Não vai dar, devíamos avisar, para que ele comece a ter consciência disso e vá passando um paninho de vez em quanto.
O irónico é vermos que em tudo o resto que interfere na nossa vida, somos logo impelidos a avisar que a outra pessoa está a fazer algo de errado. Alguém se mete na nossa via sem meter o pisca e fazemos logo o sinal de luz e com a mau, numa espécie de nhecos que abre e fecha, a avisar que não meteu o pisca. É assim, não somos bons uns para os outros, só o somos para nós.
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