Um dos casos mais mediáticos de 2024 foi o da sobrevivente Gisèle Pelicot. A história desta mulher francesa, vítima de violação continuada, tocou profundamente o público, gerando uma onda de apoio, empatia e solidariedade incomparáveis. Reflexo disso é a proposta de atribuir o Prémio Nobel da Paz a Gisèle Pelicot, materializada numa petição online que já reúne mais de 100 mil assinaturas.
Face a este movimento de apoio — que aplaudo e subscrevo incondicionalmente —, é crucial refletir: como podemos garantir que o mesmo acontece com todas as outras vítimas de violência sexual? Como assegurar que as vítimas de violação e outras formas de abuso sexual, que têm a coragem de contar as suas histórias e desocultar os nomes dos abusadores, encontrarão empatia e solidariedade semelhantes?
É aqui que Gisèle Pelicot, infelizmente, está sozinha. Este caso gerou uma vaga de apoio única e, temo, pontual. Para muitos, Gisèle representa a ideia de “vítima perfeita” — uma imagem profundamente irrealista e injusta, com que todas as vítimas se debatem. Quem trabalha com sobreviventes de violência sexual, em particular com mulheres, sabe que estas enfrentam constantemente juízos de valor. As suas histórias são escrutinadas; os seus motivos, questionados. Acusam-nas de procurar fama, dinheiro fácil, vingança, de provocarem o que lhes aconteceu ou de “se colocarem a jeito”. E acusam-nas de mentir, sabendo, nós, que a falácia é perniciosa e que, na realidade, as falsas denúncias rondam os 3% — apenas 3%.
Enquanto profissional, gostaria que todas as vítimas — seja uma jovem violada numa saída à noite, um rapaz abusado pelos colegas de escola, ou qualquer outro caso — encontrem o mesmo apoio que Gisèle Pelicot recebeu. Que nenhuma vítima, independentemente das características e contornos dos crimes, seja desvalorizada, ridicularizada ou motivo de troça. Que a empatia, a força e a solidariedade que hoje vemos neste caso não sejam uma exceção.
O silêncio dos homens vitimados
Na Quebrar o Silêncio, ouvimos histórias de homens que foram abusados sexualmente na infância e de outros que o foram na idade adulta. Muitos partilham um receio profundo: «Se as mulheres já enfrentam tanto ódio e descrédito quando falam, como será no nosso caso?» Este medo não é infundado. As reações que os homens observam — nas redes sociais, nas conversas informais, no trabalho, ou mesmo em casa — contribuem para a cultura de culpabilização das vítimas e, claro, para a manutenção do silêncio dos sobreviventes.
A realidade dos homens e mulheres sobreviventes de violência sexual tem vários pontos em comum, com problemas e obstáculos que se sobrepõem. O silenciamento e as reações adversas à partilha mantêm as vítimas isoladas, empurradas para a autoculpabilização sobre o que poderiam ter feito de diferente — quando, na verdade, tal responsabilidade não deve, nunca, recair sobre elas. Como consequência, muitos crimes permanecem por denunciar, deixando os abusadores livres para continuar a vitimizar outras pessoas, e os sobreviventes sem o apoio que necessitam.
Enquanto o apoio que Gisèle Pelicot recebeu continuar a ser uma exceção, não conseguiremos proporcionar a segurança de que todas as vítimas, homens e mulheres, necessitam para partilhar as suas histórias e denunciar os abusadores.
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Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor de “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um livro dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.
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