1. Putin devia ter sido julgado há muito por uma lista infinda de acusações, na Rússia e fora dela: tortura e eliminação de gente incómoda; perseguição de opositores, gays, artistas, ambientalistas, feministas, jornalistas; repressão e anexação de territórios; bandidagem financeira; terrorismo informático; interferência em eleições estrangeiras; manipulação de eleições nacionais; alto patrocínio na destruição da Síria.
Em vez disso, a partir de hoje é anfitrião do maior espectáculo da Terra, recebendo os melhores futebolistas da actualidade, dezenas de enviados internacionais e milhões de turistas. Após 18 anos de poder inimputável, o Mundial de Futebol será uma grande goleada para Vladimir Putin. Seja qual for o desfecho futebolístico, o czar do século XXI já arrecadou capital político, diplomático e financeiro.
Em russo, democracia diz-se “demokratia”. Ao regime actual, alguns russos anti-Putin chamam “dermokratia”. Demo quer dizer povo, dermo quer dizer merda. É no abismo entre as duas ideias que o Mundial 2018 acaba de ser inaugurado, com repressão acrescida e biliões de dólares depois.
Outra expressão a propósito deste Mundial: “sportswash”. Lavagem desportiva.
2. O tanto que há para amar no imenso continente russo, nem bem Europa nem bem Ásia, tem sobrevivido a muitos déspotas, e continuará a sobreviver. Por isso torcem, torcemos, todos os que têm uma pequena vida russa, pelo que leram, ouviram ou lá viveram. Tive uma pequena vida russa com algumas idas-e-vindas entre 1991 e 1998, e antes e depois guardo a beleza do que tantos russos criaram, muitos pagando alto preço: silenciamento, miséria, cadeia, perseguição, morte, de Akhmatova, Tsvetaeva, Mandelstam ou Bulgakov a Politkovskaya ou às Pussy Riot.
É sobretudo disso que quero falar no dia em que o Mundial começa. De como a luta continua. E de longe ou perto é possível apoiá-la, sem por isso gostar menos de futebol. Ao contrário, quem gosta de futebol pode tirá-lo um bocadinho das manápulas de Putin, não embarcando na “lavagem”. O futebol agradece, e bem está precisado.
3. Da Amnistia Internacional à Human Rights Watch, os anos de preparação para o Mundial na Rússia são descritos como uma “orgia” de patrocínios, publicidade global e projectos grandiosos de construção, enquanto milhares de trabalhadores eram abusados e a repressão dos contestários a Putin aumentava. A Amnistia diz que “o direito de livre reunião foi ainda mais restringido na Rússia, com o Mundial a ser usado como justificação”. Aponta “abuso, intimidação, ataques físicos e prisões arbitrárias de gente tentando defender direitos humanos” como um padrão. ONGs enfrentam constantes restrições à sua actividade. “Não mencionando o uso continuado de tortura, as violações graves no Norte do Cáucaso, a lei anti ‘propaganda LGBTI’, que é usada para estigmatizar e perseguir indivíduos, a caça às bruxas de homens gay na Tchétchenia, a descriminalização de violência doméstica, a ameaça a jornalistas, e o uso continuado do veto russo para bloquear a acção do Conselho de Segurança da ONU quanto à Síria.”
4. Durante anos, lembra a Aministia, a FIFA recusou qualquer responsabilidade nos direitos das pessoas afectadas por acontecimentos de que era organizadora, desde os trabalhadores explorados na construção de estádios e estruturas, aos moradores retirados dos novos lugares de construção, passando por manifestantes reprimidos. Mas após vários escândalos de corrupção e denúncias dos activistas de Direitos Humanos, a FIFA acrescentou uma cláusula aos seus estatutos, comprometendo-se a “respeitar todos os direitos humanos reconhecidos internacionalmente, e a lutar para os promover”. O novo presidente, Gianni Infantino, disse que a FIFA “tem de usar a sua influência para lidar com as ameaças aos direitos humanos tão determinadamente como luta pelos seus interesses comerciais”.
Um suposto avanço que toda a gente devia cobrar à FIFA, a cada hora do Mundial, na prática.
5. A Amnistia preparou o seu próprio onze para o Mundial 2018. Chamou-lhe Time dos Bravos. Onze homens e mulheres em onze cidades russas que dedicam a vida a “defender os seus concidadãos, enfrentando tortura e outros abusos que acontecem nas esquadras de polícia, lutando para que outros possam respirar ar limpo, auxiliando aqueles a quem é negada ajuda, vítimas de violência doméstica, trabalhadores sexuais, ex-prisioneiros. Dez dessas cidades vão acolher jogos do Mundial. A décima-primeira é Grozny, na Tchétchenia.
— Em São Petersburgo: Irina Maslova, defensora dos direitos dos trabalhadores sexuais.
— Em Nizhny Novgorod, Ekaterinburgo e Volgograd: Igor Kalyapin, Aleksey Sokolov e Igor Nagavkin (actualmente detido), activistas contra a tortura.
— Em Kazan e Sochi: Yulia Fayzrakhmanova e Andrei Rudomakha, ambientalistas.
— Em Kalininegrado: Igor Rudnikov, activista anti-corrupção.
— Em Novocherkassk: Valentina Cherevatenko, defensora dos direitos das mulheres
— Em Samara: Oksana Berezovskaya, defensora de direitos LGBTQI
— Em Saransk: Vasiliy Guslyannikov, activista contra abusos laborais e económicos.
— Em Grozny: Oyub Titiev, activista tchetcheno, actualmente detido, enfrentando 10 anos de cadeia por acusações fabricadas de posse de droga.
Por cada, a Amnistia fez um postal que conta a história em detalhe, e há uma petição para libertar quem está detido e investigar um ataque. Organiza também debates, leituras e festivais em cinco cidades russas, ao longo do Mundial.
A este onze somam-se muitos. Como o cineasta Oleg Sentsov, ucraniano da Crimeia — e portanto considerado russo pela Rússia —, que está condenado a 20 anos de cadeia, acusado de conspiração terrorista.
6. Em 1980, a URSS existia, o Muro de Berlim não caíra, era a Guerra Fria ainda, tudo parecia mais a preto e branco, vários países boicotaram os Jogos Olímpicos de Moscovo. Agora já nada parece tanto a preto e branco. Putin ajuda a gerar Trump. O mundo estará no Mundial de Putin, embora Putin seja um crápula. Nunca a Rússia recebeu tantos milhões de forasteiros. Serão dias únicos para Putin se engalanar. Mas também podem ser dias únicos de contacto com milhões de “outros”, num país historicamente fechado. Figuras do regime já fizeram alertas contra “contactos íntimos” com os estrangeiros. Quem sabe os contactos dão frutos para a liberdade interna, podem fazer com que muitos russos vejam os “outros” de outra forma, ajudem contra o medo, a inércia ou a desconfiança, fortaleçam vozes opositores. Ir à Rússia agora, durante o Mundial, também pode servir para isso, tirar a bola a Putin.
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