O que é pior: a covid ou o bolo-rei? Difícil, são ambos maus. Estou a brincar, é óbvio que mesmo com as máscaras, restrições, distanciamento e infecções, o pior deste Natal vai continuar a ser o Bolo-Rei. Dizem que um terço dos portugueses recusa ser vacinado contra a covid. Se a prevenção fosse comer bolo-rei, aposto que o número seria superior, mas neste caso com razão. Aliás, quem recusa ser vacinado deveria ser castigado tendo de comer bolo-rei todos os dias a todas as refeições até ao final da pandemia.

O problema do bolo-rei não se cinge às frutas cristalizadas, caso contrário o bolo-rainha era incrível e não é. É menos mau? Sim. É uma obra-prima da pastelaria? Longe disso, é melhor um bolo de iogurte da Yammi, que está para a Bimby como a Cindy estava para a Barbie. É que nem faz sentido ser a rainha a que tem menos cor e ingredientes; toda a gente sabe como são as rainhas e as princesas, cheias de jóias e adornos - que são o que as frutas cristalizadas representam. O meu problema com o bolo-rei vai muito além da “fruta” e de não gostar do sabor. Há muita pastelaria pela qual o meu palato não nutre bons sentimentos, mas que não me irritam tanto como o bolo-rei. Porquê? Desde logo a presunção de se achar rei. Acha-se mais do que os outros bolos, acha que a doçaria e a pastelaria são uma monarquia e que é ele que manda. Se este bolo é realmente Rei, então é o Rei com a menor taxa de aprovação do povo de sempre. Ninguém gosta de bolo-rei. Melhor, há quem goste, mas ninguém adora bolo-rei. Quem adora bolo-rei e o prefere a um bolo de bolacha, de chocolate ou cheesecake, tem, claramente, problemas do foro psicológico e/ou das papilas gustativas.

Se bolo-rei fosse bom não se comia só no Natal. Bolo de bolacha, inicialmente, só se comia nas duas primeiras semanas de Maio, mas depressa as pessoas perceberam que essa tradição era estúpida, pois o bolo de bolacha é óptimo e devia ser consumido em qualquer altura. Esta história é completamente falsa, mas serve para ilustrar o meu ponto de vista. O bolo-rei representa também o Estado paizinho que se intromete na vida da população por tudo e por nada, não deixando a selecção natural seguir o seu curso. Tal como o Estado nos reduz o tamanho dos pacotes de açúcar do café, o bolo-rei decidiu retirar o brinde para nenhuma criança mais sôfrega morrer engasgada com um galo de Barcelos prateado como brinde. 

Já sei o que alguns estão a pensar: “Isso é porque nunca provaste bolo-rei torrado!”. Já. Claro que o bolo rei pode ser torrado e barrado com manteiga ou ter a cavalo uma generosa fatia de queijo da serra e marchar bem, mas isso é batota. Não é por isso que se pode dizer que o bolo-rei é bom, pois seria o mesmo que dizer que um pão de cinco dias é bom porque dá para torrar ou que aquelas bolachas fit que parecem pipocas desenxabidas são boas porque com queijo da serra em cima se comem bem. Tenham juízo. Mais: bolo-rei é associado a Cavaco Silva e isso devia ser motivo mais que suficiente para ninguém o comer, até porque sabe exactamente ao que o ex-presidente saberia se fosse uma comida: meio a mofo e a bafio.

Outra motivo que me leva a desprezar o bolo-rei é que já foi motivo de discórdia e de ira popular contra a Padaria Portuguesa em 2017. Algum outro bolo gerou ondas de indignação? Alguma vez viram discussão e redes sociais incendiadas por causa de um brigadeiro? Nunca. Nem o Melhor Bolo de Chocolate do Mundo, com o seu nome presunçoso e que não cumpre as expectativas, gera esta controvérsia. Só deveria haver polémica com doçaria quando as tias berram e discutem a competir sobre quem fez a melhor sobremesa para a consoada.

Talvez este ano o bolo-rei passe despercebido, porque a covid é nossa amiga em tempos de Natal exactamente porque um dos sintomas mais comuns é a perda de paladar. Assim, já podemos comer o bolo-rei depois de a nossa avó, seja pelo Alzheimer ou porque é uma avó, insistir vinte vezes para comermos mais uma fatia mesmo nós tendo dito que não gostamos de bolo-rei e que já estamos cheios do quilo e meio de bacalhau e cabrito que ela nos obrigou a comer. Como vingança, partilharemos a covid com a avó neste que será o último Natal juntos.

Para finalizar, o que mais me irrita no bolo-rei é que eu, mesmo não gostando, todos os anos dou por mim a comer um bocado só porque sim; porque não há mais nada de jeito em cima da mesa porque toda a gente esconde os outros doces a ver se alguém pega no sacana do bolo-rei. E é assim que, todos os anos, mesmo ninguém gostando, o bolo-rei continua a ser comprado e comido, no esquema mais bem elaborado que a pastelaria alguma vez teve a ousadia de montar. A verdade é que no Natal de 2021 a pandemia talvez já seja coisa do passado, mas a praga do bolo-rei continuará entre nós.

Sugestões: 

Para ler e/ou oferecer: O livro Por Ladrar Noutra Coisa, Diário de uma Bitch, da potencial Nobel da Literatura Canina

Para ouvir: Novo disco do Slow-J

Para ver: Mank, na Netflix