1. Estou desde Setembro num labirinto de caixotes, alguns cheios de jornais, revistas e outros materiais em extinção, ainda longe de serem abertos. Nisto, em plena convulsão catalã, caiu-me aos pés uma revista que diz: “Catalunha: cabeça fria, coração quente.” Reportagem de 2010, quando viajei entre Barcelona e Poblet, Girona e Port Bou, a propósito de (mais) uma consulta sobre a independência. Talvez o acaso seja uma outra forma de voto, ou augúrio para 2017-18: coração quente, cabeça fria.
2. Lembro-me vividamente dessa viagem invernosa, fervilhante, muito mais que do texto. Abro a revista e lá dentro o título de há quase oito anos pergunta, como agora: “A Catalunha é um país?” Continuo sem resposta, por mim é um mundo. O que andei a fazer nesses dias de golas para cima foi ouvir as várias respostas catalãs, porque não havia mesmo só uma, nem claramente maioritária. E isso, em si, também será uma resposta.
3. Começámos (o fotógrafo Rui Gaudêncio e eu) por nos perder em Barcelona, em busca da Rosa de Montálban (ou do detective Pepe Carvalho), filha e viúva de toureiro, havia uma catrefada de anos na Rambla del Raval a pôr na mesa essa paixão catalã que são os cogumelos, mais anchovas, presunto, pão com tomate. Por esses dias, de 2010, a última consulta sobre a independência tinha tido 95 por cento de “sim”, mas com menos de um terço dos eleitores. Rosa, que se definia como anarquista, era totalmente contra. Contra um referendo e contra “a ideia de que ser catalão é a coisa mais importante do mundo”. Cercada de imigrantes, num bairro tradicional de imigrantes, apontava a mistura que para ela era a Catalunha, gente vinda de vários lugares de Espanha e de fora. Via o “catalanismo” como um resultado da repressão de Franco, da ânsia então proibida de falar catalão. E disparava, na direcção dos independentistas: “Porque fazem tanto barulho? Porque estão muito bem subsidiados.” Nas eleições seguintes Rosa estava decidida a votar nos democrata-cristãos.
Mas tanto anunciava isto como apresentava com orgulho o seu chefe-de-sala Robert, “independentista, nacionalista e catalanista”. Robert confirmou tudo e disse que não se importava de perder Espanha como melhor cliente: “Prefiro viver com o meu amor debaixo da ponte a viver cómodo sem o meu amor.”
E como tudo isto se passava onde se passava, a noite acabou com Rosa a cantar os “Quatro Molinos”, como La Argentinita com García Lorca ao piano.
4. No Paseig de Gràcia, o arquitecto Joan Roig remontou a 1714, desenhando bolas e riscos, para explicar como a Madrid dos Bourbons venceu a Barcelona dos Habsburgos. Como a arma de Barcelona depois foi “cultura, cultura, cultura”, em vez de Deus. E depois como o nacionalismo veio “da burguesia com interesses que lhes fazem pensar que a independência é melhor”. É que “historicamente a classe operária não é nacionalista, é internacionalista”. Ou seja, o independentismo veio dos ricos, e da reacção à repressão franquista. Mais uma conversa a convergir para a cozinha, desta feita para comida do mar, peixe, amêijoas, e também ali o anfitrião não era independentista. “Que significa ser catalão? Eu não sei.” E: “Eles sabem bem que perderiam um referendo.”
5. Fora de Barcelona, no nevoeiro do centro da Catalunha, outro Joan, Joan Margarit, poeta que pensa e escreve em catalão, contou como os cruzados vinham da Palestina e descansavam ali, em Forès. Fomos juntos a Poblet, o mosteiro ícone da Catalunha. Depois a povoações como Montblanc, Solivella. E, em volta de carnes a assar, ele disse porque ia votar pela independência, “farto da monarquia absoluta” dos Bourbons. Não deixava por isso de ser internacionalista, ressalvava. “Quero estar ao lado de Espanha, mas não dentro.” Que o deixassem pelo menos um par de anos fora de Espanha, sem ter de pedir licença para tudo. Foi neste ponto que a mulher, Mariona, disse, sorrindo, que ele não pedia licença para nada, mesmo.
6. As casinhas coloridas de Girona, as “macías” rurais da Garrotxa, o mundo mediterrânico de Port Lligat, mesmo em Janeiro: nunca tinha andado assim por dentro e às voltas na Catalunha. E, de volta a Barcelona, estudantes nacionalistas, independentistas de esquerda, falarão dos Països Catalans, ou seja do conjunto de territórios que os independentistas consideram unidos pela língua: Catalunha, Ilhas Baleares, algo de França, de Itália, de Valência, Aragão e Murcia.
7. Pouca terra agrícola, poucas riquezas naturais, a Catalunha fez-se forte com duas coisas, cultura e comércio, resumiu um neto desses dois mundos, descendente da burguesia industrial que financiou o modernismo, Xavier Vidal-Folch, então director do “El Pais” em Barcelona. Foi ele quem falou do coração quente, da cabeça fria. “Como povo fenício, judeu, o povo catalão manifesta-se muito racionalmente. É a ‘seny’, a sensatez, o pragmatismo. E de vez em quando há uma explosão, produto da ‘rauxa’, a paixão, a mordacidade, a utopia. O povo catalão funciona com estas duas caras.” Ele acreditava, então, que uns 80 por cento dos catalães tinham identidades sobrepostas, se sentiam catalães e espanhóis. Isso fazia dos independentistas uma minoria “notável, mas uma minoria”. A respeitar, seguindo a maioria.
8. Esta viagem ficou tão viva que inventei uma catalã num livro. Ou vice-versa, inventei uma catalã num livro para a viagem ficar viva. Não é certamente uma nacionalista de qualquer espécie, a minha catalã. Nem eu.
O violento desastre da repressão de Rajoy, e a nulidade do discurso do rei, reforçaram por certo a indignação independentista, quase oito anos depois desta viagem. Tantos erros nas últimas semanas, tanto desejo legítimo distorcido. E com certeza muita gente, fora e dentro da Catalunha, sem qualquer simpatia por nacionalismos, e ao mesmo tempo avessa à repressão e surdez de Madrid.
Seria bom refazer estes passos quase oito anos depois, rever Rosa, Joan I, Joan II, a utopia rural da Garrotxa, os estudantes no sindicato e na faculdade, o filho da burguesia que falou na cabeça e no coração. Como estarão? Onde? Que não haja dúvida sobre isto: estamos mais ligados, dentro e fora, mais interdependentes, mais sujeitos aos mesmos desastres, ecológicos e políticos, do que há quase oito anos. A Catalunha, e o quanto dela vai progredir como dominó, diz mais respeito do que nunca a todos nós.
9. Aquela viagem de 2010 acabou em Port Bou, a fronteira onde um dos maiores pensadores do século XX, Walter Benjamin, morreu, depois de ser impedido de passar para Espanha e Portugal, e apanhar o seu barco para a América: um judeu fugindo do horror nazi. Morreu da mais terrível das fronteiras, a que os homens fazem para que outros caiam mortos, ali. Ou apesar de os homens caírem mortos, ali.
Sendo um mundo entre fronteiras, o catalão deve ter em si um antídoto nacionalista, de algum modo, quero crer.
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