
Na verdade, existem muitas áreas em que a discussão tem avanços e, logo de seguida recuos, parecendo que nos esquecemos do “novo” que se vai acrescentando.
Esperaria que neste momento estivessem “arrumadas” as questões básicas da sobrevivência económica das famílias. Que os pais e os sobreviventes tivessem direitos laborais e sociais não só consagrados nas leis, mas totalmente interiorizados na sociedade. Que a discriminação económica, laboral ou social de quem sobrevive a um cancro pediátrico fosse uma reminiscência do passado. Que a igualdade de tratamentos não fosse determinada pelo local de nascimento. Que os hospitais estivessem equipados com tudo o que é necessário para garantir os tratamentos, as cirurgias e tudo o que é necessário a uma criança com cancro. Que trabalhar em oncologia pediátrica constituísse uma carreira atrativa e disputada com ganhos profissionais e pessoais que aliciassem gente bem preparada.
Tudo isto seriam expectativas legitimas quando nos colocamos no local onde estávamos há 30 anos, quando a Acreditar nasceu. Os tratamentos eram bons, faltava muita coisa, mas havia uma comunidade envolvida num trabalho consequente que criava enormes expectativas para o futuro.
Legitimamente, pensava-se que hoje estaríamos a discutir:
- os tratamentos inovadores e cada vez mais dirigidos;
- a investigação adequada a cada cancro, dos cancros que se somam no cancro pediátrico;
- A qualidade de cada sobrevivência com o seguimento adequado e acessível a todos;
- A forma como as novas tecnologias, nessa altura totalmente emergentes, poderiam ajudar no estudo, no diagnóstico, no tratamento, nas cirurgias e também na informação;
Estas seriam as discussões que queria estar a ter e que fariam sentido para esta comunidade.
Porém, estas últimas convivem com as que continuam a roubar a atenção de toda a sociedade e de toda a comunidade e que se repetem como um mantra em cada ano, em cada dia de reflexão, em cada oportunidade.
Será que ainda conseguimos sensibilizar a sociedade e os decisores quando, ano após ano, repisamos nas mesmas questões … ou quando as que estavam já “arrumadas” voltam à superfície cheias de força distrativa?
Se pensarmos nas nuvens de palavras e ideias que fizeram parte das discussões dos últimos meses, nos diversos fóruns onde se discutiu o cancro pediátrico, chamam-nos a atenção:
“Rendimento reduzido a 60% e como o limite de dois indexantes”; “falta de médicos”; “falta de enfermeiros”; “questões com autorizações de medicamentos”; “hiper-regulação de serviços em prol da estrutura e não das pessoas”; “falta de cuidados paliativos ao domicílio”; “discriminação laboral”; “falta de igualdade na sobrevivência”; “acesso difícil”; “atrasos”; “máquinas avariadas”; “dificuldade de acesso aos cuidados de saúde mental”.
Estas questões, que foram já as discussões do século XX, acabam por submergir o que de bom se está a fazer. Isso acontece porque estamos a falar do que é básico. Do que sempre foi básico e que tem de estar assegurado quando se fala de um cancro que é diagnosticado numa criança. É básico pela gravidade e pelos números envolvidos. Falamos de 400 casos diagnosticados em cada ano.
E até no número de casos a discussão não é a que deveria ser.
Há dias foi publicado um estudo que dizia que em Portugal havia 19 casos por cada 100.000 crianças e na Europa 15 por cada 100.000 para o ano de 2022.
A discussão fez-se sobre o facto de que Portugal teria mais casos do que os seus congéneres europeus lançando algum alarme. Será que, com esta incidência, o meu filho vai ter cancro? É esta a discussão? Será que os números registados são comparáveis com os demais países? Será que os casos dos PALOP que recebemos ao abrigo de acordos de cooperação e que representam 8% (??) das crianças que são tratadas em Portugal estão a enviesar os números? Será que para um número tão pequeno os números de uma série temporal diminuta são relevantes para se tirarem conclusões sérias? Novamente a discussão que é feita ao lado e sem o rigor que seria imprescindível para avançarmos no tema e nos concentrarmos sobre o que verdadeiramente importa.
O que importa são mesmo melhores tratamentos prestados por profissionais motivados e de excelência a crianças que estejam rodeadas de uma família que não tenha de se preocupar com a sobrevivência económica, pois já tem a sobrevivência de um filho às costas. O que importa é que existam números e dados corretos para podermos planear recursos e organizações e projetá-las para uma boa prestação de serviço. Estas crianças merecem o nosso melhor e que tenhamos as discussões certas para as conclusões acertadas.
A Acreditar – Associação de Pais e de Amigos de Crianças com Cancro existe desde 1994 com o objectivo de minimizar o impacto da doença oncológica na criança, no jovem e na sua família. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, jurídico entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica.
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