Os argentinos travaram, na primeira volta das presidenciais, a onda messiânica do extravagante candidato anarco-direitista Javier Milei. Mas é provável que este candidato que faz campanha com uma motosserra, que simboliza a intenção de cortar tudo o que tenha a ver com quase sete décadas de peronismo, venha a conseguir a eleição em 19 de novembro.
A eleição que confronta duas visões radicalmente diferentes vai ser disputada voto a voto.
Sérgio Massa, candidato do peronismo governante, apesar de ministro da Economia no governo que deixa a Argentina com inflação de 140% no último ano e 40% da população em pobreza, conseguiu, contra todos os prognósticos, ser o mais votado (10 milhões de votos, 36,6%), enquanto o candidato ultrapopulista com discurso incendiário ficou pelos 30%.
Os 6,2 milhões de votos (23%) na candidata conservadora Patrícia Bullrich podem ser decisivos para a eleição do próximo presidente. Aparentemente, este voto conservador é anti-peronista, o que sugere maioria absoluta contra o candidato que ficou em primeiro lugar na primeira volta. Mas o voto conservador na Argentina está longe de ser homogéneo.
Há muito conservadorismo moderado que não suporta a ascensão meteórica do candidato populista libertário que propõe arrasar todo o sistema argentino, acabar com ministérios como o da Saúde e o da Educação e privatizar estes setores, acabar até com o Banco Central da Argentina. Millei assusta essa direita moderada que pode ser tentada pela continuidade no que é conhecido, o peronismo.
O peronismo é, há 77 anos, uma máquina de poder na Argentina: é a linha política que convier a cada momento. Já alinhou com um modelo de nacionalismo fascista. Também já teve uma fase revolucionária operária com Che Guevara como ídolo. Já foi liberal, já foi democrata-cristão, também social-democrata. O peronismo tem sido, sem problemas de pudor, o que for conveniente em cada momento. É uma etiqueta de poder na Argentina.
O estado de colapso da economia argentina sugeria que o peronismo estava a bater no fundo. A primeira volta destas eleições mostra que é um erro subestimá-lo. Sobretudo, quando a alternativa é a máxima imprevisibilidade.
O peronista Massa ganhou a primeira volta eleitoral em que o segundo classificado contava sair destacadíssimo em primeiro lugar. As sondagens mostram que Massa cresceu muito e Milei perdeu apoios nos últimos dias de campanha.
As sondagens não sinalizaram esta variação na última semana de campanha. Não previram a deslocação de eleitores do candidato ultra Millei para a conservadora Bullrich e a mobilização da esquerda para o voto no candidato peronista.
Massa deve o êxito parcial ao discurso de disparates de Millei que assustou muito da direita em que se posiciona de modo radical com postura de estrela rock.
O eleitorado centrista é agora o mais disputado. Massa antecipou-se e anunciou que pretende nomear um “governo de unidade nacional” para pôr ordem na economia e no país. O peronismo está a ganhar com Massa um novo rosto para sobreviver. Milei responde com o pedido de reuniões com a elite empresarial. É um primeiro gesto da provável moderação do discurso que muitas vezes na campanha teve radicalismo paleolítico.
Para milhões de argentinos que cultivam a moderação e aspiram continuar a viver num país democrático, com convivência civilizada, o cenário eleitoral está de fúria. Vão ser longas estas quase quatro semanas, com os dois em campo a dar tudo por tudo para captar o voto do centro.
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