É muito fácil o elogio fúnebre resvalar para exagero fúnebre; não poucas vezes fui atingido por essa sofreguidão: querer parecer bem por muito enaltecer um finado. Hoje, aqui, jamais será o caso. Não há exagero que cubra aquilo que foi a vida do Dr. João Almiro; não há elogio que lhe faça justiça. Tudo o que sobre ele se disser será pouco, e o pouco que se vai ouvir é irreparável. Morreu o melhor português que conheci, a mão mais digna que apertei, o homem bom do Bem mais puro.

Embora escreva com comoção, não vem daí a voz embargada com que me dito estas palavras. Vem antes do dever, de não me sentir à altura de vos dar a conhecer a vida do Dr. João Almiro já que, pura e simplesmente, não fui talhado para biografias que são hagiografias. Era um santo não popular, porque a vã popularidade não lhe interessava, e porque as histórias de redenções no interior do país raramente são as mais apetecíveis para o público. Não popular, pois um exemplo tão maravilhoso convém-nos ficar escondido (não vamos nós ter a tentação de o seguirmos, e de nos entregarmos ao desconforto de sermos pessoas melhores).

A história dele é (tal como o próprio) a menos ortodoxa das lendas, logo por ser real; uma história que me foi ensinada em casa, na escola, e nas ruas de Tondela enquanto a própria história estava em curso. Quando se contam os grandes feitos sem a necessidade duma distância temporal, percebemos que os grandes feitos são afinal enormes. A traços largos, o Dr. João Almiro foi alguém que deixou para trás uma extensa fortuna monetária para se dedicar às fortunas que lhe interessavam: restabelecer a dignidade nos indignos, amar e recolher os rejeitados, ser um pai para os párias.

Queria seguir Medicina, mas já havia muitos médicos na família, por isso foi convencido a tornar-se farmacêutico. Depois da formação académica em Coimbra, criou uma farmácia no rés-do-chão de casa, mas trocou o balcão pelo estudo e pela experimentação. Fez-se um cientista arrojado e fundou a prestigiada Labesfal. Nos anos 70 acolheu uma criança filha de pais alcoólicos. Este bebé, com trissomia 21, chegou-lhe às mãos com apenas 6 meses de vida, apenas 6 meses de muita negligência. Era a Bibi — o paciente zero duma história com centenas, milhares de pessoas acometidas dum amor que alastra, um amor que foge à norma: o amor patológico deste bom farmacêutico. Deixou aos filhos biológicos o império empresarial e aos filhos patológicos entregou a vida. Até ontem. Acolheu alcoólicos, toxicodependentes, assassinos, ladrões, pirómanos, prostitutas, crianças abusadas, deficientes, gente que nunca tinha conhecido o conforto duma cama ou a dignidade dum nome. Amou todos, curou muitos, e nunca falhou aos que não conseguiu curar.

É frustrante querer resumir um gigante. Não só me faltam inúmeros pormenores importantes no trajecto do Dr. João Almiro, como me falta o mais importante ainda: os testemunhos. São testemunhos de gratidão e de louvor, os únicos tipos de testemunho possíveis quando se fala deste homem. Felizmente, há pouco mais de 2 anos, uma reportagem da TVI registou alguns desses depoimentos agradecidos. Mais importante ainda, registou palavras do próprio Dr. João, as mais tocantes e sábias que já desfilaram na televisão portuguesa. Não é exagero; hoje não há cá disso.

Essa reportagem da TVI, intitulada “Até Voares”, ganhou o Prémio de Jornalismo “Direitos Humanos & Integração”, da UNESCO. É uma reportagem excepcional, e que me inundou os olhos todas as vezes que a vi. Mas, sem desmerecimento do maravilhoso trabalho da jornalista Ana Leal, o melhor mérito da peça é o da melhor pessoa que já conheci. Também foi a melhor pessoa que a Ana Leal conheceu (não presumo, ela assumiu-o). Por isso, hoje abstenho-me de conclusões, e faço o pequeno apelo que vos abrirá apelos maiores: assistam à reportagem “Até Voares”. Vejam e percebam porque é que quase passei a considerar a minha mão direita uma relíquia – é que várias vezes apertou a mão direita do melhor de todos nós. O Dr. João Almiro envergonha o meu cristianismo, e nem sei como lhe agradecer.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

Aqui está uma entrevista ao Dr. João Almiro na Revista Farmácia Portuguesa que muito bem o caracteriza. Nesta resposta quase o vemos resumido, por nos deixar algures entre o sorriso e o nó na garganta:

Revista Farmácia Portuguesa – Como conseguia um farmacêutico mentalizar uma pessoa viciada no álcool, que normalmente não aceita bem um conselho?

João Almiro – Olhe, com muitas dificuldades… e muitos dissabores. Não era tudo vitórias. Nem sempre consegui ganhar. Muitas vezes, perdia. Uma vez, estive meia hora a tentar convencer uma senhora alcoólica a ir a Coimbra, mas o marido não deixava. Eles não queriam que se soubesse. "Levar a Coimbra para quê, ela não precisa de ir ao médico!", dizia o homem. Eu então disse-lhe: "O senhor não sabe que a sua esposa morre se não for tratada?". Foi aí que me atiçou o cão. O cão comeu-me um bocado da barriga da perna. O homem depois ficou a chorar e deixou ir a mulher. Hoje, vivem felizes! Abençoado bocado de perna que o cão me arrancou."

No meu texto referi a Bibi, era indispensável fazê-lo. A Bibi tornou-se uma figura muito querida no concelho de Tondela, e o símbolo perfeito do trabalho do Dr. João Almiro. Em 2009, quando faleceu, essa adorada rapariga foi também o mote para a peça que o JN dedicou ao bom farmacêutico.

E enquanto ontem o mundo preferia falar sobre a morte de Hugh Hefner (1926-2017), e discutir se ele afinal tinha ajudado ou desajudado a conferir dignidade às mulheres, eu prefiro celebrar o João Almiro Melo Meneses e Castro (1926-2017) que se dedicou a conferir dignidade a todo o ser humano que lhe chegava às mãos. Aqui fica mais um retrato deste herói.

Finalmente. Hoje saiu-me gorado um texto sobre as autárquicas (terei de guardar a ideia para daqui a 4 anos). Contudo não posso deixar de assinalar a cobertura notável que o SAPO 24 tem feito do assunto, bem como a transmissão live inédita que aqui será levada a cabo no próximo domingo.