Do império onde o Sol nunca se punha, e que atingiu o seu apogeu há cento e poucos anos, o Reino Unido está reduzido a um país de média dimensão, separado da Europa, onde já não tem nenhuma influência, e cheio de problemas. Basta ler os jornais, sobretudo os famigerados “tabloides”, para saber que o seu famoso Serviço Nacional de Saúde está pelas ruas da amargura, as empresas icónicas entregues a mãos estrangeiras (Rolls Royce, Cadbury e Jaguar, por exemplo) ao mesmo tempo que o investimento estrangeiro diminui, a rede ferroviária rola desconexa e envelhecida, os correios são doravante de gestão privada, os clubes de futebol e as grandes mansões de Londres estão hoje na posse de árabes… A lista é extensa e constrangedora, mais ainda se nos lembrarmos dos tempos em que a City, entre outros negócios globais, dominava até os transportes colectivos e as comunicações de muitas cidades do mundo, de Lisboa e Buenos Aires.
A agricultura luta com falta de mão-de-obra e baixa produtividade, a burocracia tornou inoperantes as trocas comerciais com o “Continente”, o que faz subir o custo de vida regularmente. O súbdito britânico de hoje tem de se preocupar com o aquecimento da sua residência, que subiu 59% no último ano, uma vez que a produção nacional de combustíveis apenas cobre 2% das necessidades (o clima britânico é, como se sabe, agreste), com a alimentação menos variada e mais cara, e até com a manutenção da própria habitação, cuja renda e/ou hipoteca tem subido em flecha. (Nada que seja estranho para nós, portugueses, mas que certamente não acontecia naquelas ilhas.)
No entanto, há uma instituição que permanece inabalável, não tendo mudado desde os tempos gloriosos: a Casa Real de Windsor, com todo o seu aparato, fortuna fantástica e mordomias extraordinárias. (Só o Rei Carlos III, tem, a título pessoal, ativos avaliados em 2,3 mil milhões de dólares).
Por um lado, este estadão precisa de ser justificado publicamente, o que a extensa família dos “royals” faz comparecendo em incontáveis cerimónias de Estado e eventos vários - é aquilo a que chamam os seus “deveres”. Por outro lado, a população segue com uma mistura de veneração e perfídia as peripécias da Casa Real, porque de certo modo, é como se o país ainda fosse o Império do século XIX, alimentando essa fantasia.
Espera-se do rei, príncipes, princesas, duques disto e daquilo, que tenham um comportamento exemplar. Como não é isso que acontece - afinal, são pessoas como as outras, meros mortais - a vigilância aterradora dos tablóides leva os súbditos a deliciarem-se com todas as suas histórias e intrigas. Este escrutínio começou, pelo menos, desde os tempos da atribulada relação de Carlos e Diana, se descontarmos a abdicação de Eduardo VIII para casar com Wallis Simpson, uma americana divorciada. O espaço mediático inglês tem dezenas de comentadores especialistas na Casa Real, que analisam tudo com a perspicácia e dedicação, apenas observável no futebol.
Isabel II tentou conter, dentro do possível, esta perda de imagem. Proibiu a sua irmã Margarida de casar-se com outro divorciado - que até era inglês e herói de guerra - na década de 1950; já em 2019, pagou o escandaloso acordo judicial do seu filho Andrew, acusado de abuso sexual de uma mulher, à altura menor.
Outro problema, ainda em curso, foi quando o seu neto Harry decidiu casar-se com outra americana divorciada, e ainda por cima mestiça, Meghan Markle. O casamento gerou uma série de histórias lamentáveis, com conotações até racistas (do nível: “os filhos nasceriam brancos?”) tanto dentro da família como junto da opinião pública. A pressão sobre Harry foi tal, que em 2020 anunciou que abandonava tudo: a família, os privilégios, os ditos “deveres” e até o país. O casal foi viver para a Califórnia, mas isso não tem impedido os tablóides , como o Daily Mail, de os assediar constantemente, o que levou Harry a processar o Daily Mirror por ter tido acesso ao seu telemóvel. O tribunal deu-lhe razão e obrigou o grupo do Daily Mirror a pagar-lhe 140.000 libras de indemnização.
Uma pesquisa mencionada pela BBC contou 74.000 artigos sobre Meghan, publicados no mundo inteiro, desde que o casal escolheu os Estados-Unidos para morar.
Outro tema constante, é o da desavença entre os irmãos Harry e William, cujos motivos da desavanença alimentam a saliva dos leitores dos tabloides. Vários acontecimentos - avistamentos, poder-se-ia dizer - provam que os mesmos evitam encontrar-se e, quando se encontram, não ocorre propriamente um entendimento que se possa designar “fraternal”.
Tudo isto a propósito do último “escândalo”, que envolve a princesa Kate, mulher de William e futura rainha.
Kate Middleton, que foi cuidadosamente preparada pelos pais para atrair o futuro marido, começando por matriculá-la na Universidade de St. Andrews, na Escócia, onde ele também estudava, tem sido a consorte perfeita. Sempre impecável, a verdadeira “rosa inglesa” (English rose) cumpre os seus “deveres” para com a “firma” (como se chama vulgarmente à família Windsor), deu três filhos ao próximo rei e encarna a perfeição do papel. Tem sido tratada pela opinão pública com carinho, beneficiando de uma excelente imprensa, em franca oposição ao tratamento dado à sua cunhada, Meghan Markle.
Em Janeiro, a Casa Real anunciou que Kate fora submetida a um cirurgia abdominal (não especificada) e que assim não retomaria a sua vida oficial antes da Páscoa. O anúncio, bastante sucinto e evasivo, levantou imediatamente uma nuvem negra de especulações, e “fake news”. Finalmente, numa tentativa inábil e coxa de sossegar a avidez pública, a princesa “publicou” esta semana uma fotografia composta e sorridente, odeada pelos filhos, pretendendo dizer ao mundo “que está tudo bem”. Só que a fotografia, atribuída a William, terá sido fortemente retocada, o que se é facilmente observável, até para um leigo, embora uma série de analistas se tenha dedicado a demonstrar, com detalhe, as suas falhas, como se procedessem a uma intervenção cirúrgica.
Os comentários à fotografia, ao contrário de sossegar as hostes, não podiam ser piores. Kate foi obrigada a publicar novo comentário, desculpando-se e dizendo que, tal como faz muita gente, costuma corrigir ligeiramente as fotografias, sem nenhuma intenção malévola. Quer dizer, a manipulação não implica em si a vontade de esconder alguma coisa (o quê?), mas teria apenas em consideração critérios estéticos. A opinião pública e os tablóides, ou os tablóides e a opinião pública, ficaram ultrajados tendo a fotografia sido prontamente retirada de circulação. A história tem corrido a volta ao mundo, com comentários em jornais de referência nos cinco continentes, como se se tratasse de alguma conspiração internacional e assunto que motivasse aflição planetária.
O “Daily Mail”, essa tribuna da virtude, publicou o seguinte comentário: “É uma falta de ética e muito pouco cavalheiresco da parte do Príncipe William pôr a culpa da manipulação na esposa. Por amor de Deus, foi ele quem fez a fotografia!”
Uma dessas publicações, é a revista americana “The New Yorker”. Nela se resume bem a situação: “A explicação mais plausível para a ausência de Kate é a mais simples (ah... o velho princípio da navalha de Occam, tão antigo quanto a realeza …) e aquela que foi inicialmente anunciada em Janeiro: Kate estará simplesmente a recuperar de uma grande cirurgia, “invasiva”, como se diz hoje em dia. O que o Palácio de Kensigton não revelou na altura, alimentou a polémica e expôs a sua ingenuidade relativamente à tecnologia e às redes sociais, interlocutores que já não é possível ignorar, ainda que se queira. Como disse um editor do tablóide “The Sun”: “é uma organização do século XX, talvez mesmo do século XVI, a brincar com jogos do século XXI”. Muito bem posto.
A referência ao Palácio de Kensigton é motivada pelo nome sob o qual trabalham as dezenas de funcionários que tratam da gestão da casa e são responsáveis pelas relações públicas dos príncipes. Não vivem lá, evidentemente, sendo, na prática, a sua “secretaria”.
Não deixa de ser interessante, este arranjo entre a “firma” e os súbditos, que se pode resumir à expressão: “uns posam, outros pagam”. Sem poder político e sem ter realmente nada de importante para fazer ou dizer, os royals tornaram-se numa espécie de programa “Big Brother”, com concorrentes de luxo e de consumo instantâneo, que entretem e distrai dos verdadeiros assuntos da vida real (no sentido prático da palavra). Pensando bem, também é preciso que se portem mal, ou menos bem, vá, para manter os níveis de audiência.
(Artigo atualizado às 15:12 de 16/03/2024)
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