No ano passado, enquanto o antigo responsável pela contabilidade admitia ter falsificado um documento, o ex-CEO da Wirecard pedia a suspensão do seu julgamento. Agora, no início desta semana, que marca o arranque do julgamento do maior caso de fraude da Alemanha nas últimas décadas, Markus Braun [na foto em baixo], antigo líder da Wirecard, deixou a sua posição no caso bem explícita: "rejeito todas as acusações". Ou seja, o rosto e principal responsável pelos destinos da fintech alemã, outrora vista como a concorrente do PayPal, mantém o que tem dito desde o início do processo que o acusa de fraude: não sabia de nada e não é diretamente responsável por nada.
Esta declaração é importante porque a resposta marca a primeira reação pública de Markus Braun ao seu envolvimento no escândalo que atirou a startup alemã de serviços financeiros para a insolvência em 2020. Portanto, esta segunda-feira, dia 13, marca o dia em que o austríaco negou fazer "parte de qualquer grupo" e em que disse "não ter conhecimento" de que 1,9 mil milhões de euros de ativos, supostamente em contas na Ásia, na realidade não existiam.
- A dimensão: É o maior caso de fraude do pós-guerra na Alemanha, causou um enorme embaraço internacional ao governo de Merkel e esteve na origem de inúmeras críticas aos reguladores financeiros do país (os sinais de alerta em torno da empresa eram mais do que muitos). Além disso, deu origem a um livro com contornos de thriller hollywoodesco, que por sua vez acabou adaptado numa série documental para a Netflix, num registo em que a realidade supera a ficção.
Recorde-se que existem quatro visados/personagens-chave neste processo: o já citado Markus Braun - que se condenado pode receber uma sentença até 15 anos de prisão -, o ex-diretor de contabilidade, Stephan von Erffa, e o gestor Oliver Bellenhaus, todos acusados de montar um esquema de fraude e de manipularem o mercado bolsista. Há ainda um quarto elemento, Jan Marsalek, ex-presidente, em fuga há dois anos e que as autoridades alemãs acreditam estar na Rússia, a quem até já fizeram um pedido de extradição.
Mas para percebermos melhor este processo, que deverá ter mais de 100 dias de audiências e que quase de certeza não terá um desfecho até 2024, é preciso recuar no tempo.
O começo
Fundada em 1999 num subúrbio de Munique, a Wirecard nasce por via de um investimento da era dos últimos suspiros das dotcom e funciona essencialmente como prestador de pagamentos. Esta permitia aos sites recolher o dinheiro transferido através dos cartões de crédito dos seus clientes. Em 2002, envolta em problemas de operação, vai buscar o austríaco Marcus Braun, antigo consultor da KPMG, para ocupar o cargo de CEO. E uma das suas primeiras decisões enquanto líder passou por comprar a rival a Electronic Business Systems.
Porém, apesar deste importante passo - que na verdade deu início à sua ascensão -, a fintech não tinha o prestígio nem a reputação que viria a gozar uns anos mais tarde, pelo que o foco das suas operações estava concentrado na prestação de serviços de pagamentos online de negócios que outras instituições financeiras mais tradicionais não tinham grande interesse em lidar: a pornografia e o jogo. Coisa que começou a mudar em 2005.
Nesse ano, conseguiu aderir à Bolsa de Frankfurt graças à aquisição de uma empresa hoje extinta (compra que evitou também uma OPA), mas que deu força para comprar, um ano mais tarde, em 2006, o banco alemão XCOM. Foi uma decisão que viria a mudar o rumo da empresa, pois permitiu que a Wirecard entrasse no setor bancário — e, mais importante, fez com que recebesse uma licença para operar tanto com a Visa como com a Mastercard.
As primeiras "red flags"
Em 2008, começam a soar os primeiros alarmes sobre possíveis irregularidades financeiras nas contas da empresa. Em resposta às acusações, dois homens acabaram por ser indiciados pelo Ministério Público alemão, o que motiva a entrada em cena da consultora EY, contratada para monitorizar as operações e ser a "contabilista" oficial da Wirecard. (Como explica este artigo do Financial Times com a cronologia dos acontecimentos, devido a um leque variado de operações e prestação de serviços, e devido às muitas aquisições, era difícil rastrear tudo o que a empresa fazia.)
Aparentemente alheia às acusações, a Wirecard começou a sua expansão internacional e, já a operar em inglês, entre 2011 e 2014, consegue levantar 500 milhões de euros de investimento, que utilizou para comprar empresas no mercado asiático, acabando por estabelecer uma sede em Singapura. De olhos vidrados num crescimento muito grande (à conta de aquisições supersónicas e de, sabe-se agora, documentação contabilística fraudulenta) e de uma alegada superioridade da sua tecnologia, os investidores gostavam do que viam.
Porém, foi precisamente esse rápido crescimento que motivou delatores a contactar o Financial Times (FT) e levou a que em 2015 o jornal começasse a publicar uma série de artigos de uma investigação que ficou conhecida por "House Of Wirecard". Do que tratavam? Na sua essência, de uma alegada discrepância (um buraco) de 250 milhões de euros nas contas.
Em resposta, a Wirecard refutou as acusações, levou a cabo uma campanha de relações públicas internacional e desatou a comprar empresas na Índia. Mas enquanto a empresa avançava com este raide de aquisições, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) alemã, a BaFin, começava a ficar suspeita e a olhar para os seus lucros impressionantes. Ainda assim, as notícias de uma investigação não retiraram a ambição nem fizeram com que Marcus Braun parasse ou alterasse a sua estratégia de aquisições. Em 2016, a Wirecard compra o negócio de cartões pré-pagos do Citigroup e entra oficialmente no mercado norte-americano.
Esta entrada levou a que, no ano seguinte, juntamente com uma auditoria sem falhas da EY e um renovado entusiasmo na bolsa pelo dinheiro gerado, a Wirecard visse o preço das suas ações dobrar. Estávamos em 2017 e empresa era, por esta altura, a maior fintech europeia, aquela que se dizia ser capaz de rivalizar com as titãs da indústria mundial, ou seja, as americanas de Silicon Valley. O ano acaba com a Wirecard, uma empresa de tecnologia com pouco mais de uma década, a dar 150 milhões de euros ao Deutsche Bank, num empréstimo que garantia uma participação no capital do banco de 7%.
O início do fim
No verão de 2018, a Wirecard atinge o pico da sua valorização, com cada ação a valer 191 euros. Segundo a empresa, esta geria nesta altura uma carteira de 250 mil clientes (Aldi, Lidl, entre eles), emitia crédito e fornecia tecnologia contactless para smartphones — além de empregar 5.000 pessoas. Dimensão que a levou a substituir o Commerzbank (um dos maiores bancos da Alemanha) no Dax, a praça de negociação alemã. Devido à sua participação na empresa, Markus Braun valia 1,6 mil milhões de euros e prometia aos acionistas duplicar os lucros nos dois anos seguintes.
Mas se no Velho Continente a imagem era a de sucesso, na sede asiática de Singapura os problemas amontoavam-se e a empresa começava a implodir. Porque em 2019, tudo mudou. O Financial Times voltou a ser contactado por delatores e voltaram a sair mais artigos sobre manipulações de mercado e fraude. Em Singapura, as repercussões sentiram-se (de tal maneira que a Wirecare processou o FT), as autoridades conduziram buscas aos escritórios da fintech alemã e esta viu as suas ações serem negociadas abaixo dos 100 euros (mas ainda conseguiu receber uma injeção de 900 milhões de euros do Softbank, num aparente voto de confiança).
O resto de 2019 e início de 2020 foi ver o dominó cair, com a Wirecard a tentar afastar as suspeitas de irregularidades aos investidores e os jornalistas a pressionar as autoridades alemãs para investigar aqueles que estavam a escrutinar as suas finanças.
Até que em junho de 2020, a Wirecard, encostada entre a espada e a parede, foi forçada a admitir aquilo que o Financial Times tinha vindo a denunciar e a reportar: faltavam efetivamente 1,9 mil milhões de euros no Balanço Consolidado. Como resultado, Markus Braun pediu a demissão, mas acabaria detido pelas autoridades no dia 23.
Atualidade: repercussões e julgamento
O governo da então chanceler Angela Merkel ainda considerou a hipótese de salvar a empresa pela sua relevância e pelo que a sua queda significaria nos mercados. Mas apenas dois dias depois da detenção de Braun, a Wirecard tornar-se-ia o primeiro membro da história do Dax a apresentar um pedido de insolvência, com 3,5 mil milhões de euros em dívida.
A queda da empresa, outrora uma das jóias tecnológicas do país, não significou apenas um terramoto dos mercados. Foi também político e esteve na origem de muitas críticas à passividade do governo e às instituições reguladoras, que não atuaram mais cedo, quando havia sinais de que algo não estava bem há anos. Merkel e Scholz, explica a Reuters, disseram que a culpa não era deles, mas ambos tiveram de ir à comissão parlamentar de Finanças responder sobre este processo.
Uma equipa de magistrados de Munique e uma task force especial conduziram uma investigação que resultou numa acusação de 474 páginas. O caso foi tão grande que estão envolvidas autoridades que vão da Suíça até Singapura, passando por Áustria, Filipinas, Grã-Bretanha e Rússia. De acordo com a Reuters, os magistrados vão basear o seu caso nas provas fornecidas por Oliver Bellenhaus, o antigo chefe da filial da Wirecard no Dubai, que se tornou uma testemunha-chave depois de se ter entregado às autoridades alemãs em 2020.
O escândalo extravasam em larga medida as fronteiras da Alemanha: em duas décadas a Wirecard conseguiu ultrapassar o valor de mercado dos maiores bancos alemães e depois expôs a ineficácia das regulamentações e fiscalizações no controlo de fraudes no setor das fintech e a necessidade de ser feita uma revisão desta matéria.
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